Melhores leituras de 2024

Hoje, dia do leitor, anuncio as leituras mais marcantes de 2024!

Não é do meu feitio simplesmente fazer uma lista genérica, como um ranking top10, então teremos algumas categorias especiais para assim eu poder colocar tudo que eu listei desordenadamente.

Sim, tem prosa e poesia, tudo junto e misturado!

Apesar que eu não conseguir nem estimar direito quantos livros foram lidos nesse ano, sei que foi muita coisa. Afinal, além de ler por diversão, li para alimentar o @bafodepoesia, mediar o @clubecidadesolitaria, participar da @casadaspoetas, fazer leituras críticas, freelas de release e resenhas e algumas pesquisas pessoais para elaborar oficinas.

Li e reli tanta gente! Tanto livro bom!

E eu não fiz lista de lidos, ficou tudo solto, apesar do que foi lido sempre carregar em seu interior post its, marcadores e grifos que me ajudam a encontrar o prumo, inventar algum número, se eu sair abrindo os livros.

Nesse remelexo todo, a memória se confunde: só sei que a safra foi muito boa e é injusto eu não destacar, por exemplo, o livro “Um caminho particular de futuro” do Ricardo Bernhard, só porque não consegui encaixá-lo em nenhuma das categorias que inventei. E é mais injusto ainda eu não seguir adicionando exemplos e mais exemplos nesse parágrafo.

Nunca mais tentarei fazer listas assim, juro! Em 2025 só vou listar os lidos do ano e será isso, para eu não sofrer!

MAIS COMOVENTES

Amanhã tardará – Pedro Jucá
No dia em que não fui – Andressa Arce
Poeta chileno – Alejandro Zambra

ME DEIXARAM TOTALMENTE OBCECADA

Estrela da manhã – Karl Ove Knausgård
Todo mundo tem mãe, Catarina – Carla Guerson
Dobra – Adília Lopes

FAVORITADÍSSIMOS

Mau hábito – Alana S. Portero
amarelo mostarda – Maria Emanuelle Cardoso
cova profunda é a boca das mulheres estranhas – Mar Becker

ME DERAM MUITA VONTADE DE ESCREVER

na frente de estranhos – Carina S. Gonçalves
abrir a boca da cobra – Sofia Mariutti
refinaria – Rodrigo Cabral
Diorama – Carol Bensimon
Cavalo – Lucas Castor

ME FIZERAM UMA LEITORA MELHOR

O ninho – Bethânia Pires Amaro
Para além das margens: A Itália de Elena Ferrante – Isabela Discacciati
Louças de família – Eliane Marques

SALLY ROONEY DO ANO

Intermezzo

adeus, Adília Lopes

ontem, sem saber o que fazer com a notícia triste do dia, me peguei abrindo a Dobra mais uma vez. achei, inicialmente, que era por Adília ou Maria José que eu lia todos aqueles poemas, mas era também por mim.

a Dobra, com esse nome, sempre me fez pensar nas bolhas de dobras de tempo-espaço. ler esse livro, como na teoria Alcubierre, me faz surfar no desconhecido, sem ser afetada pelas leis da física. posso com a Dobra ler todos os anos anteriores de Adília como livro só. encarar o que foi produzido ao longo dos anos como obra única. e fiz isso inúmeras vezes lendo também cada um dos poemas como se eles acontecessem no momento presente. assim pude fazer todas as Adílias coexistirem tentando pegar um peixe com as mãos em Lisboa ou em Divinópolis e conseguindo uma, duas, três, quatrocentas vezes.

corri até a Dobra por isso, eu acho. quis ritualizar a despedida adicionando a Adília que não está mais entre nós a todas aquelas que vão continuar vivendo em cada um de seus leitores.

ficamos então com a falta. sem musas boas ou malvadas, sem a poeta oráculo do cotidiano, sem seus jogos perigosos e sem mais poemas repletos de gatas, baratas e fodas. mas ficamos também com a Dobra, porque ela escreveu o que escreveu e como escreveu para desafiar todas as leis da física da maneira mais banal e irônica possível. a literatura, de alguma maneira, sabe dobrar o tempo. e porque Adília fez isso com seus poemas, podemos brincar de dobrar junto com ela mesmo agora.


sentiremos sua falta!

Essas imagens junto dessa semi-crônica, foram publicadas originalmente em meu Instagram. O desenho marromenos foi feito por mim a fim de homenagear a poeta.

Misteriosas forças ocultas atuam na Flip e agora também em mim

Em novembro de 2022, eu viajei 17 horas de ônibus para ir para Flip, a maior festa literária do país. Para voltar, vivenciei junto de Tatiana Lazzarotto as forças ocultas de Paraty e acabei ficando mais um dia para curtir a cidade e, durante esse dia que precisava ser o derradeiro, eu e ela quase ficamos sem passagem para enfim cada uma voltar para a casa. A volta, ao contrário do que eu mesma esperava, durou 13 horas de ônibus, a quantidade de horas mais otimista para o modal escolhido.

Nesse último dia, descobri que existe uma lenda que diz que se você pular umas correntinhas do Centro Histórico, você fica preso na cidade. E, é claro, nessa altura do campeonato eu já tinha pulado muitas correntinhas, porque eu é que não ia dar a volta se podia simplesmente pular. Ainda mais numa rua de pedras. Sendo cética como sou, mesmo já sabendo da lenda, eu teria arriscado e feito tudinho igual. Mas eu voltei para casa. E a viagem foi tranquila, com zero intercorrências, diferente da ida.

Ainda durante a festa, eu já prometia regressar no ano seguinte. Dizia, para quem quisesse ouvir, que a Flip era mágica. E sigo dizendo isso até hoje, como vocês podem perceber por esse texto. E o retorno aconteceu. Voltei a repetir a saga da ida em novembro de 2023, dessa vez de carro, economizando assim algumas horas de viagem e paciência. 

Nesse segundo ano, eu, como boa mineira, decidi que também ia aproveitar as praias e assim o fiz. Sem deixar de circular pela Casa Gueto, ir para o Areal, curtir as festas e as mesas da Flipei, ser host do Sarau das Escreviventes e afins, eu também fui para a água e levei meu companheiro junto. Ainda assim, eu sentia, às vezes, que a magia me escapava. Eu estava lá, mas nunca mais seria como a primeira vez.

E, então, a luz apagou por horas. E ali, ansiosa, frustrada e estranhando tudo, a realidade me pegou pela mão e me mostrou o impacto de tanta gente de tanto lugar em uma cidade pequena, histórica e com problemas óbvios de saneamento.

A magia foi estremecida. E ela retornou, com toda força, nos últimos dias, porque nesse ano eu não vou para Paraty e eu estou arrasada por isso. Descobri hoje que alguma dessas malditas correntinhas que pulei, fez o que prometeu, mas houve um pequeno erro de regência quando me contaram sua maldição. Ao pular, você não fica preso na cidade em si, você fica preso à cidade. 

Paraty, durante os dias da festa literária, vira um lugar de encontro. Você conhece pessoas, você estreita laços, você vê a cidade inteira se transformar em um espaço-tempo em que a literatura ora é fuga, ora é assombro, mas é sempre centro. E, por algum motivo, essa estranha reunião precisa continuar se repetindo ao longo dos anos. E isso acaba, claro, criando um fluxo impossível de pessoas. Mas a impossibilidade de tanta gente estar ali, numa data específica marcada com menos de um ano de antecedência, não muda o fato de que há pessoas que você só vê lá. Há trocas que só são possíveis ali. Só nesse espaço-tempo você acaba passando horas numa fila para ouvir uma mesa com Conceição Evaristo, consegue enfim entrar na casa, apesar da lotação, por pura generosidade da porteira e, assim, acaba passando quase uma hora agachada debaixo de uma mesa para se proteger da chuva com as poetas e amigas Marina Grandolpho e Luiza Leite Ferreira, enquanto Conceição fala de Macabéa. Só ali você vê Annie Ernaux passeando pelas ruas de pedra aos 82 anos logo após ganhar o Nobel de Literatura. Só lá você janta do lado de Dionne Brand e finge que nada está acontecendo. Só ali você consegue tolerar a chuva, ainda que siga reclamando sobre ela. Só lá você consegue entender uma pessoa falando francês devagar mesmo sem nunca ter estudado o idioma na vida. Só lá você se sente tão viciada em viver e aprender e ler e escrever e escutar assim, como se nem precisasse dormir.

Hoje concluí que Paraty sempre vai tentar nos atrair, em especial nos dias da festa literária, quando a força da ficção fica mais poderosa e, assim, a atração da cidade se multiplica além de si mesma. O problema é que essa força, ainda que potente, precisa de ainda mais gente ansiando estar lá e, por essa falta, ainda não consegue me teletransportar agora para a Travessa Gravatá ou para a Rua Fresca ou para a Rua do Fogo. 

Essa crônica foi inspirada pelo texto de Jeovanna Vieira sobre o FoMo de não estar na Flip depois de uma vez ter ido e conhecido a magia da festa.

Divinópolis, Adélia, a poesia e eu

Foto: Ana Carolina Fernandes/Folhapress

Nasci na mesma cidade que Adélia Prado e quase sem querer encarei essa coincidência territorial como um destino passando a escrever poemas a fim de investigar qualquer coisa sem registro.

Nunca achei que a literatura fosse algo muito distante simplesmente porque Adélia Prado me ensinou a situá-la no aqui e no agora. O aqui e agora não é metafórico quando você vê a poeta citada no livro de literatura ir fazer a feira da semana onde a sua mãe também vai.

Lendo Adélia Prado eu aprendi a perceber melhor as cores. Descobri que uma casa com as paredes alaranjadas está constantemente amanhecendo, que o roxo é uma doidura para amanhecer, é bonito e o amarelo gosta dele, e eu e a Adélia também.
Por causa dela eu passei a notar que os jardins fazem parecer que as arvorinhas conversam, que deveria existir licença para dormir, que o trem de ferro que atravessa a cidade atravessa também a minha vida e depois vira só sentimento e também foi lendo Adélia que vi a palavra cu impressa pela primeira vez.

Esse texto foi escrito como parte de um roteiro de um vídeo que gravei para homenagear a autora no meu Instagram após ela ganhar, com menos de uma semana de diferença, os prêmios Machado de Assis e Camões. Assista aqui!

Sobre Adélia Prado e o cotidiano na poesia leia também esse meu ensaio publicado originalmente no portal Fazia Poesia.

“A suspensão de Tomie Ohtake”: quando da contemplação do gesto de fazer e olhar surge mais arte

Acervo pessoal – Acesse meu instagram para mais fotos como essa.

“A suspensão de Tomie Ohtake”, estreia poética de Letícia Miranda, é uma leitura que propõe um diálogo muito próprio com a vida e o trabalho de Tomie Ohtake, artista plástica japonesa naturalizada brasileira. Composto por 35 poemas e algumas colagens, a poeta e artista brasiliense ficcionaliza, homenageia e conversa com a artista e sua obra, construindo um livro que tem como corpo a contemplação que a arte é capaz de evocar como e a partir da experiência, seja pela sua própria feitura, seja pelos muitos desdobramentos possíveis que um objeto artístico pode ter no mundo e na memória. 

Essa possibilidade de transmutação entre arte, vivência e novas perspectivas ganha ainda mais significado quando se apoia em alguém com a história de Tomie Ohtake. Nesse caso, são mais de cem anos de atravessamentos, dois países, uma naturalização, 120 exposições individuais e mais de 30 obras espalhadas em espaços públicos. Algo bem lembrado pelo primeiro poema do livro que afirma:

“As formas
emendadas nas cores
se deslocam
permanece o gesto
de uma mulher
centenária”
(página 11)

Nomeado “Sem título”, esses versos, ao nos fazer pensar nos tantos quadros denominados assim, tornam obra de arte todo o movimento causado por essa artista.

Nessa conversa poética, quem lê é convidado a perceber a observação do gesto, além do gesto per si, como um ato de contemplação. Assim, permanência e impermanência se dividem nas páginas como parte de um deslocamento quase imperceptível, nos oferecendo a possibilidade de olhar diferente para todas as formas, as cores e as cenas que nos cercam. Assim, os poemas de Letícia nos permitem adentrar numa atmosfera em que o aparentemente simples ganha formato, força e ainda mais significado.

Dessa maneira, as linhas simples de Tomie Ohtake se traduzem em poesia. Curtos e construídos usando palavras comuns com bastante precisão, a poesia da autora condensa cenas comuns, como o amanhecer, em versos que, em um processo de desdobramento poético, transformam o que a gente considera conhecer bem em algo quase abstrato. É como se Letícia nos disponibilizasse lentes esquisitas. Com elas, podemos ver o Sol mudar de tamanho, cores se enfurecerem, montanhas virarem linhas e uma única gota ser considerada capaz de inundar uma pessoa inteira. 

“A suspensão de Tomie Ohtake” se faz em um ir e vir de processos criativos que acomete quem se permite viver inteiramente o estranho momento de deslumbramento e conexão que a arte é capaz de produzir. Quando Letícia abre seu livro dizendo “Tomie, o nome do território onde me ancorei”, ela nos ensina que um artista pode se tornar casa para quem é tocado por ele. A arte é um lugar de permanência. E nesse cenário, tudo se fragmenta em ainda mais arte.

essa resenha começou a se escrever na minha cabeça um ano atrás, quando, acometida por uma enxaqueca, não consegui ir ao lançamento desse livro incrível mesmo estando em Brasília na data. um pedaço dela se tornou uma indicação de leitura no instagram da Crivo Editorial antes de virar esse texto.

confira alguns poemas do livro na minha página Bafo de Poesia: “Termologia”, “Água corrente” e “Tatear com os dedos”.

três poemas musicais

Colagem feita por mim no Canva 🖤

nessa festa toca abba

todas aqui são dancing queens
golden girls que não querem saber
de olhar para o relógio
todas aqui estão perdidas
buscando alguém pra ouvir
mamma mia junto
enquanto o fim do mundo
é tocado lá fora

here i go again
mangas bufantes
letreiros neon
beijos urgentes
inflação altíssima
filtro em fotografias
ficção científica
how can i resist
you

inércia 

avesso ao rebuliço 
o fôlego pede pausa 
mas a velocidade do compasso 
impõe 
o tempo dos pés 
a fricção das coxas 
um corpo submetido 
a um conjunto de forças 
que levam as pernas à amarração 

patuscada 

vrum vrum vrum 
não são pneus cantando 
são pés corrompidos 
por um papibaquígrafo 
de arranjos ansiosos 
que vem de uma fome 
de ritmo e de janta 
um mexido que vem 
da vontade de comer 

esses três poemas foram publicados juntos na toró editorial. dois desses poemas saíram na aboio. se você gostou deles, deixe um comentário, compartilhe com seus amigos e me acompanhe também pelo Medium,  Facebook,  Twitter,  Tinyletter  e  Instagram.

Uma crônica de dia das mães

Acervo pessoal – minha mãe e eu

Minha mãe sempre me pede para elaborar mensagens de aniversário, casamento, feliz natal e formatura. Qualquer celebração é um motivo para ela enviar um cartão, um bilhete, uma mensagem no WhatsApp para qualquer pessoa que ela goste. Eu digo “não” e ela me desafia dizendo “por que isso se você é tão boa nessas coisas de escrever?”

Sempre insisto no não. Digo que posso revisar a mensagem, sugerir edições, preparar o texto, mas escrever por ela sobre isso é impossível. Meu léxico é limitado demais. Sobra palavra, falta comida, é esquisito. E todas as cartas de amor são ridículas, mas as mensagens que minha mãe envia para amigos e familiares são bonitas, atenciosas, construídas sem medo dos clichês se eles ali couberem.

Eu juro, essa negativa minha não vem de nenhum lugar estranho e sombrio. Esse não é um caso do famigerado não aleatório que surge porque quando nasci um anjo Do Contra disse que eu seria uma representante dele na Terra. A resposta dessa teimosia que se repete há anos é simples: como posso escrever sobre amor em nome dela se é ela quem verdadeiramente entende do riscado?

Hoje tento dizer a ela com essa mensagem (pública, vejam só!) que pra mim só dá pra rascunhar algo sobre amor se a destinatária for ela.

Nesse caso, posso me arriscar a falar do meu amor de filha em uma estranha crônica de Instagram, porque eu sei que ela vai gostar e é isso que me importa agora. Hoje me coloco como remetente, como nas cartas de dia das mães que aprendi a fazer na escola, simplesmente porque eu te amo, mãe.

Prometo fazer um cartão melhor no seu aniversário. Quem sabe até novembro eu aprenda a ser mais direta.

esse texto foi escrito e publicado de improviso aqui. se você gostou de ler, deixe um comentário, compartilhe com seus amigos e me acompanhe também pelo Medium,  Facebook,  Twitter,  Tinyletter  e  Instagram.

“Da costela do impossível”: luz, sombra e a imagem refletida por essa combinação

Acervo pessoal

É difícil escrever o que nos comove sem recair em clichês ou mesmo numa linguagem cafona, especialmente se você for um cínico. E todo mundo foi obrigado a aprender a ser um nos últimos anos. A comoção foi praticamente proibida como tema, especialmente se ela se apresenta entrelaçada na complexidade de um cotidiano de pequenas coisas a serem contempladas. 

Tratada como um luxo numa sociedade que busca a produtividade acima de tudo e ataca até mesmo o sono, o sonho e o descanso, a comoção se encontra em extinção. Se propor a se comover virou quase um ato de rebeldia em meio a um mundo de estímulos que, sendo praticamente ininterruptos, transformam qualquer emoção em uma sensação estranha e passageira. 

É preciso digerir e ninguém tem tido tempo para digerir qualquer coisa. Estamos na era do utilitário e até a leitura de poesia pode ser transformada em mais um item de uma checklist de afazeres. Alguma poesia na rotina é melhor do que nenhuma, eu diria justificando meus atos. E talvez você concordasse comigo até você também se deparar com os poemas do livro Da costela do impossível de Marcela Alves e entender que poesia na rotina significa algo mais do que a simples leitura de uma página. 

Com uma obra focada em detalhes que tornam visíveis a cumplicidade dos laços e a beleza das pequenas coisas, a poeta constrói versos que também possibilitam contemplar e perceber a própria dor. O tempo corre diferente quando você conversa com o eu-lírico construído por ela. Não tem agenda e planejamento que dê conta. É impossível ler tudo de uma vez, ler de qualquer jeito, deixar pra ler correndo no intervalo do almoço. A poesia de Marcela é oráculo, sua leitura pede uma pausa ritualística no meio da rotina. E essa pausa pode durar apenas alguns minutos, o lapso exato de um poema, desde que você esteja presente ali, sem pensar na próxima tarefa. 

Ler Da costela do impossível é buscar compreender melhor o alcance de um instante e essa reflexão surge impondo que a gente abrace o não-entendimento racional daquilo que chamamos de vida, calendário, entendimento, prazo, fim. Não basta partir de uma razão cartesiana para ler poesia, para pensar na percepção da experiência é preciso espanto, comoção, assombro, alguma magia.

“provamos a carne crua da ignorância
até entender que entender leva tempo
o agora é imenso, não há fronteiras
a possibilidade se avizinha de outra possibilidade
que é irmã de mais uma e em nada se assemelha
a tantas outras”

página 37, poema “quando ainda”

A poeta escreve para dentro, construindo uma concha misteriosa em torno das palavras. Só que essa concha não está absorta em si mesma, ela é também uma concha acústica, que, inspirada no ouvido humano, é feita para fazer reverberar melhor o som para a plateia que se permite entrar, ficar e permanecer.

Dentro da poesia de Marcela, o íntimo nos atinge. Nossa intimidade se entrelaça com a do eu-lírico e nos lembra do que somos feitos: ternura, medo, beleza, dúvida, perda e um pouco do que pode parecer nada para alguns, mas é a matéria-prima que nos faz gente, como a cena de uma avó plantando rosas, de uma casa que é casa por causa das amoras roxas de sua calçada, de um pai fritando peixe e servindo cerveja para ele e a filha numa sexta-feira santa, de uma mãe que cozinha couve com devoção, de um amigo recém retornado de uma grande viagem.

Da costela do impossível se constrói pela via da luz, da sombra e da imagem refletida por essa combinação ser possível como parte da natureza. Mesmo buscando iluminar as miudezas que tornam a existência algo muito além da mera sobrevivência, a autora nunca esquece que na luz se encontra também a escuridão. Marcela escreve para honrar o mais bonito de suas origens, trazendo à tona Adélia Prado como epígrafe e referência de sacro e sacrilégio, luz e sombra, vida e poesia. E, nesse estranho lugar, tradição e modernidade se encontram com todas as suas contradições.

Acervo pessoal – Bafo de Poesia

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breve memorial de uma vida alugada

já não me lembro mais a exata cor dos azulejos do meu antigo banheiro – fotos minhas

carrego comigo uma saudade estranha dos azulejos azuis do banheiro que chamei de meu durante mais de cinco anos. minhas sinapses tentam preservar cada quadradinho pregado na parede. durante o esforço de mantê-los nítidos, junto da pia, do bidê, da privada, das saboneteiras e outros detalhes — todos esses em seus devidos lugares e no tom de azul escuro correto — penso nas padarias que deixei para trás. 

disse adeus para a Sabinão, para Arte do Trigo, para a Dupão e para a produção panificadora da rede de supermercados Verdemar e isso me lembra que a cozinha do apartamento que eu morava até mês passado também era de ladrilho, como o banheiro que sinto tanta falta. 

nunca comi pão e nem bolo olhando para os raminhos de trigo dispostos em azulejos ao lado do filtro de barro que me seguiu de volta para Divinópolis. talvez se essa parte do apartamento fosse de um amarelo bonito, eu diria, inspirada em minha de novo conterrânea Adélia Prado, que essa cozinha estava constantemente amanhecendo. mas essa cozinha era de um azulejo amarelo feio que passou batido e nunca conseguiu inspirar um poema meu, nem minhas papilas gustativas. ainda bem que sempre estive rodeada de bons pães para isso.

e então penso nos pontos do transporte público do bairro, nas linhas 8102 e 8150, que me pegavam tão perto de casa sempre que eu precisava. e também nas vezes que eu descia longe, porque vim de 9410, esse ônibus que ficou inscrito em mim por trajetos anteriores ao dessa vidinha e vez ou outra me aparecia como solução mais fácil, embora não fosse. 

nesses dias, eu descia ruas acima e circulava pelo bairro todo, andando e buscando o caminho que fosse mais bonito, tivesse menos morro e não me levasse para mais longe. costumava escolher o caminho do melhor pão, mesmo que no fim sempre desviasse para me esbaldar na sorveteria.

depois do sorvete, não consigo me ver mais no pretérito imperfeito e, de repente, estou pulando de uma sorveteria para outra, enquanto busco o melhor sabor de cada uma delas. alimentada, me desloco em segundos até uma agência dos Correios, a certa, aquela dos atendentes legais que nunca encrencaram com meus envios em impresso módico. visto uma roupa nova, mais recente até que minha mudança, enquanto ando nos corredores da Feira dos Produtores procurando a farofa que gosto de comer com feijão, compro uvas sem sementes no varejão, ando, corro e troto na rua de bares e restaurantes do bairro e penso, mais uma vez, que a Avenida José Cândido está muito perto e muito longe dali, e acabo andando mais devagar do que devia entre aqueles que bebem uma cervejinha no fim da tarde. 

no meio da caminhada, paro para almoçar um surubim no espeto, janto sushi, procuro algum self-service para o almoço seguinte. e volto a pensar nas sorveterias. e também nos prédios azulejados que vi ao lembrar todos esses trajetos. nenhum desses prédios era feito de azulejos tão azuis quanto aos do meu antigo banheiro. que pena!

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