Antártida

De repente ninguém mais morreu de tiro, faca, bomba ou porrada. Nenhuma pessoa conseguia entender como o índice de violência mundial chegou ao marco incrível de 0%, mas todo mundo sabia que algo tinha acontecido. Antes de dormir, naquele momento em que a solidão se torna quase concreta, não tinha uma só pessoa na Terra que não percebia que algo estava diferente dentro dela.

Ninguém sabia responder o que tinha causado isso e, inicialmente, as pessoas fingiam não querer entender, apesar do mundo ter se tornado outro em menos de um mês. Viviam como se nunca tivesse havido todo derramamento de sangue que a humanidade sempre conheceu e ignoravam os intensos anos de culto à violência que vigoraram até então.

Quando uma cientista descobriu que um som misterioso foi emitido da Antártida para todo o planeta horas antes do fim da violência, ela levantou a hipótese de reprogramação da mente humana e apareceu em todos os jornais. Só isso foi capaz de fazer as pessoas assumirem que queriam entender o que tornou a humanidade esse povo pacífico e, dias depois, diversas excursões de pesquisadores começaram a partir de todos os lugares do globo para explorarem o continente gelado.

Depois de quinze dias de busca, o grupo sul-africano encontrou uma base enorme destruída. Frente aos destroços, havia uma bandeira lilás intacta posicionada. Nela estava inscrita a frase “finalmente paz”.


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Conto de Natal

Espero o ano todo pelas luzes de natal. Quando as casas, lojas e ruas começam a aparecer enfeitadas, me sinto como uma criança esperando o Papai Noel chegar com seus presentes.

Entre as tarefas do escritório, a montagem da árvore e a preparação das rabanadas, panetones e do famigerado pernil, encontro um tempo pra mim e me preparo para o dia em que me faço renascer. Hidrato o cabelo, esfolio a pele, pinto as unhas, tiro o tubinho preto do maleiro e lustro um par de sapatos de salto alto. Ao me verem tão arrumada na Ceia, acham que me enfeito toda para receber Jesus.

Enquanto espero todos chegarem, sempre com um terço nas mãos e murmurando orações quando alguém está olhando, termino a salada, afio as facas e testo o corte delas no Chester.

Sirvo as entradas logo para oferecer o jantar só após o Pai Nosso da meia noite. Belisco pouco e me recuso a beber em nome de Deus e todos riem da beata que sou. Lá pelas duas da manhã me ofereço para levar os últimos bêbados da família para casa. Quando essa via crúcis finalmente acaba chega a hora do meu feliz natal.

Sei bem onde ir. Observei as possíveis presas durante o ano todo. Escolho quem vai ser de acordo com a minha sorte. Esse ano tenho preferência por três nomes: Fernando, o galinha que abusa de meninas desacordadas, João Paulo, o marido violento da manicure da rua de cima, e Gustavo, um músico bosta que adora descer a mão em uma mulher.

A longa espera não estraga o momento. Sempre tem a surpresa de não saber quem vai ser o azarado da vez até um deles surgir no meu radar e o prazer e a adrenalina da faca rasgando a pele do sujeito.

Assim termino todos os meus anos como a heroína secreta de alguma mulher desesperada.


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Até nunca mais

Ele saiu. Não sei para onde foi. Falou que ia me matar se ficasse mais um segundo na minha frente e foi embora deixando a porta escancarada comigo ainda no chão da sala. Fiquei deitada colocando sangue pelo nariz e vi o cara do 902 esperar o elevador e seguir em frente para seu leg day sem nem olhar para o lado.

Não sei porque ele se preocupa tanto em não deixar marcas óbvias se todos os vizinhos ouvem meus gritos há anos e não fazem nada. Ninguém se importa. Algumas vezes até eu deixei de me importar. Cheguei a pensar que ele devia me matar logo para eu ficar livre dessa merda.

Ai, ai, você vai realmente insistir para eu fazer b.o.? Outro? Contra o promotor amado da cidade do interior? Contra o cara conhecido por defender criancinhas de pedófilos? Não dá. Ele é um bam-bam-bam aqui e eu só uma mulher.

Sim, tenho certeza. Não vou passar fome e nem nada. Me planejei, sabe? Desviei uma boa grana dele para isso. Se ele vier atrás de mim, não vai me achar. Nesse avião já vou entrar com outro nome e chegando na Europa terei uma nova identidade me esperando. Seu relógio tá certinho? Já são onze da noite mesmo? É, tenho que chamar um táxi agora. Vai que ele volta mais cedo hoje. Não posso arriscar ficar mais.

Vem cá, me dá um abraço, vai. Não chore. Era isso ou continuar nessa merda.


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Composição

Canva ❤

Era uma noite qualquer de inverno, mas começou a chover. As pessoas, então, foram para suas janelas a fim de receber as águas vindas do céu e saudar a chuva milagrosa em pleno agosto. Algumas agradeceram em voz alta ao seu deus ou deusa toda poderosa, mas a maioria celebrou em silêncio, encarando as nuvens e sentindo o cheiro de terra ou asfalto molhado.

Os pingos, rápidos e pesados, acertavam a janela empoeirada que não via água há meses e esse movimento de água, vento, vidro e gente fez parecer que havia uma melodia acontecendo ao meu redor.

Deitei na cama para ouvir esse som como se fosse música. Fiquei assim por alguns minutos, mas a tranquilidade do momento foi destruída por latidos, miados ansiosos e estrondos cada vez mais altos. Era baque que não acabava mais. As casas pareciam estar sendo apedrejadas e os vizinhos, que antes agradeciam, agora gritavam de medo.

Meus gatos, muito assustados, se refugiaram comigo na cama e juntos dormimos com esperança que dessa vez fosse apenas granizo.

Acordamos com o som do meu despertador. O céu já estava limpo e o barulho dos carros e dos ônibus preenchia nossos ouvidos. Pela janela, vi algumas árvores caídas, carros amassados e montes de pedras de gelo começando a derreter e soube que sobrevivemos a mais um pequeno apocalipse, um desses que vira capa de jornal e às vezes inspira álbum de banda experimental.


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Casa limpa

A casa cheira a desinfetante. O cheiro é tão forte e a sala está tão organizada que nem dá para imaginar que ontem Flávio ainda engordurava as paredes, os azulejos e os demais móveis com suas mãos sujas de frango assado e cerveja, enquanto eu cozinhava e servia seus amigos.

O segredo para um chão tão limpo envolve mais que hábito e uma lista de produtos e marcas, abrange também ter uma motivação que torne aquilo uma tarefa que você faça com prazer. Tornar esse espaço um novo lar é o que me incentiva agora.

Daqui uns dias as coisas estarão fora do lugar e a casa vai aparentar ser habitada de novo, dessa vez só por mim, esposa desesperada pela volta do amado, e todo mundo, inclusive eu, vai descobrir que Flávio foi encontrado morto dentro de seu carro no extremo oposto da cidade após 30 horas de busca.

Vão me trazer a notícia em casa e eu vou pedir para sentar, fazer a policial me trazer um copo de água com açúcar e, aos prantos, contar mais uma vez que me sinto culpada, porque ele saiu bêbado atrás dos amigos após uma breve discussão comigo.

Arrasada, vou dizer que eu não consigo imaginar alguém que quisesse matá-lo. “Ele ficava meio valentão quando bebia, deve ter caçado briga com quem não devia”, eu direi, enquanto deixo as marcas do meu pescoço falarem por si mesmas.


Texto publicado originalmente no meu perfil na Sweek para o concurso #MicroSegredo. Se você gostou desse texto, deixe um comentário, compartilhe com seus amigos e me acompanhe pelo Medium, Facebook, Twitter, Sweek, Wattpad, Tinyletter e Instagram.


Até que a morte nos separe

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“Até que a morte nos separe” foi a frase que finalizou os votos do meu casamento. Eu queria tirar esse trecho, por achá-lo mórbido, mas Renan fez questão de mantê-lo. “O que Deus uniu só acaba quando Ele quiser”, disse o homem que um dia amei com a anuência de um padre.

A morte veio nos separar anos depois. Renan morreu após comer camarões salteados na manteiga. Esse prato foi o que dividimos quando nos conhecemos. Nessa época, eu ainda podia me esbaldar. Em camarão ou em qualquer outra coisa. Depois, passei a ter uma alergia severa desse alimento e uma vida restrita a dois quartos, um banheiro e uma cozinha.

Renan me obrigava a preparar essa iguaria e isso era só mais uma das coisas que ele me forçava a fazer. O camarão salteado na manteiga não era um prato que ele consumia por romantismo e nostalgia, era somente parte de mais uma de suas ameaças. Enquanto comia, ele dizia: “Se eu quiser, te faço engolir esse pedaço, vadia”, e eu pensava que, um dia, ele terminaria sua refeição me vendo estrebuchar na sala de jantar até morrer.

Quando ele caiu morto, logo após o almoço, sorri pela primeira vez em anos. Não achei que esse dia chegaria. Pelo menos, não dessa forma. A morte sempre cercou nosso casamento e tudo indicava que eu iria primeiro e pelas mãos do meu então marido. Mas, entre nós, fui eu que sobrevivi. O que Deus uniu, eu separei com vidro triturado.


Texto publicado originalmente no meu perfil na Sweek para o concurso #MicroDia. Posteriormente, ele foi eleito um dos finalistas no concurso SweekStars2018.


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Hortifrúti

“Trinta ovos graúdos por dez reais” disse uma voz grave, rouca e mecânica. Me interessei, mas não parei por saber que teria que voltar para casa se comprasse algo e assim a caminhada acabaria ficando para outro dia.

Não dei nem três passos e ouvi “Temos batata, cebola, alho e manjericão”. “É, dá pra evitar uma ida ao supermercado”, pensei e fui procurar o carro de som. Não havia nenhum. “Maracujá baratinho”, a voz dizia enquanto eu andava pelo quarteirão sem achar qualquer estabelecimento aberto. Fui, então, atrás de alguma barraquinha, ambulante, ou qualquer coisa do tipo e não encontrei nem feirinha e nem vestígio de um homem com um megafone.

A voz agora anunciava batata baroa, ovos de codorna e tomatinhos por um preço nunca antes visto, mas eu já não queria mais saber. Segui o meu caminho, mas mesmo depois de três quarteirões, eu ainda ouvia o anúncio das promoções. E, de novo, não havia nada que indicasse de onde vinha o som ou onde estava a comida.

Tem quem comece a ouvir zumbidos um dia e passe a escutar esses sons o resto da vida. “Será esse o meu caso?”, cogitei enquanto refletia se os preço dos ovos nesses anúncios mentais continuaria o mesmo ou se modificaria por causa da inflação.

Corri para fugir desse pesadelo e, ao chegar na porta de casa, finalmente deixei de ouvir que as bananas pratas estavam no ponto.


Texto publicado originalmente no meu perfil na Sweek para o concurso #MicroPorta. Se você gostou desse texto, deixe um comentário, compartilhe com seus amigos e me acompanhe pelo Medium, Facebook, Twitter, Wattpad, Tinyletter e Instagram.


Uma sexta excepcional

Por Thaís Campolina

Toda sexta tem trânsito, correria e gente desesperada para chegar logo em seu destino. Dá quatro horas da tarde e as ruas se tornam impraticáveis. É muita gente, é muito carro e todos os ônibus estão lotados.

Nessa última, o caos foi especial e começou até mais cedo. O Brasil tinha se classificado para as quartas da Copa do Mundo e jogaria contra a Bélgica às 15 horas. Às 12:35, uma mulher loira entrou no ônibus certa de que não havia risco de perder nem um minuto do jogo. A certeza logo passou.

Pela janela do ônibus, se via gente vestida de verde e amarelo e uma quantidade absurda de carros, ônibus e até mesmo caminhões parados. Alguns com bandeirinhas, mas a maioria sem. Trânsito igual a esse só em véspera de feriado prolongado e com chuva.

Logo os passageiros começaram a gritar para o motorista acelerar, e o homem, aflito, respondia que pra isso teria que passar em cima da carraiada toda. A trocadora tentou tranquilizar as pessoas ao seu redor e comentou sobre a possibilidade de ouvir o jogo pela rádio. Não adiantou nada. A essa altura, o que apertava mesmo era a fome. O receio maior não era mais perder algum lance e sim aparecer no churrasco da família bem naquela janela de tempo em que não há carne nenhuma na churrasqueira.

Para distrair, as pessoas começaram a organizar um bolão e tentar antever placares. Era gente demais e chutes considerados possíveis de menos, por isso o papo acabou se transformando em um bolão de quando o ônibus chegaria no bairro.

Uma mulher, vestida com uma blusa que falava em Hexa 2014, disse que chegaríamos no final do primeiro tempo e que teríamos tomado dois gols. O que foi a hipótese mais pessimista feita pelo grupo e a mais próxima do placar final. Um cara de terno e gravata estimou que chegaríamos aos vinte minutos e veríamos o primeiro gol do Brasil assim que sentássemos no sofá. Todos que acompanhavam esse blablabla vibraram com essa.

Uma jovem de tranças coloridas consultou um aplicativo no celular e afirmou categoricamente que em 25 minutos estaríamos na rua principal do bairro. Uma idosa, toda vestida de amarelo e com um semblante muito parecido com o do Canarinho Pistola, sentenciou contra a estimativa feita pelo Maps e veio com o papo de que o ônibus chegaria no ponto final bem na hora do hino nacional.

No fim das contas, ninguém acertou nem placar final e nem horário de chegada, mas todos viram o sonho do Hexa 2018 acabar com dois gols para a Bélgica ainda no primeiro tempo, sendo um deles gol contra. Quando o Brasil marcou um, a expectativa da virada preencheu corações, casas e bairros, mas toda essa esperança não foi capaz de evitar a desclassificação.

Ainda assim, as vuvuzelas tocaram, as pessoas comeram e mais cerveja foi colocada no congelador. Fora o meio horário e a temática verde & amarela, foi quase igual toda sexta-feira.


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Desconforto

Obrigada, Canva

Calço os sapatos. Podia ser um par de tênis, de alpargata, meus queridos chinelos ou mesmo minha sapatilha que dá calo, mas dessa vez são sandálias de salto alto. Ouvi da moça do RH que ninguém vai me levar à sério sem sapatos como esses. De alpargata, pareço uma menina, segundo ela. Uma menina de incríveis 30 anos, eu penso.

Tec, tec, tec. Eu ando pela casa conferindo se deixei ração o suficiente para os gatos. Tec, tec, tec. Volto para o quarto para pegar minha pasta. Tec, tec, tec. Me direciono para a porta.

Joselino estranha o barulho que faço ao andar e nem se aproxima para se esfregar nas minhas pernas como sempre faz, mas mia baixinho, porque sabe que só voltarei dez horas depois. Juanita sobe na mesa e oferece a cabeça para eu acariciar antes de sair. Quando me aproximo, vejo seus olhos atentos aos meus passos. Nem ela aguenta o barulho desses sapatos.

Assim que entro na empresa, visto meu casaquinho. Sento. Ajeito a mesa. Checo e-mails. Bebo uma xícara de café. Confirmo minha agenda. Redijo um contrato. O tec, tec, tec dessa vez é barulho do teclado. Separo uns documentos, estudo o que eles dizem e me preparo para reunião do dia.

O homem mais velho da mesa me pergunta se eu sou filha do dono da empresa. Não, eu não sou. Meus pés doem por causa dessa maldita sandália, mas eu ainda não sou levada à sério. Filha, esposa, amante. Todas essas possibilidades parecem mais certas para eles do que uma promoção por mérito.

Apresento nossos produtos e os documentos que comprovam o bom desempenho deles no mercado. Exponho estatísticas e ressalto que conquistamos os primeiros clientes internacionais há poucos meses.

Ele troca de lugar e senta ao meu lado. Posiciono a papelada em sua frente para que ele possa ler os pormenores do contrato. Sorrio e espero.

Sinto algo na minha perna esquerda. Devo ter esbarrado em alguma coisa. O algo começa a subir. Cogito que seja uma barata. Olho para baixo e vejo a mão branca do velho subindo pela minha coxa. Me encolho toda. Ele ri e sobe ainda mais. Nojo.

Não consigo respirar direito, muito menos falar alguma coisa. De novo não. A mão dele continua em mim. Me culpo: “Se fosse uma barata, eu gritaria”. Olho para o nada, ainda paralisada, enquanto respiro fundo e junto toda a força que me resta. Com ela, me levanto, abandono a sala e sei que com isso perdi essa venda e alguma coisa em mim.

Me sinto anestesiada. Não noto mais os sons que faço ao andar, digitar ou mastigar e engulo a comida do meu restaurante preferido sem conseguir diferenciar o gosto dos alimentos.

Quando volto do almoço, meu chefe me chama para sua sala. “Esses clientes já eram certos, que merda você fez?”, ele berra. O andar inteiro ouve. Choro. Balbucio palavras. Nenhuma com sentido. Ele grita ainda mais comigo.

Respiro fundo e recomeço meu relato. Com a voz embargada, conto o que aconteceu. Meu chefe reage dessa vez sem gritaria e me manda ir para casa descansar. Mas antes de eu sair pela porta, ele faz questão de dizer: “Ele não ia fazer mais do que isso, dava para você ter aguentado e garantido o negócio”.

Saio da sala ainda aos prantos, pego minha bolsa e me direciono para o elevador. Ouço cochichos e todo mundo me olha como se eu tivesse feito uma cagada daquelas. A palavra incapaz parece estar escrita na minha testa. Não tenho dúvidas que continuariam me julgando dessa forma — ou pior — se soubessem como perdi a venda.

Os sinos da igreja me contam que são duas horas. Ouço as badaladas com uma atenção absurda. Me concentro em cada uma delas para fugir das memórias e pensamentos que vieram à tona. Tem algo errado comigo, concluo. Meu corpo me trai. Ele provoca os homens.

O ressoar dos sinos não é o suficiente. Dentro de mim, eu grito: “De novo não!”. O coração acelera, bate desritmado. Eu tento respirar fundo, olhar para as pessoas e imaginar suas vidas.

Vejo uma jovem de vinte e poucos anos. Ela tem o cabelo escorrido, diferente do meu, que é cacheado. Está de coturno, veste uma meia calça roxa, um vestido floral e uma jaqueta jeans preta. Esse é um look que eu usaria, penso. Ela parece bem.

Vejo também uma moça de dreads coloridos, calça jeans e camisete preta. Ela parece aflita com o tempo. Toda hora olha para a tela do celular e para o horizonte onde o ônibus alguma hora vai apontar. Ela está de mochila. Talvez atrasada para uma aula, algum estágio, uma prova. Não sei.

Não tem mais ninguém para olhar por perto. O ponto está vazio. Tento me concentrar então em quem passa. Eles andam rápido demais e eu volto a me perder nos pensamentos que tento a todo custo evitar. “Como eu me odeio” é um deles.

Um carro passa bem devagar e o homem dentro dele faz gestos sexuais e grita “Gostosas” para as três mulheres paradas sozinhas no ponto de ônibus.

Não aguento. Desabo. Reconheço as memórias que tento evitar. Vejo uma nova entre elas. Uma voz masculina ecoa na minha cabeça. Ela me chama de vagabunda, diz que tem algo de errado comigo e que eu provoco os homens. Ouço de novo “dava para você ter aguentado”.

As duas moças me olham chorar com solidariedade. Não me sinto digna desse apoio. Ambas se aproximam e falam que vai ficar tudo bem. Respiro fundo. Tento sorrir. A jovem de cabelo escorrido me oferece um abraço. Aceito. A moça de dreads diz “esses caras são nojentos”. Me ouço respondendo “uns desgraçados” e essa é a nova frase que começa a se repetir em minha mente, enquanto vejo elas entrarem no ônibus 9410.

O cheiro de churros domina o ponto de ônibus. Salivo. Corro atrás do carrinho, os sapatos de salto me atrapalham mais uma vez e eu os arranco dos pés. Descalça no centro da cidade, escolho se o recheio será doce de leite ou brigadeiro. O gosto da massa do churros se mistura com o salgado das minhas lágrimas.

Desgraçados.


Essa história foi publicada originalmente no meu perfil na plataforma Sweek e foi finalista no concurso literário SweekStars2018.


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Dia de caça

Obrigada, Canva

De salto e terninho, me sentei em um bar conhecido por vender chopp em dobro para engravatados durante o happy hour. Rapidamente, um cara me abordou. Respondi “Não, eu não estou acompanhada, moço” e o jogo começou.

Trocamos palavras, muitos beijos e alguns sorrisos e eu falei para ele vir comigo. Peguei sua mão e com jeitinho o guiei para fora do bar. “Vamos para um lugar mais reservado?”, eu disse enquanto o levava para o meu carro.

Encontramos minhas amigas pouco tempo depois. No olho, avaliaram com muito gosto o material que eu tinha levado e brincaram dizendo “Esse vai dar um trabalho, hein?”. Ele riu todo faceiro, com a certeza que tinha tirado a sorte grande. Juntos brindamos com cosmopolitans nas mãos.

Meia hora após o brinde, ele acordou e se deparou com muito mato, pouca luz, comigo e com minhas amigas. Nenhuma de salto, todas vestidas para matar: calça, coturno e espingarda. Demos uns minutos para ele tentar se esconder e saímos à caça.

Acertei suas costas e subi três posições no placar. Na próxima semana, já alcanço o primeiro lugar. É tipo um Counter Strike, mas no lugar das balas, usamos dardos tranquilizantes e depois devolvemos o animal para seu habitat, o bar.


Texto publicado originalmente no meu perfil na Sweek para o concurso #MicroJogo.


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