As histórias debaixo do tapete

Arte de Aleksandra Waliszewska

Muito mais doloridas que as histórias de gaveta, as histórias que vivem debaixo dos tapetes sufocam umas às outras, amontoadas em suas dores próprias, sem mesmo perceber que, no meio de tanta poeira, tem um mundo de semelhantes caladas encasteladas em suas solidões.

Debaixo do tapete, as histórias não sabem umas das outras. Elas narram seus acontecimentos num murmúrio que encontra com outros e, no fim, todo esses cochichos ecoam como um canto único e triste. Elas vivem solitárias, vagando num labirinto escuro, confuso e aparentemente infinito, como nossas mentes.

Quando uma narrativa, por acaso, escapa, encontrando uma fresta de som, luz e palavra, ela descobre que saiu de um tapete espesso que é capaz de abafar aquela música triste que toca o tempo todo. Estando fora dali, todos a encaram, enquanto ignoram e pisam naquele volume enorme e disforme que se movimenta debaixo do tapete que antes era sua moradia.

A primeira palavra que ela pronuncia de sua história vem como um grito, vem forte, e ela continua falando, falando e falando. Então ela ouve sussurros, percebe que apontam para ela, riem dela, duvidam dela e a acusam. Ela começa a perder a voz, quase emudece, até que lembra que ela foi atraída por essa fresta porque ouviu um relato visceral contado na voz de uma mulher e veio atrás por perceber que quem narrava ficou sem fôlego, sem coragem e deixou a história pela metade.

A história procura a outra história e a encontra caída, sem energia ou força alguma, quase desaparecendo em lágrimas. A história dá a mão para a outra, ambas se levantam e notam a força que têm juntas. Agora potentes, narram si mesmas, falam o que têm que falar, enquanto circulam em volta do tapete levantando sua borda e vendo surgir mais vozes.

Juntas, numa catarse, elas se descobrem um exército armado de palavras.

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Antiescritora

Ilustração minha.

A figura do escritor se sustenta num estereótipo que é basicamente um homem branco, que quando não bebe café, bebe conhaque. É sempre um cara que fala pouco, não gosta de fazer social e escreve madrugadas a fio. O escritor padrão é um cara blasé que acha uma futilidade tudo que não o interessa. Há quem diga que o “escritor raiz” tem que tocar o papel durante o ato de fazer um texto, seja com lápis, caneta ou máquina de escrever. Outros falam que tem que ser solitário acima de tudo.

Sempre escrevi, mas nunca cumpri os requisitos para tirar a carteirinha. Do café, gosto só do cheiro. Sou dada às palavras, sejam elas escritas ou ditas. São as conversas que me movem, adoro a contação de histórias e as pequenas crônicas do cotidiano que cabem nos casos que narramos e ouvimos.

Na madrugada, eu encontro o sono. Para existir, preciso dormir oito horas diárias. Só bebo cerveja artesanal e com companhia. Sou mulher, então supõem que escrevo listas de compras, anoto compromissos em agendas e falo sobre casamento e príncipes em diários. Escrevo com o que tiver na minha frente: papel e caneta, bloco de notas do celular ou computador. Para não perder ideias, anoto com o dedo frases no box do banheiro cheio de vapor. Mas confesso que tendo ao preciosismo do papel e caneta quando faço poesias.

Quis caber nesse rótulo muitas vezes, me desqualifiquei como possível escritora só por não ser indiferente o suficiente, rir demais e morrer de preguiça dessa idolatria pelo café. Às vezes até brinco com esse estereótipo e escrevo na primeira pessoa como se eu representasse bem esse padrão. Até porque o mundo da escrita me permite usar a primeira pessoa do singular e criar histórias narradas por um eu que não sou eu.

Usar essa persona escritora como uma identidade sua ou de um personagem se tornou um clichê que desencoraja quem está tão longe do que foi eleito como “O Portador Da Carteirinha de Escritor” e transforma essa figura em algo quase sacro, como se a atividade de escrever fosse um dom divino que carrega junto o tormento, estranhamente qualificador, de não aguentar o Outro.

Pego emprestada a ideia de anti-herói e quando a insegurança bate, me assumo como uma antiescritora. Não caibo no que se espera do escritor clássico e sei que o grupo composto por quem escreve é heterogêneo demais para se definir um padrão, mesmo que, em partes, ele seja o que a gente vê em peso nas prateleiras das livrarias.


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10 dicas para um bom carnaval

Imagem da campanha #CarnavalSemAssédio.

1 — Se hidrate e vista roupas e calçados confortáveis.

2 — Mulheres vão para a folia por diversos motivos. Algumas querem ficar com pessoas, outras querem só dançar, algumas vão só para beber, outras vão pelas fantasias. A mulher estar ali não quer dizer que ela quer ficar com alguém e muito menos que esse alguém tem que ser você. Afinal, querer dar uns pegas não é querer dar uns pegas em qualquer um.

3 — A fantasia da moça é curta? Isso não quer dizer nada! O shortinho dela não é um convite e ela não merece menos respeito que ninguém por causa dele.

4 — Viu dois homens ficando? Viu duas mulheres se beijando? Respeite! E respeitar inclui não insistir para participar ou ficar encarando, viu? Deixe as minas em paz, a sexualidade delas não existe para seu entretenimento.

5 — Se interessou por alguém? Quer chegar mais? Troque olhares, flerte, converse, seja criativo. Puxão de cabelo e de braço não tem vez! E, lembre-se, beijo forçado, mão na bunda e afins não só te faz um babaca, te faz também um criminoso.

6 — Na hora de chegar mais, saiba que o não é sempre uma possibilidade e o respeite. Insistir não é respeitar, beleza?

7 — Não tem essa de “vou embebedar a mina pra ver se ela dá mais fácil”, viu? Se a pessoa está embriagada demais para consentir é estupro de vulnerável. Cu de bêbado tem dono sim!

8 — A pessoa topou? Aproveite, mas lembre-se que todo mundo pode mudar de ideia no meio do caminho, inclusive você. O “não” tem validade mesmo depois de um “sim”.

9 — Use camisinha, proteja-se.

10 — Lembre-se de que fantasiar-se de estereótipos de grupos oprimidos não é algo legal e nem engraçado, é ofensivo. Deixe o que você chama de “fantasia de nega maluca” em casa.


Texto meu originalmente publicado no Ativismo de Sofá em apoio à campanha #CarnavalSemAssédio.

O ódio que nos habita

Ilustração minha. Descrição: dois homens e uma mulher com expressão raivosa e a palavra ódio escrita de diversos tamanhos nos espaços vazios.

Sentir medo e sentir vontade de se vingar é uma reação natural. A questão é que a gente não pode requerer que o Estado se vingue por nós. Esses sentimentos não podem pautar políticas estatais e nem serem usados para justificar a barbárie.

Eu entendo o medo que nos faz sentir essa vontade de se vingar e todo esse ódio, mas ele não deve servir de argumento para política pública. Eu também sinto medo e apesar de eu não gostar disso, eu tenho que reconhecer que encontro parte desse ódio em mim também, mas ele está aqui, escondidinho pela razão.

O ódio mora dentro de nós, a gente tem é que decidir se ele vai nos guiar ou não. Escolher negar a presença dele na gente é perigoso porque é ter certeza que tudo que a gente sente não o reproduz, o que é falso. Principalmente quando vivemos num tempo que o que nos faz “cidadão de bem” é só conseguir enxergar o ódio no Outro, jamais em si mesmo.


Publicado originalmente na minha página do Facebook.

O corpo sem culpa

Ilustração minha. Descrição: som, caixa de som, símbolos musicais, balões e uma moça dançando com os escritos “O corpo é uma festa”.

Uma das frases célebres de Eduardo Galeano comenta sobre as diversas maneiras de se encarar o corpo de acordo com os ideais da igreja, da publicidade e da ciência. Para igreja, o corpo é uma culpa, para a ciência uma máquina e para publicidade um negócio. Sempre amei essa fala dele porque ela termina com o corpo se afirmando como uma uma festa.

Para mim, o corpo é uma festa. Ele funciona, diverte, às vezes se excede, faz parte da nossa identidade e é também social. Ser uma festa é o que faz com que as pessoas e instituições queiram tanto controlá-lo. Vivemos num tempo em que querem fazer com que essa festa seja comedida, funcione numa lógica de corpo-máquina. Tudo planejado, tudo medido, tudo pesado, todas as calorias contadas. A frase de Galeano precisa de uma atualização: para uma visão terrorista da saúde, que se apoia num padrão de beleza irreal, o corpo é culpado por ser orgânico e não robótico.

O corpo pode também ser máquina, não nego, mas se a gente só o define assim, a gente finge ignorar que o funcionamento dele é humano e justamente por isso às vezes ele falha, a gente exagera, a gente se diverte. Ele é mais do que funcionalidade, ele também é a gente e a ferramenta para que a gente viva conforme o que nos faz feliz.

A máquina precisa de uma quantidade certa de combustível. Nem um pouco a menos, nem um pouco a mais. Encheu o tanque, acabou. E esses tempos dizem que a gente tem que funcionar assim, como se cada refeição fosse uma ida ao posto.

O corpo é parte de nós e a gente é bicho humano, ser social, e para nós a comida tem um significado muito além desse que nos trata como maquinário. Comer é importante e não só para nos manter com o tanque cheio para os dias que irão vir, mas também porque dividir comida com alguém, cozinhar junto com o outro ou fazer uma comidinha gostosa para uma pessoa querida é parte do que entendemos como convívio humano, demonstração de carinho e conforto.

Quando a gente pega a comida e a resume em algo que tem que ser sempre funcional, a gente ignora o significado do almoço com a vó no domingo, da jantinha de aniversário de namoro e do petisco que comemos com os amigos. A comida é parte essencial de como a gente vive o mundo das relações e adicionar culpa ao ato de comer é fazer com que cada momento que deveria ser de compartilhamento, seja de culpa, sofrimento, ansiedade.

O corpo é uma festa, justamente por isso a hora de comer é mais do que simplesmente nutri-lo de forma regrada, culpada, comedida. O corpo se alimenta também dos momentos que vivemos, das relações que cultivamos e principalmente, de quão saudável nossa mente está. A culpa não tem que ter espaço na mesa, a festa que somos sim. Somos mais que funcionais.


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A maior das impostoras

Ilustração minha.

Pensei nesse texto numa quinta-feira na sala de espera de uma consulta médica. Como boa impostora que sou, não estava com nenhum dos meus muitos caderninhos na bolsa e só anotei no bloco de notas do celular uma verdade que eu estou cansada de esconder: “eu sou a maior das impostoras”.

Comprei mais um caderninho há umas semanas, mesmo tendo dois em casa ainda não utilizados. O novo caderninho carrega em sua história uma compradora que alegou que ele era necessário porque sua capa era toda sombria e ela, que sou eu, queria escrever histórias de terror e suspense nele.

Impostora que sou, sei que eles continuam com suas folhas em branco e sem contar histórias não porque eu não escrevo, mas porque sei que nenhum dos meus contos e causos são bons o suficiente para preencher as páginas tão bonitinhas desses cadernos que compro nas feiras gráficas.

Impulsiva que sou nas minhas promessas, eu me comprometi a fazer textos semanais para o Medium, lançar uma newsletter, publicar um ebook, escrever um romance e ilustrar toda bobagem que eu escrever. Impostora que sou, mantenho tudo isso só no plano das ideias para que tudo continue como um devaneio.

Insegura que sou, desejo elogios, duvido do conteúdo deles e sinto cada silêncio de quem é próximo como uma ofensa e o apoio deles como algo que fazem só por gostarem de mim e não do meu trabalho.

Como boa impostora, eu vivo esperando o dia que as cortinas dos olhos alheios vão se abrir e finalmente verão que eu sou uma fraude. Como a maior das impostoras, cansei de esperar e sofrer com antecedência por isso e me assumo abertamente como uma trapaceira que tem como crime fingir que é boa em alguma coisa, por isso escrevo, posto e mostro para todo mundo toda essa bobagem.


Sou a maior das impostoras, mas não nego minhas referências. Então, eu não posso esquecer de contar para vocês que escrevi inspirada no nome e no primeiro texto da newsletter da Carol Marques. Assine aqui.


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Amor como trajetória

Arquivo pessoal. Ilustração minha.

Desaprendi a escrever sobre amor. Há anos não o faço. Isso não aconteceu porque eu deixei de achar esse sentimento importante ou por decepção, simplesmente eu não sei mais fazer isso. Perdi meu mojo. Só as cartas e zines de amor restaram.

Amor foi o tema principal da maioria dos meus poemas, contos e crônicas por alguns anos. Enquanto eu idealizava o amor, os textos fluíam, brotavam, surgiam até mesmo ao olhar uma rachadura na parede. Eu queria tanto viver e me alimentar de amor, que a escrita servia de sobremesa gourmet após os beijos nas paixões fast food.

Eu definia o amor como algo intenso, louco, inseguro, exagerado e doloroso. Apesar de escrever tanto sobre, eu ainda encarava amar como uma fraqueza, uma vergonha, um sofrimento desejado. A receita para se sentir completa. Eu enxergava uma espécie de glamour em sofrer por amor. Achava bonito isso, sabe? Achava coisa de artista. Achava que era assim que se vivia de verdade.

Aprendi nos filmes, séries e livros que amor era algo a ser escondido ou jogado de forma estratégica, sempre chorado. Tudo que eu escrevia se baseava num jogo de egos em que os envolvidos competiam o tempo todo. O amor era o que tornava os personagens especiais porque ser amado significava que eles eram alguma coisa o suficiente para serem notados por alguém. Eu demorei a perceber que eu não escrevia sobre amores falidos e sim sobre ego, idolatria e controle. Eu narrava a história de gente que se achava um floquinho de neve especial só porque alguém queria estar perto deles ou que definia seu valor com base nisso. Amor era troféu. Lembro de um conto feito por mim que narrava um caso amoroso pela ótica dos dois personagens envolvidos e um deles concluía que ambos estavam perdendo ao encarar o que viviam como uma competição. O interessante é que perder ali podia ser perder a chance de viver um amor saudável ou perder um jogo mesmo. Eu idolatrava uma ideia de amor torta ao mesmo tempo que a questionava.

Minha visão foi mudando e passou a ser mais difícil escrever sobre. Percebi que os conflitos que entendemos como inerentes ao amor não o definem. Agora considero esse sentimento como algo leve e o vejo como uma troca gostosa de carícias,de memes, risadas, sonhos e preocupações de pessoas completas. Pra mim, ele é tranquilo, é se satisfazer ao ficar perto e dividir, se divertir e desabafar deitado na cama antes de dormir. Fazer nada juntos e gostar muito disso e ter um mundo de piadas internas que exteriorizam um pouco da conexão que existe ali. Não são metades que formam um, são pessoas diferentes que juntas potencializam o que a outra tem de bom.

As histórias de amor agora só fazem sentido se contadas cara a cara. Gosto de ouvir como as pessoas se conheceram, como elas estão juntas e o que elas planejam. Gosto de acompanhar a história observando todas as nuances das expressões humanas e acompanhar a felicidade conjunta. O amor é simples demais para ser traduzido só em palavras. A intensidade do amor não é tumultuada, ela é uma sensação imensa de que a simplicidade do que se vive não é explicável. Ele só existe e nos preenche. É a questão da prova que é fácil, só que a gente erra porque acredita que não pode ser tão simples assim e fica procurando algo mais.

Acho que aprendi o que é amor só quando parei de idealizá-lo e passei a vivê-lo.

Para isso bastou descobrir que na palavra amor cabe relações humanas que vão muito além de pares românticos e que qualquer afeto pode ser construído pelos envolvidos sem naturalizar dores e angústias além daquelas que a convivência humana saudável pode trazer.

A palavra-chave do amor, qualquer que seja o foco dele, é vontade de fazer ser bom. Se amor é mesmo um jogo, como dizem os filmes e os conselhos, ele é um joguinho de construção. Peça por peça, se monta e desmonta o que é o amor.


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Celular na mão e carro estacionado no Leblon

Grazi Massafera deixou a academia com o celular na mão. Caetano Veloso estacionou o carro no Leblon. Emanuelle Araújo atravessa a rua concentrada. Chico Buarque compra baguetes para o lanche da tarde. Todas essas manchetes mostram acontecimentos do cotidiano que só se tornaram importantes por causa do sujeito da frase. Sujeito que, ao contrário de nós, tem suas ações eleitas como noticiáveis.

Quando a gente observa cada momento do nosso cotidiano e cria uma manchete para ele, ao mesmo tempo em que a gente se sente treinando para trabalhar em um site especializado em fofoca, surge também o sentimento de que se é importante. Sim, importante. A gente quase se sente de terno dependendo do que você anuncia.

Laura enviou e-mails importantes para a chefia hoje. Laura fez isso com a blusa toda amarrotada e com a calça suja de molho de tomate do almoço. Laura saiu mais cedo da Firma hoje para comemorar com colegas do serviço o sucesso de um trabalho. Se você pegar qualquer um desses acontecimentos e transformar em uma manchete, você fará muita gente (inclusive a própria Laura) encarar a personagem ali exaltada como uma possível executiva de sucesso, a próxima capa da revista Exame ou Caras, não importa.

O efeito é poderoso. Eu sei, parece ser ótimo para dar um boom de autoestima, mas nem sempre funciona como a gente imagina. Se você anuncia detalhes da sua virose dessa forma, o senso de importância não é positivo e você se sente apenas um nojento. Talvez o mais nojento de todos. O nojento que até vira notícia, uma pessoa muito repulsiva.

O dia-a-dia está lotado de possibilidades de estrelar chamadas jornalísticas, se você é uma celebridade. Como? Onde? Com quem? Tudo isso interessa. Privacidade é item do passado. Mesmo se seus passos não interessam a uma legião de fãs, a privacidade já se tornou um artefato de museu. Anunciamos os acontecimentos do dia nesses diários de bordo da vida conhecidos como redes sociais. Adoramos falar onde fomos, marcar nossos amigos nas fotos e responder o “com quem?” espontaneamente. Aqui não tem essa de assessoria. A gente gosta de se sentir especial mesmo, né?

Aline comeu pepino e está com gases. Breno aconselhou Aline a não comer pepino, porque sempre que ele come, ele passa mal. Carol usou delineador num ônibus em movimento e não terminou o ato parecida com um panda. Débora correu na orla da praia. Elisa vomitou no colo de seu pai. Felipe foi a uma barbearia chique — tem até sinuca! — e saiu de lá com a barba de sempre e o bolso bem mais vazio que o normal. Gabriela foi vista entrando em um ônibus. Hélio comprou um refrigerante diet. Isabel foi ao cinema. Janaína fez a feira. Kelly peticionou. Lucas foi visto comendo pipoca. Mari recolheu as fezes de seu cão enquanto passeava com ele. Nádia afirmou que prefere café. Olga usou sua bicicleta. Paulo chorou. Quércia pegou um táxi. Raquel rachou o táxi com Quércia, pois era táxi lotação. Stela foi ao restaurante e fez cara de satisfação quando o prato chegou e também quando ele acabou. Thaís escreveu mais um texto medíocre como exercício de se manter escrevendo. Umberto dormiu até tarde no domingo. Valdívia fez um gol, mas não foi no futebol profissional, foi na pelada dos caras do escritório. Wanessa não é Camargo, mas também ganhou um processo por danos morais. Seu caso não envolvia famoso algum. Seu nome foi parar no SPC e no Serasa injustamente. Xavier abriu uma escola. Ela não tem como público-alvo jovens mutantes, é só uma salinha que reúne professores que dão aulas particulares para quem vai prestar ENEM. Zélia se matriculou na escola de dança.

Sentiu um pouquinho do senso de importância de encontrar seu nome ou algum ato que você fez? Tão reconfortante. Tão útero quentinho. Faz a gente se sentir um snowflake especial, não é? Ao mesmo tempo que dá uma sensação de que o controle não está mais em nossas mãos e que não somos tão especiais assim e que alguém logo vai perceber isso.

As manchetes dos famosos só existem para fazer com que a legião de fãs deles sinta aquela identificação que surge com a percepção de que eles são gente como a gente. A gente gosta disso porque sentir que somos um pouco parecidos com celebridades nos dá uma sensação de que temos valor também e isso só existe porque sentimos que eles estão num patamar diferente. Nesse mundo, nosso patamar é inferior ao deles e é por isso que a gente busca o mérito de se identificar com algo que o famoso faz. A gente quer subir uns degraus e achar que pode olhar para os outros como se houvesse realmente um topo, como se a gente realmente estivesse nele.

Queremos tanto nos sentir um pouco mais especiais.


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