Sobre o que liga garotas, mulheres e outras

Acervo pessoal. Adquira o livro aqui.

Ousado e bem pensado em todos os aspectos, “Garota, mulher, outras” da Bernardine Evaristo é uma obra relevante que mescla ousadia estética – com uma estrutura narrativa sem pontos finais, cheia de quebras e sem marcação de diálogos – com uma construção de personagens impecável e uma história fragmentada, mas bem coesa.

A partir de doze perspectivas, Bernardine constrói uma colcha de retalhos com histórias que, perpassando principalmente pelo tema da filiação, contam um pouco sobre a diáspora africana e a vida das mulheres negras na Inglaterra.

O livro questiona a ideia de que as experiências e características femininas ou negras são sempre as mesmas, mostrando personagens complexas, de diferentes idades e ideologias políticas e suas vivências, inclusive em relação umas às outras. Nesse sentido, chama atenção principalmente a professora homofóbica que tem como amiga mais antiga uma mulher lésbica com histórico militante e a idosa de 93 anos a favor do Brexit que acolhe e ama sue nete Morgan ainda que não compreenda seu gênero.

Essa relação entre identidades, relações humanas e dinâmicas sociais é construída a partir de uma narração que nos permite conhecer como cada uma das personagens fala, sente, se relaciona, pensa e vê o mundo. Com referências abundantes e uso variado da linguagem, a autora e sua tradutora Camila von Holdefer recriam a sensação da oralidade aproximando o leitor de cada uma das personagens. Toda essa intimidade assim exposta produz a sensação de uma conversa íntima e nos instiga como uma bela fofoca. Essa capacidade da autora em produzir proximidade pode chegar até mesmo a ser incômoda, mas é o que ajuda a afastar esse livro de ser lido somente na chave de um caprichado estudo de personagens para uma peça de teatro.

A sensação da leitura é de às vezes nos fazer sentir no meio de um tumulto de vozes e talvez por isso mesmo, vez ou outra e dependendo do personagem, o texto até lembre o Twitter. Bernardine explora como a linguagem diz muito sobre cada falante para construir as personas dessa história, optando por não descrever diretamente as particularidades de cada uma, mas mostrar as personalidades a partir de situações, reações e pensamentos, levando em conta como a escolha das palavras diz muito sobre origens, referências, gerações, amizades e até mesmo sobre como as pessoas querem se apresentar para o mundo. A importância desse critério ganha contornos especiais na história de Morgan/Megan, mas também se faz presente na construção das diferenças entre mães e filhas.

Como essa é uma narrativa focada nas experiências de mulheres diversas e uma personagem não-binária, todas relacionadas, ao menos indiretamente, com a imigração, a violência masculina, racista, lgbtqiafóbica e xenófoba faz parte da trama, sem, no entanto, definir suas personagens somente a partir desses fatos em comum.

Chama atenção também como a autora conseguiu conduzir tantas personagens a um evento em comum, evidenciando assim seus conflitos, contradições e diferenças, mas também suas semelhanças e o mosaico que compõe, de certa forma, a Inglaterra contemporânea e sua história.

“Garota, mulher, outras” é um livro recomendadíssimo, desses que mostram que a literatura é sempre política, seja a feita por Bernardine Evaristo ou por um homem branco aleatório falando sobre escrever, e isso não diminui seu poder, alcance e impacto, inclusive estético. Se literatura serve pra gente elaborar a vida e a condição humana, ela será marcada sempre por essa batalha entre identidade e alteridade que envolve a leitura mesmo entre os mais semelhantes.

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As tantas mulheres que passaram na cabeça de Maria Luiza Machado

Acervo pessoal – Foto publicada originalmente no meu Instagram

“Tantas que aqui passaram”, livro de poemas da Maria Luiza Machado é um catálogo poético de personagens femininas. Formado por 29 mulheres-poemas, essa é uma obra que nos coloca em contato com a condição humana das mulheres, enquanto também evidencia, de forma sutil, aspectos sociais e culturais que influenciam na construção dessas subjetividades muitas vezes marcadas por diversas angústias. Solidão, maternidade, trabalho, fé e relacionamentos amorosos e familiares são alguns dos temas abordados pela autora a partir de uma perspectiva íntima, que nos coloca em contato com os pensamentos secretos de cada uma dessas personagens.

Os poemas de Maria Luiza soam narrativos para os fãs de prosa e bons personagens e exploram repetições, pausas e alguns aspectos da oralidade, lembrando muitas vezes fluxos de consciência. A construção poética dos detalhes cotidianos expostos em alguns dos versos também chama atenção e ajuda a formar cenários e sensações, fornecendo uma espécie de lupa para quem lê. Lupa essa que nos ajuda a investigar um pouco mais de cada uma dessas personas que nos são apresentadas.

Como diz o posfácio de Monique Malcher, terminamos de ler esses poemas nos sentindo povoadas. Não sendo e sendo cada uma dessas mulheres que sempre nos lembram alguém, às vezes até a gente mesma.

“Tantas que aqui passaram” é sobre o universo que cabe em cada pessoa, uma obra que nos faz pensar no quanto semelhança e diferença constroem o universo da pluralidade e isso tem uma importância especial em um universo que insiste em impor padronizações.

O livro é uma publicação da Mormaço Editorial, editora independente fundada em 2020 e coordenada por Maria Luiza Machado e seu sócio Daniel Pasini. Ele foi diagramado e ilustrado por Isabela Sancho e viabilizado através de um financiamento coletivo. Esse é o terceiro livro da autora, que nasceu em 1995 em Feira de Santana na Bahia e mora em Salvador desde 2014. Os livros anteriores dessa jovem escritora foram: “Algumas histórias sobre a falta” (2018) e “Todos os nós” (2019).

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Breves observações sobre um livro incomum

Acervo pessoal – Instagram – Compre seu livro aqui!

“Pequena enciclopédia de seres comuns”, escrito por Maria Esther Maciel, ilustrado por Julia Panadés e editado pela Todavia, é um livro para quem gosta de contemplar e tem um interesse especial no singelo, no sensível e na natureza.

A cada página, o leitor encontra um verbete animal ou vegetal escrito de maneira criativa e poética, em um mix que une o olhar científico e as possibilidades do mundo inventado da linguagem.

Os verbetes seguem uma separação única que brinca com nomes e situações: primeiro as Marias, depois os Joões, sem esquecer das viúvas e viuvinhas e os seres híbridos e curiosos que em um mesmo nome unem espécies.

Em todas as partes da obra, encontramos plantas, aves, insetos, mamíferos, anfíbios, répteis e peixes que são categorizados juntos a partir de um outro tipo de semelhança, aquela que surge das infinitas possibilidades da nomeação.

Nesse sentido, chama a atenção as espécies inventadas, como a Maria-Vai-Com-as-Outras, o João Doidão e a Viuvinha-Humana, e a abordagem ambientalista que se apresenta de forma sutil nas descrições.

Durante essa manhã fria de domingo, enquanto lia essas páginas tomando sol e a partir da curiosidade e do encanto que o livro me trouxe, reencontrei a Thaís criança, essa menina que sempre brincou de observar animais e depois, ao chegar em casa, corria para anotar e desenhar tudo o que viu, como uma pesquisadora de campo que investiga todas as coisas sem registro. Eu brincava de fazer relatórios que mesclavam o lúdico e o biológico, catalogando a partir da minha percepção tudo que ia conhecendo e fantasiando, como esse livro nos encoraja a fazer ao incentivar um reencontro com um outro mundo ao nosso redor, esse mundo fascinante feito de detalhes, que só podem ser vistos por quem ainda é capaz de olhar por olhar. Esse mundo que tento recriar a partir da linguagem quando escrevo.

Esse post faz parte da série #domingodabanalidade, hashtag que uso para reunir comentários e mini resenhas sobre livros que combinam perfeitamente com esse dia da semana. No caso de “Pequena enciclopédia de seres comuns”, a recomendação vem junto com um belo conselho que dei no Instagram e reitero também aqui no blog: quando vocês estiverem com esse livro em mãos, não se esqueçam de intercalar palavras lidas e desenhos observados com pausas para contemplação do céu, do mato, dos bichos ou da sua própria memória ou imaginação. A leitura ficará ainda mais gostosa.

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Algumas notas sobre Cães e Grilos

“Cães”, obra de estreia da escritora baiana Júlia Grilo, me encontrou durante uma conversa com uma amiga. Esse não foi um encontro fortuito, mas nele também não fui parte ativa, o livro foi sujeito aqui, ainda que tenha sido apresentado por intermédio de alguém. Não me entenda mal, o arquivo não surgiu do nada no meu Kindle, mas Cafeína já estava comigo antes mesmo de eu começar a ler, porque eu também tive cachorros na infância e todos eles sempre foram parar no meu quintal.

Desde as primeiras páginas, Cafeína e a narradora humana me pareceram próximas demais de quem eu fui, sou e provavelmente serei. Posso dizer que as pequenas rebeldias das duas me encontraram de alguma forma, seja na via da identificação, seja na do desconforto. Talvez agora seja a hora de falar que esse não foi um livro fácil de ler, apesar de eu ter amado a experiência por n motivos, inclusive o de ter encontrado no texto uma fluidez de quem gosta de conversar, ouvir e refletir sobre tudo e todos. Júlia Grilo estreia com uma história incômoda, essa é a verdade. Júlia quer que a gente termine o dia pensando em sujeição, poder e alteridade e isso está evidente em todas as suas páginas.

A mistura de elementos autobiográficos com a criatividade do olhar da narradora para os animais faz dessa história um romance com elementos de formação, como o amadurecimento da cadela e da menina, marcado pela perseguição de uma ideia, de um questionamento, de uma reflexão filosófica que faz a gente se sentir transitando em um texto híbrido, que brinca de ser ensaio quando ele quer, falando inclusive de amor. Essa simbiose de temas e estruturas nos faz pensar no bicho humano, esse que, como mostra a autora, não se coloca como um animal mesmo sendo um. E é na violência que a covardia de não se ver como bicho às vezes toma forma.

Nesse sentido, chama a atenção como a autora aborda temáticas relacionadas com machismo, racismo e classe, fazendo uma miscelânea com as experiências da cadela e da narradora que tangenciam o sexo e até a cor de pele e pêlo, trazendo a partir do animal a crítica aos comportamentos, práticas e problemáticas humanas que aproximam as duas espécies a partir da identificação pela obrigação de subordinação feminina.

Esse é um livro que faz a gente pensar em todo o antropoceno, ir longe, querer brigar com quem exclui os bichos do céu (e do inferno) mesmo sem acreditar nessas coisas, mas confesso que, em meio a esse mundo de reflexões, eu pensei, principalmente, nos cães que amei, nos cachorros que conheci, nos peludinhos que um dia vi passar pela calçada.

“A existência de Cafeína escancarava as minhas limitações e deixava-as mais robustas. Ela era tão diferente de mim — e ainda assim vivia.” 

Os meus

Meu primeiro cão veio com nome e história. Faruck, o primeiro de seu nome, chegou na minha casa antes de completar o desmame e eu, junto da minha mãe, o alimentei com fórmulas caninas ideais para aquela situação. Tamanha precocidade não foi por escolha dos meus pais, deixo claro. Meu primeiro cão foi, antes de meu, um presente rejeitado que a filha adolescente de uma colega da minha mãe ganhou de um ex-namorado.

Faruck era um pinscher tamanho pp preto com peito e barriga e algumas patas brancas, com detalhes minúsculos na cor de caramelo. Adorável e estranhamente humano e adulto, ele dormia no quintal, mas passava todo o resto do tempo dentro de casa. Sendo adorável, muito humano e adulto, ele era considerado limpo o suficiente pra isso. Faruck morreu em um acidente idiota quatro ou cinco anos depois dele chegar na minha casa. Independente da seriedade da minha narração, risadas desoladas seguidas de pedidos de desculpas surgem sempre quando eu narro o acidente que tirou sua vida: Faruck saiu em disparada com medo de ser pego fazendo xixi fora do lugar, escorregou no próprio xixi e bateu a cabeça na quina da porta da cozinha, caindo morto na hora.

Um mês depois, buscamos na casa de um jardineiro conhecido do meu pai um outro cachorrinho. Faruck, o segundo, era diferente de seu antecessor, apesar de ter ganhado o mesmo nome. Não era tão pequeno assim, era todo marrom e foi desmamado na hora certa. Faruck viveu 17 anos e 6 meses e, cá entre nós, era parente de um pinscher com certeza, mas não um pinscher puro. Faruck foi meu melhor amigo e também o melhor amigo do meu irmão. Eu poderia escrever linhas e mais linhas contando como brincamos juntos, como nos apoiamos, como fomos íntimos mesmo nas minhas fases mais distantes, como eu tentei compensar minhas ausências anteriores cuidando muito bem dele no fim da vida, respeitando inclusive a morte como uma possibilidade. Faruck foi eutanasiado em abril de 2019 e está enterrado no jardim da casa dos meus pais junto ao seu cobertor e bolinha preferidos.

E tem o Billy, que também já veio com nome e história, uma história que parece ter alguns traumas inclusos. Billy está vivo, cego de um olho e é um desses pets que nunca aprenderam a brincar. Billy é um pinscher em teoria, mas tem a carinha redonda como a de um chihuahua, o que combina com o cachorro de colo que ele é, apesar de suas práticas nojentas que o impedem de ficar dentro de casa. Ele é marrom chocolate com detalhes em caramelo, um cachorrinho tão bonito que já foi entrevistado pela tv afiliada da Globo da minha cidade. Um cachorrinho tão bonito que, infelizmente, come cocô, mija em tudo e, se a gente der bobeira, rouba papel higiênico usado e leva pra sua casinha.

Billy e Faruck eram irmãos por adoção, mas rivais. Diferentes, mas semelhantes. A relação deles era complicada, não nego, mas acho que dá pra dizer que havia ali uma rivalidade saudável, que, apesar do ciúme e algumas disputas territoriais, envolvia respeito e até preocupação com o outro. Conforme Faruck envelhecia, mais a gente percebia isso. Billy viveu esse luto junto com a gente.

Se a casa virou território ilegal para meus cachorros foi por causa do acidente que tirou a vida do que veio primeiro, mas a proibição quase total só veio mesmo quando o Billy e suas nojeiras chegou. Faruck I, Faruck II, Billy, todos são ou foram cães de quintal, talvez cães de quintal privilegiados perto de Cafeína, mas cães de quintal. Eles tinham espaço para correr e brincar, vacinas em dia e, por serem tão pequenininhos, viviam sendo carregados pra dentro nos dias após banho, provando que o privilégio de ser fofo é um fato canídeo, ao menos para os cães desse tipo. Billy que está vivo, apesar de velho, pode confirmar.

“Essa história pode parecer ter pouca ou nenhuma relação com Café, mas tem muita. Café não se fez sozinha, tampouco prontamente. Seu corpo é também produto de uma ação conjunta de várias mãos, várias mãos de vários tipos, tipos que apalparam e acariciam em ordem de forças diferentes; forças que a atravessaram em varias direções.”

Voltando ao livro

Ler “Cães” foi uma experiência que envolveu lidar com o meu luto pelos bichos da minha vida. E também o luto por todos os outros bichos, domésticos ou não, que eu inclusive como mesmo após mais de dois anos de vegetarianismo. Ler “Cães” me fez pensar em dominação e no quanto é preciso desaprendê-la. E eu me pergunto agora: e é mesmo possível desaprendê-la por completo?

“De tão dessemelhantes, eles ligaram-se um ao outro e suas dessemelhanças fizeram par”

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Notas sobre as cidades que afundam em dias normais

Acervo Pessoal – Imagem postada também no meu Instagram
O encontro

Cidades afundam em dias normais, o mais novo romance da escritora, podcaster e ilustradora Aline Valek, foi tema de um encontro especial, com participação da autora e tudo, no meu clube de leituras, o Clube Cidade Solitária.

Durante o papo, fomos 18 pessoas no total, todas bem empolgadas para compartilhar e ouvir as relações e análises que outros leitores com repertórios tão diferentes. Cada comentário puxando o outro, ampliando a leitura de cada um, num movimento que incluiu a própria Aline, que trouxe para gente muitas informações sobre seu processo criativo no todo e também o envolvido diretamente na construção dessa história.

Em certo momento, a escritora compartilhou que esse livro começou a nascer a partir de uma caixa de fotos de pessoas desconhecidas que ela teve acesso. Vendo aquelas imagens sem sequência e sem demais informações, a ideia surgiu.

A narração desse processo me lembrou a descoberta do trabalho da fotógrafa Vivian Maier. Segundo o documentário Finding Vivian Maier, uma caixa de fotos de trabalhos dela foi arrematada por um caçador de tesouros em um leilão. Ao abrir a caixa e observar as imagens, ele suspeitou que aquelas fotos eram mais interessantes do que pareciam e, a partir desse momento, essa fotógrafa que passou a vida na invisibilidade do trabalho de babá começou a ser descoberta.

Esse filme se esforça para tentar contar a história da fotógrafa a partir do que foi sendo garimpado depois de sua morte. Além das caixas com suas fotos e demais pertences, o que restou de Vivian mora na memória de seus antigos e diversos patrões. O trabalho dos que hoje tentam lucrar a partir dessa fotógrafa muito talentosa é um pouco semelhante ao que tentamos fazer ao ler o livro da Aline, ainda que as fotografias presentes em suas páginas não sejam, digamos, visuais.

A dúvida

Como funciona a memória? A minha, a sua e também a nossa. Como se define o que vamos lembrar e o que vai desaparecer nesse lamaçal de rostos, causos, banalidades, violências e urgências cada vez mais frequentes, talvez frequentes demais para continuar a caber nessa palavra? Como a forma que lembramos afeta como vamos ver aquilo tudo agora e no futuro? Como lembrar e esquecer podem se relacionar tanto com buscar e perder? E quão grande pode ser o abismo entre lembrar e contar o que se lembrou?

Como uma cidade se forma, permanece e afunda? Como uma cidade é lembrada? Como uma cidade atravessa o tempo? E a vida de cada um? Como cada pessoa surge, permanece e desaparece? Como se conta a história de um povo?

Somos o que lembramos? E onde anda a verdade se cada um tem a sua?

Como se dá o processo da memória? E das relações? E da criação? A criação surge a partir da vontade de se expressar? De contar a nossa própria história? De elaborar o que se passou? De ser lembrado e de lembrar? De não deixar desaparecer alguma coisa? De não se deixar desaparecer e nem os seus? Como organizar lembranças pode parecer tanto um processo de colagem? Como cada cena pode parecer tanto uma fotografia? Como falar de tempo, processos, escola e adolescência pode nos fazer pensar tanto no Brasil?

O processo

Pensar na adolescência envolve encarar quem somos hoje e como nos tornamos essa pessoa. Pensar em tempo é se ver exposto às contradições do registro e do esquecimento. Pensar na dúvida é perceber que na maioria das vezes descobrir novas indagações é mais interessante ou, no mínimo, mais realista que qualquer resposta que podemos encontrar. Ler esse livro é pensar nesse misterioso processo que mescla o desejo de narrar, de fugir e de ficar.

Os dias normais

As histórias de Kênia, Tainara, Érica, Tiago, Rebeca e outros antigos moradores de Alto do Oeste são relatos individuais de uma cidade alagada em um processo lento e contínuo de abandono. O fim do mundo de cada um desses personagens — e o retorno curioso dessa terra tantos anos depois — foi somente mais uma manchete curiosa para o resto do país. Enquanto a cidade afundava, cada um fazia o que podia para não afundar junto, enquanto tentavam seguir suas vidinhas como antes. Ninguém de fora, estado ou não, deu as caras nesse processo que, de certa forma, foi sendo ignorado no dia a dia por todos que ali viviam. A tragédia virou costume, como de fato acontece no Brasil. A tragédia virou fonte de cliques e lucro, como também acontece todo dia.

Cidades afundam em dias normais, além de abordar temas como memória, amizade, adolescência, vida no interior e fotografia e outros processos, artísticos ou não, fala também sobre desalento, declínio e desesperança em um sentido coletivo. O que nos faz pensar também na chegada e permanência do fascismo, e é possível dizer que não deve haver nada mais brasileiro que esses sentimentos nesse momento.

Aline Valek escreveu uma obra que dialoga com nossas urgências e medos e a experiência de leitura dessa história nos ajuda a elaborar a prática de se viver em meio aos diversos fins do mundo que nos cercam. A gente busca respostas imediatas o tempo todo, mas talvez precisemos, primeiramente, entender de onde partimos. A professora Érica concordaria com isso, porque sabe que as memórias pertencem ao futuro. Só se conta histórias para frente”.

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Leia também: “Buscando Vivian Maier”

“Para diminuir a febre de sentir” e a vida como ela é


Conheci a Dalva em uma oficina de escrita no ateliê do Estratégias Narrativas. Era a minha primeira vez naquela salinha, depois de um longo período querendo retornar para a escrita. Não sabia onde colocar as mãos, os olhos e os cadernos, muito menos a vontade de ler, aprender e escrever. Nunca tinha feito uma oficina antes e tudo era uma grande novidade. Por isso, estava acompanhada de uma amiga, a Carol, que, se eu não me engano, é quem me apresentou a possibilidade desse escrever acompanhado e guiado que me enchia os olhos naquele momento. Era a primeira vez dela também, eu acho. Lembro que nenhuma de nós sabia o que fazer, mas a gente sabia que a gente precisava daquilo. Estávamos tão ansiosas que uma semana antes da oficina de fato começar, numa confusão de datas e disposição, acabamos no Maletta numa segunda às 19 horas. Naquele dia, celebramos o início do que ainda nem tinha sido iniciado com cerveja e batata-frita.

Todo debute é uma aventura. Por isso, narro o início de tudo, o que veio antes da leitura e da formação desse texto. Quando fui formular o desafio literário #LeiaComASubjetiva de 2020, listei “livro de estreia” como tema para o último bimestre. Dezembro pede novidades, é o mês que nos lembra do fim, logo do início e, muitas vezes, nos afasta do presente. Entre rituais conscientes e inconscientes, retrospectivas e desejos, o que acontece no aqui e agora é que parece enevoado. Essa é a hora certa de pensar em primeiras vezes. 

No último dia de um ano caótico, triste e destrutivo, li “Para diminuir a febre de sentir” da Dalva Maria Soares, minha ex-colega de oficina que estreou em formato de livro em 2020. A sensação foi de que ela e os personagens de suas crônicas estavam com suas mesas de café postas para receber mais um ano, mais uma pessoa, mais uma estreia. E, como bons mineiros, estavam muito bem preparados para ver chegar mais gente ainda para participar desse momento de troca, afeto e reflexão que só acontece mesmo em torno de uma refeição e da ideia de fim e começo. No meio de leitores e personagens, sentaram-se também as referências. Guimarães Rosa, Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus, Adélia Prado, Emily Dickinson, Criolo, Virginia Woolf, Gloria Anzaldúa e outros, todos em torno da mesa sendo observados também por Fridinha, Scooby e outros cães. Um amontoado de gente que sabe que a vida acontece também quando ninguém está olhando e vê beleza na pequenez da rotina e da história de cada um. Um amontoado de gente que eu passei a olhar diferente, ainda que já os conhecesse e até os acompanhasse, tudo porque a escrita da Dalva, essa que tive contato na oficina e depois acompanhei por anos pelo Facebook, é sempre uma conversa que vai e vem, encontra leitor, encontra memória e carrega junto um mucado dela, dos seus e da gente. 

Dalva é uma escritora que toca quem lê a partir de um relato de um cotidiano invisibilizado. Esse das mulheres simples, das pessoas exploradas, das mães e das filhas que se ligam por conhecer bem os fantasmas que assombram as outras. Esse que se apresenta todo costurado aos livros e autores que ajudaram a formar a autora, mas que não foram e nem nunca serão as únicas fontes de conhecimento dela. O entorno, os afetos e desafetos, a ancestralidade e as vivências, tudo isso também forma, como ela, a partir dessas 15 crônicas, mostra. 

“Para diminuir a febre de sentir” é um livro de bolso, desses bem curtinhos, e foi publicado de maneira independente pela Editora Popular Venas Abiertas. Ele mexe com a gente porque fala da vida como ela é, complexa, difícil e, apesar de tudo, com espaço reservado para o afeto, a cultura, a arte e a imaginação. Fome, violência e desigualdade são lembrados de forma crítica junto aos laços visíveis e invisíveis que impedem a completa desumanização. Dalva sabe muito bem compartilhar o indizível e o não quantificável, o que é, per si, uma forma de resistir. 

Agora entrego esse livro com carinho para a minha avó materna, que viveu por muito tempo bem pertinho de Baldim, o principal cenário dessas crônicas sobre a vida de Dalva. Antes de 2020 acabar, ela merece saber que histórias como as dela também podem estar num livro.


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“Sempre vivemos no castelo” e o poder da dúvida

Acervo pessoal — Adquira os livros de Shirley Jackson aquiaqui.

Tentamos a todo custo desvendar o futuro. Essa talvez seja uma das principais características da nossa espécie. A gente pensa bastante no que vai acontecer. Eu falo isso no achismo, no sentido mais papo de bar possível, mas não duvido que deve ter algum paper dizendo que a maneira que nos preparamos para o amanhã foi essencial na corrida evolutiva ou qualquer coisa do tipo.

Se ontem pensávamos tanto no porvir, hoje pensamos mais ainda. Ouvimos falar de metas, objetivos e sonhos o tempo todo. É a era dos coachs, da vida como corrida, da busca pela produtividade 24/7. Parece que todo mundo tem — ou deveria ter — um plano para si dentro dessa lógica. Enquanto isso, a ciência nos alerta sobre as mudanças climáticas, vivemos uma pandemia respiratória, o lixo que produzimos se acumula nos oceanos e a realidade lembra os 99% da missão quase impossível que é tentar escapar de mais precarização. Resumindo: vivemos numa era que supervaloriza certezas e nos ilude a partir delas, enquanto a incerteza de que há um futuro possível nos cerca.

Que o futuro é incerto, a gente já sabe. Talvez a questão então não seja tanto o amanhã e a forma que conseguimos manter provisões, mas sim a nossa capacidade de formular o tempo no todo. A gente se prepara para o futuro pelo que o passado nos ensinou. A gente formula o presente com as ferramentas que nos foram dadas antes dele. O tempo acontece em nossas análises. O amanhã só existe quando sabemos que o ontem já passou. Talvez por isso a gente valorize tantos os clássicos. Eles nos ajudam a entender o hoje, inclusive esteticamente. E, a partir disso, mas de uma maneira torta, a gente tenta controlar o tempo em busca desse sistema que nos promete certezas, enquanto destrói tudo que talvez fosse capaz de garantir um futuro menos duvidoso.

Meu primeiro contato com a obra de Shirley Jackson aconteceu durante uma pandemia que levou a Organização Mundial de Saúde a aconselhar o isolamento social para a população e isso acabou tendo como consequência individual todo esse fluxo de pensamento sobre certezas e incertezas que você leu para chegar até aqui. Por sinal, acho que eu devo me desculpar por isso. Na verdade, sendo mais exata, meu primeiro contato com a figura da autora também foi nesse período. Antes de 2020, eu sabia que ela existia, que ela referência do Neil Gaiman, Stephen King e Donna Tartt, mas foi com o filme “Shirley”, que não se coloca como uma cinebiografia, tem a Elisabeth Moss como protagonista e foi resenhado por mim na Revista Subjetiva, que conheci um pouco do universo da autora e ela me atraiu.

Poucos meses depois, apesar de eu morrer de medo de tudo que é definido como terror, me arrisquei e coloquei o livro “Sempre vivemos no castelo”, último romance escrito pela escritora, como leitura de outubro do meu clube literário Cidade Solitária. Acabei lendo tudo quase num fôlego só e de quebra vivi um dos encontros mais imersivos do grupo.

O livro — e o papo sobre ele — me pegaram totalmente. As irmãs Blackwood, Constance e a narradora Mary Katherine, são personagens intrigantes: a primeira pela sua passividade, domesticidade e estranha docilidade e a segunda pela sua sede de aventura, estranheza, manias e desejo pela morte de todos que a incomodam. Da grande família Blackwood, sobrou elas, sendo que Constance foi absolvida judicialmente pela morte dos outros, e o Tio Julian, um homem adoentado, mas ainda assim muito espirituoso.

O enredo se inicia com uma ida de Mary Katherine, conhecida como Merricat, ao vilarejo. Todos odeiam Merricat. Ela e sua família são uma pária, mesmo antes da morte por veneno de alguns dos entes que a compunham já eram. Com a suspeita que ronda as irmãs sobreviventes, isso só piorou. A personagem responde esse desprezo e o bullying que sofre com pensamentos sádicos sobre a morte de todos que passam pelo seu caminho. (Sabendo da influência de Shirley na obra de grandes escritores, nesse momento é impossível não lembrar um pouco de “Carrie, a estranha”.)

Ler uma obra narrada em primeira pessoa é sempre um exercício que envolve aceitar ser enganado. Quase desejar por isso. A história, ao começar pelo ponto de vista da Merricat sendo hostilizada, induz o leitor a ficar ao lado dela, ainda que desde o início a personagem já manifeste seus desejos de morte e violência. E seguimos nessa lógica, da cidade para a casa, confiando e desconfiando, enquanto fingimos considerar tudo que está sendo dito suficiente, ignorando a indefinição do mundo que a apresentação de uma única verdade representa.

Acompanhar a narração de Merricat é se deparar com a dúvida o tempo todo. Como personagem imprevisível, infantil, caótica e bem deslocada da realidade, nós, enquanto leitores, nunca temos certeza de nada e por isso temos a sensação de delirar junto. A história contada está contida também no que não é falado, no mistério, em tudo que não sabemos do passado. Cabe a nós somente supor com o pouco que a narradora-personagem nos dá.

O terror construído por Shirley Jackson é centrado nos personagens, nos horrores humanos, no mistério que cercam certas histórias e personalidades. Nos incomodamos com o que não sabemos do outro, com o que a gente pode estar deixando passar, com essa possibilidade de não conhecer o suficiente alguém, seja semi-conhecido ou uma pessoa com quem convivemos diretamente. Queremos saber o que tem de errado ali, mas Shirley não entrega tudo. Ela nos deixa com a dúvida e com o desejo de saber mais.

Merricat tem dezoito anos, mas se comporta como uma criança. Ela é praticamente uma adulta, mas conversa com seu gato Jonas o tempo todo, faz amuletos, escolhe palavras mágicas e enterra coisas no quintal. Constance cozinha muito bem, cuida de plantas e parece entender tudo sobre como essas duas coisas se complementam. Ambas são duas mulheres vivendo isoladas, que seguem solteiras e parecem viver em uma rotina de perfeita simbiose que desde o início do livro já envolve a ideia de isolamento como proteção. Shirley brinca com isso, com esse comportamento que indicaria aos olhos da sociedade uma possível bruxa ou algo muito errado — ainda que não houvesse o passado da família para somar — e com isso aborda o medo do diferente, o peso dos estigmas e o poder dos boatos, enquanto nos deixa, mais uma vez, presos em mais uma indefinição: há ou não algo mágico ou sobrenatural nessa história?

Apesar de um assassinato coletivo por envenenamento ser um dos componentes principais da história, a trama de Shirley não é nada policial. Ela até trabalha um pouco a curiosidade que essas histórias despertam, mas foca sempre naquele restrito e perturbador universo das irmãs. No fim, apesar de tudo que nos é dado, não sabemos das motivações iniciais dessa história. Sem muito do passado, o presente parece uma incógnita e isso abre espaço para que a gente crie toda espécie de teoria para tentar sanar as dúvidas que ficaram. Precisamos aceitar a incerteza que fica e a completa falta de controle da vida e dos outros que isso indica, um exercício difícil para os nossos tempos. Só sabemos que as duas sempre viveram no castelo e que o melhor próximo passo que podemos dar é começar a leitura de “A assombração da Casa da Colina” logo. A gente diz que é por mera curiosidade, interesse em ler mais da autora, mas a grande verdade é que a gente sente que precisa entender algo mais e por isso inicia uma busca por qualquer coisa que possa funcionar como explicação. A gente acredita que os respingos de uma obra na outra ou da vida no trabalho literário indicarão as respostas que não tivemos e não aceitamos não ter. Shirley provavelmente sempre soube que nada assusta mais uma pessoa do que não saber.


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“País sem chapéu”: morte, busca e pertencimento no Haiti

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Dany Laferrière é jornalista, escritor e roteirista de origem haitiana. Aos vinte e três anos, o autor saiu do país e foi viver em Montreal no Canadá por temer ser assassinado pela milícia paramilitar do ditador Baby Doc. Sua trajetória pelo continente faz com que ele se defina como americano, por ser parte de um todo muito maior do que seu país de origem ou país de morada. E eu sei de tudo isso não por simplesmente ter lido na Wikipedia seu artigo, coisa que eu também fiz, mas porque a própria obra dele parte de sua biografia. Dany então é um desses autores que escrevem o que muitos chamam de autoficção e quase tudo do que eu disse nesse parágrafo é apresentado para o leitor em “País sem chapéu” como a história de seu protagonista.

“País sem chapéu” é um livro que se inicia com o retorno do narrador-personagem ao seu país após 20 anos morando no exterior. Ele se coloca ali como um mero observador, tanto porque isso é necessário no ofício de escritor, quanto porque ele esteve fora por tempo demais e agora sente que não entende mais nada. De certa forma, ele reconhece que passou a possuir um olhar estrangeiro, logo possivelmente estereotipado, mesmo sentindo que nunca deixou de pertencer ao Haiti. Ainda que isso possa ser colocado como algo individual ou mesmo ficcional, as sensações descritas na obra sobre voltar para casa depois de tanto tempo e a questão do pertencimento dizem muito sobre o que é ser haitiano em outros lugares do mundo — e um pouco também sobre ser haitiano ali, vivendo tudo aquilo que motivou muitos a buscarem outro lugar para viver.

A complexidade do país e sua cultura é abordada pela obra a partir da divisão do livro em vários capítulos que recebem dois nomes: País Sonhado e País Real. Além disso, cada novo capítulo é anunciado com um ditado próprio do país colocado originalmente em creole — o que encoraja o leitor a pensar também nos ditados de sua cultura, criando assim um diálogo além da obra — e também reafirma um significado político ao expor o que é posto como sabedoria popular. O País Real é sempre formado de pequenos textos com títulos próprios, quase como se fossem notas de observação, enquanto quase todos os capítulos desse País Sonhado não tem essa característica. Essa dualidade não é por acaso e dialoga com o fato de que a morte é um dos temas principais dessa história. Ela ronda praticamente todas as conversas, evidenciando como essa obra se coloca como uma espécie de investigação sobre o tema e seus mistérios ao marcar como a ancestralidade se faz presente na cultura haitiana e tem uma relação com a resistência ao colonialismo.

Numa conversa com o protagonista, um professor conta a ele que os Estados Unidos estavam tentando fazer um recenseamento secreto no país, mas se deparava com um desafio prático que poderia ser resumido numa história: quando o entrevistador pergunta “Quantos filhos a senhora tem?” para uma mulher, ela responde um número que inclui os vivos e mortos. Questionada no avançar da conversa, ela afirma que todos eles são filhos dela e que para elas eles estão vivos para sempre. Apesar de morte e vida serem colocadas quase sempre como opostos, elas são parte de uma coisa só. A dualidade do País Sonhado e do País Real, da noite e do dia, da morte e da vida talvez seja um vício no olhar. Algo que parece acontecer por não sermos capazes de entender.

O fantástico se faz presente em “País sem chapéu” e é usado para falar sobre a realidade dos haitianos e também de sua cultura. O protagonista volta para sua terra durante a operação da ONU e a presença, principalmente norte-americana, na ilha é ironizada e questionada por ele e por alguns outros personagens, como no diálogo em que se comenta que o EUA estão lá pra saber quando tempo um ser humano pode viver com tantas privações. O que vale como reflexão para nós brasileiros, que marcamos presença nessa operação que hoje é narrada como repleta estupros, repressão de manifestações, abuso de autoridade, interferência no processo eleitoral, dentre outros atos inaceitáveis amplamente documentados, conforme afirmado numa carta direcionada ao secretário geral da ONU.

Dany, numa história repleta de aspectos pessoais, marcada por questões de pertencimento, identidade e investigação de si e dos outros, aborda a própria formação de seu país a partir do colonialismo, escravidão, imperialismo e ditaduras. A falta de respostas para algumas questões, inclusive fantásticas, levantadas talvez diga também sobre esse todo. Ao escolher falar de morte numa obra sobre o Haiti, o autor faz uma crítica sobre as condições miseráveis de seu povo, enquanto também aborda aspectos religiosos, com todo o seu simbolismo, história de resistência e suas contradições, sem jamais deixar de refletir sobre os significados de caminhos e travessias que se fazem presentes em tantas culturas. Ainda que vejamos a morte de forma diferente, ainda somos ligados pelo medo de deixar de existir.

Tradução e posfácio: Heloisa Moreira


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“Bem-vindos ao paraíso”: a Jamaica além das belas paisagens

Foto de minha autoria para o Leia Mulheres Divinópolis — Adquira sem exemplar aqui.

Nicole Dennis-Benn nasceu em Kingston, capital da Jamaica, e lá viveu até os 17 anos de idade. Após se mudar para os Estados Unidos para estudar, conquistou o título de mestre em saúde pública com especialização em saúde reprodutiva da mulher e, posteriormente, fez um mestrado em escrita criativa. Atualmente, vive em Nova York com sua esposa.

Ela é uma autora que não teme abordar em sua obra temáticas consideradas delicadas, mas muito necessárias: no seu romance de estreia “Bem-vindos ao paraíso”, traduzido para o português por Heci Candiani, ela trabalha, por exemplo, com questões relacionadas à sexualidade, raça, classe, ser mulher e diferentes formas de exploração, desigualdade e violência, amarrando tudo isso com uma história incômoda de uma família composta por mulheres.

País da fantasia

Já na primeira página do livro, essa expressão é utilizada para falar da Jamaica criada para os turistas estrangeiros, majoritariamente brancos, pelo trabalho dos jamaicanos mais pobres e negros, mostrando que os turistas não conhecem — e nem querem conhecer — a realidade de ninguém dali, ficando restritos aos resorts construídos onde antes as pessoas viviam. O que tem tudo a ver com o nome irônico recebido pela obra no Brasil.

A indústria do turismo engole a Jamaica e a sua população negra, fazendo surgir um desejo coletivo de fazer parte daquele país da fantasia e privilégio, nem que seja a partir do trabalho explorado. Cria-se assim um sonho de um dia ascender de alguma maneira e passar merecer algo daquele universo tão inacessível e, claro, também a inveja de não fazer parte.

Margot, além de trabalhar no hotel como uma espécie de gerente, também é prostituta. Sua história aborda os efeitos do turismo sexual nas comunidades e nas pessoas que fazem parte dela, além de servir para denunciar o quanto esse fenômeno tem relação direta com o racismo e a misoginia, porque os clientes que surgem nessa história buscam na Jamaica corpos exóticos e muito jovens, contando com o desespero pela sobrevivência de tantas meninas e mulheres, e como tudo isso também afeta a vida das mulheres não inseridas nesse esquema a partir da naturalização da exploração e violência contra esses corpos em todos os espaços.

A escola, o colorismo e a descoberta de si e do mundo

Toda a trama de Thandi, irmã mais nova de Margot e filha de Delores, gira em torno de salvá-la de um destino como o delas a partir da educação. Margot faz de tudo para mantê-la em um colégio particular muito caro para que ela se torne médica no futuro. A educação é a esperança, mas ela só parece ser possível de ser alcançada por poucos, alimentando ainda mais a dicotomia entre qualquer menção à meritocracia e o oferecimento de oportunidades reais.

Os dramas de Thandi se relacionam com essa alta expectativa versus o desenvolvimento de sua subjetividade, mas não só. Além de outras questões, estar nesse colégio faz com que ela se sinta excluída, deslocada e queira clarear sua pele, porque na Jamaica ser bonita, mais amada ou ter chances de empregos melhores depende disso. Ela é diferente das outras garotas e garotos da escola e ela e eles sabem muito bem disso. Thandi está fora do lugar e todos fazem questão de lembrá-la disso.

A Jamaica LGBT

A autora desse romance casou-se com Emma Benn inicialmente nos Estados Unidos e posteriormente na Jamaica, tornando sua união com outra mulher um ato político de extrema importância em seu país natal já que o casamento privado delas vazou para o noticiário do país e ficou conhecido como o primeiro casamento lésbico da ilha. A autora, em entrevistas, parece incomodada com essa definição, por considerá-la pouco realista. Outras cerimônias entre casais de homens ou de mulheres já aconteciam, mas essa foi a primeira vez que todo mundo ficou sabendo. Essa exposição causou uma certa aflição, mas, posteriormente, Nicole e Emma consideraram importante demais o que aconteceu, porque fez com que isso fosse discutido no mundo inteiro.

Vê-las narrando as dúvidas, desafios e pequenas alegrias relacionadas ao casamento delas na Jamaica parece algo pouco relacionado com o livro, mas é. Verdene é uma das principais personagens da trama e é tratada como uma bruxa por sua sexualidade e história pessoal. Ela é vista como uma pária por todos e teme, o tempo todo, se somar às estatísticas de violência por isso. As pessoas escrevem palavras bíblicas de ameaça com sangue de animais em sua casa, jogam corpos de bichos mortos em seu quintal e chegam até mesmo a recusar que ela compre produtos em suas lojas. Esse retrato da vida de uma mulher lésbica exposto na obra nos faz pensar na importância que a notícia do casamento de Nicole e Emma ganhou entre pessoas jamaicanas lésbicas, bissexuais ou gays, sempre colocadas na clandestinidade pela situação.

Verdene vive uma história secreta de amor com Margot. No meio de tanta violência, o livro narra a relação delas como um momento de esperança, quase poético, apesar do medo e da quase impossibilidade daquilo continuar, ao menos ali naquele local. O amor, em toda obra, se manifesta assim, como uma possibilidade de deslumbramento e contemplação mesmo no meio do caos e da dor, apesar da autora evidenciar que até na vivência real dele os privilégios de raça, classe e gênero influenciam.

O que a linguagem pode nos dizer?

“Bem-vindos ao paraíso” da Nicole Dennis-Benn foi a leitura do mês de agosto do Leia Mulheres Divinópolis, clube de leitura em que sou uma das mediadoras. O encontro desse livro aconteceu no último sábado, dia 22/08, e contou com a participação da Heci Candiani, tradutora da obra para o português.

Por isso, parte da nossa conversa abordou também a linguagem e sua relação com poder, classe, colonialismo e, claro, construção de personagem. Heci Candiani falou conosco sobre a pesquisa que fez sobre o inglês jamaicano e chamou a atenção sobre o uso dele no livro e seus desafios de tradução. Quem fala o que é chamado de patuá? Com quem se fala dessa forma? O que não falar inglês jamaicano significa ali? Como um sotaque estrangeiro é visto?

Olhar para as escolhas de linguagem de Nicole, a partir desse debate, nos ajudou a pensar ainda mais nesse livro como um expositor de desigualdades e dinâmicas sociais complexas.


“Bem-vindos ao paraíso” de Nicole Dennis-Benn trabalha a violência de maneira dura, mostrando o quanto ela está presente na vida das mulheres jamaicanas e segue naturalizada e perpetuada pela sociedade. Apesar de em nenhum momento aparentar ser uma obra teórica, o livro também expõe a relação direta dessas violências com o capitalismo e o colonialismo e a desigualdade que ambos fomentam, ainda que alguns perpetuadores de toda essa lógica não estejam em um lugar típico da ideia de opressor. A partir da leitura desse romance, a gente percebe o ciclo da perpetuação de violência que cerca essa família e essa comunidade torna aquele ambiente tóxico para o crescimento do amor, do diálogo e do companheirismo. Esse amor que insiste em crescer e ser desejado, mesmo que em outros espaços, apesar de ninguém ali parecer saber se é permitido que se viva algo que não seja dor e busca pela sobrevivência.


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