Hoje, dia do leitor, anuncio as leituras mais marcantes de 2024!
Não é do meu feitio simplesmente fazer uma lista genérica, como um ranking top10, então teremos algumas categorias especiais para assim eu poder colocar tudo que eu listei desordenadamente.
Sim, tem prosa e poesia, tudo junto e misturado!
Apesar que eu não conseguir nem estimar direito quantos livros foram lidos nesse ano, sei que foi muita coisa. Afinal, além de ler por diversão, li para alimentar o @bafodepoesia, mediar o @clubecidadesolitaria, participar da @casadaspoetas, fazer leituras críticas, freelas de release e resenhas e algumas pesquisas pessoais para elaborar oficinas.
Li e reli tanta gente! Tanto livro bom!
E eu não fiz lista de lidos, ficou tudo solto, apesar do que foi lido sempre carregar em seu interior post its, marcadores e grifos que me ajudam a encontrar o prumo, inventar algum número, se eu sair abrindo os livros.
Nesse remelexo todo, a memória se confunde: só sei que a safra foi muito boa e é injusto eu não destacar, por exemplo, o livro “Um caminho particular de futuro” do Ricardo Bernhard, só porque não consegui encaixá-lo em nenhuma das categorias que inventei. E é mais injusto ainda eu não seguir adicionando exemplos e mais exemplos nesse parágrafo.
Nunca mais tentarei fazer listas assim, juro! Em 2025 só vou listar os lidos do ano e será isso, para eu não sofrer!
ontem, sem saber o que fazer com a notícia triste do dia, me peguei abrindo a Dobra mais uma vez. achei, inicialmente, que era por Adília ou Maria José que eu lia todos aqueles poemas, mas era também por mim.
a Dobra, com esse nome, sempre me fez pensar nas bolhas de dobras de tempo-espaço. ler esse livro, como na teoria Alcubierre, me faz surfar no desconhecido, sem ser afetada pelas leis da física. posso com a Dobra ler todos os anos anteriores de Adília como livro só. encarar o que foi produzido ao longo dos anos como obra única. e fiz isso inúmeras vezes lendo também cada um dos poemas como se eles acontecessem no momento presente. assim pude fazer todas as Adílias coexistirem tentando pegar um peixe com as mãos em Lisboa ou em Divinópolis e conseguindo uma, duas, três, quatrocentas vezes.
corri até a Dobra por isso, eu acho. quis ritualizar a despedida adicionando a Adília que não está mais entre nós a todas aquelas que vão continuar vivendo em cada um de seus leitores.
ficamos então com a falta. sem musas boas ou malvadas, sem a poeta oráculo do cotidiano, sem seus jogos perigosos e sem mais poemas repletos de gatas, baratas e fodas. mas ficamos também com a Dobra, porque ela escreveu o que escreveu e como escreveu para desafiar todas as leis da física da maneira mais banal e irônica possível. a literatura, de alguma maneira, sabe dobrar o tempo. e porque Adília fez isso com seus poemas, podemos brincar de dobrar junto com ela mesmo agora.
Nasci na mesma cidade que Adélia Prado e quase sem querer encarei essa coincidência territorial como um destino passando a escrever poemas a fim de investigar qualquer coisa sem registro.
Nunca achei que a literatura fosse algo muito distante simplesmente porque Adélia Prado me ensinou a situá-la no aqui e no agora. O aqui e agora não é metafórico quando você vê a poeta citada no livro de literatura ir fazer a feira da semana onde a sua mãe também vai.
Lendo Adélia Prado eu aprendi a perceber melhor as cores. Descobri que uma casa com as paredes alaranjadas está constantemente amanhecendo, que o roxo é uma doidura para amanhecer, é bonito e o amarelo gosta dele, e eu e a Adélia também. Por causa dela eu passei a notar que os jardins fazem parecer que as arvorinhas conversam, que deveria existir licença para dormir, que o trem de ferro que atravessa a cidade atravessa também a minha vida e depois vira só sentimento e também foi lendo Adélia que vi a palavra cu impressa pela primeira vez.
Esse texto foi escrito como parte de um roteiro de um vídeo que gravei para homenagear a autora no meu Instagram após ela ganhar, com menos de uma semana de diferença, os prêmios Machado de Assis e Camões.Assista aqui!
Sobre Adélia Prado e o cotidiano na poesia leia também esse meu ensaio publicado originalmente no portal Fazia Poesia.
Acervo pessoal – Acesse meu instagram para mais fotos como essa.
“A suspensão de Tomie Ohtake”, estreia poética de Letícia Miranda, é uma leitura que propõe um diálogo muito próprio com a vida e o trabalho de Tomie Ohtake, artista plástica japonesa naturalizada brasileira. Composto por 35 poemas e algumas colagens, a poeta e artista brasiliense ficcionaliza, homenageia e conversa com a artista e sua obra, construindo um livro que tem como corpo a contemplação que a arte é capaz de evocar como e a partir da experiência, seja pela sua própria feitura, seja pelos muitos desdobramentos possíveis que um objeto artístico pode ter no mundo e na memória.
Essa possibilidade de transmutação entre arte, vivência e novas perspectivas ganha ainda mais significado quando se apoia em alguém com a história de Tomie Ohtake. Nesse caso, são mais de cem anos de atravessamentos, dois países, uma naturalização, 120 exposições individuais e mais de 30 obras espalhadas em espaços públicos. Algo bem lembrado pelo primeiro poema do livro que afirma:
“As formas emendadas nas cores se deslocam permanece o gesto de uma mulher centenária” (página 11)
Nomeado “Sem título”, esses versos, ao nos fazer pensar nos tantos quadros denominados assim, tornam obra de arte todo o movimento causado por essa artista.
Nessa conversa poética, quem lê é convidado a perceber a observação do gesto, além do gesto per si, como um ato de contemplação. Assim, permanência e impermanência se dividem nas páginas como parte de um deslocamento quase imperceptível, nos oferecendo a possibilidade de olhar diferente para todas as formas, as cores e as cenas que nos cercam. Assim, os poemas de Letícia nos permitem adentrar numa atmosfera em que o aparentemente simples ganha formato, força e ainda mais significado.
Dessa maneira, as linhas simples de Tomie Ohtake se traduzem em poesia. Curtos e construídos usando palavras comuns com bastante precisão, a poesia da autora condensa cenas comuns, como o amanhecer, em versos que, em um processo de desdobramento poético, transformam o que a gente considera conhecer bem em algo quase abstrato. É como se Letícia nos disponibilizasse lentes esquisitas. Com elas, podemos ver o Sol mudar de tamanho, cores se enfurecerem, montanhas virarem linhas e uma única gota ser considerada capaz de inundar uma pessoa inteira.
“A suspensão de Tomie Ohtake” se faz em um ir e vir de processos criativos que acomete quem se permite viver inteiramente o estranho momento de deslumbramento e conexão que a arte é capaz de produzir. Quando Letícia abre seu livro dizendo “Tomie, o nome do território onde me ancorei”, ela nos ensina que um artista pode se tornar casa para quem é tocado por ele. A arte é um lugar de permanência. E nesse cenário, tudo se fragmenta em ainda mais arte.
essa resenha começou a se escrever na minha cabeça um ano atrás, quando, acometida por uma enxaqueca, não consegui ir ao lançamento desse livro incrível mesmo estando em Brasília na data. um pedaço dela se tornou uma indicação de leitura no instagram da Crivo Editorial antes de virar esse texto.
É difícil escrever o que nos comove sem recair em clichês ou mesmo numa linguagem cafona, especialmente se você for um cínico. E todo mundo foi obrigado a aprender a ser um nos últimos anos. A comoção foi praticamente proibida como tema, especialmente se ela se apresenta entrelaçada na complexidade de um cotidiano de pequenas coisas a serem contempladas.
Tratada como um luxo numa sociedade que busca a produtividade acima de tudo e ataca até mesmo o sono, o sonho e o descanso, a comoção se encontra em extinção. Se propor a se comover virou quase um ato de rebeldia em meio a um mundo de estímulos que, sendo praticamente ininterruptos, transformam qualquer emoção em uma sensação estranha e passageira.
É preciso digerir e ninguém tem tido tempo para digerir qualquer coisa. Estamos na era do utilitário e até a leitura de poesia pode ser transformada em mais um item de uma checklist de afazeres. Alguma poesia na rotina é melhor do que nenhuma, eu diria justificando meus atos. E talvez você concordasse comigo até você também se deparar com os poemas do livro Da costela do impossível de Marcela Alves e entender que poesia na rotina significa algo mais do que a simples leitura de uma página.
Com uma obra focada em detalhes que tornam visíveis a cumplicidade dos laços e a beleza das pequenas coisas, a poeta constrói versos que também possibilitam contemplar e perceber a própria dor. O tempo corre diferente quando você conversa com o eu-lírico construído por ela. Não tem agenda e planejamento que dê conta. É impossível ler tudo de uma vez, ler de qualquer jeito, deixar pra ler correndo no intervalo do almoço. A poesia de Marcela é oráculo, sua leitura pede uma pausa ritualística no meio da rotina. E essa pausa pode durar apenas alguns minutos, o lapso exato de um poema, desde que você esteja presente ali, sem pensar na próxima tarefa.
Ler Da costela do impossível é buscar compreender melhor o alcance de um instante e essa reflexão surge impondo que a gente abrace o não-entendimento racional daquilo que chamamos de vida, calendário, entendimento, prazo, fim. Não basta partir de uma razão cartesiana para ler poesia, para pensar na percepção da experiência é preciso espanto, comoção, assombro, alguma magia.
“provamos a carne crua da ignorância até entender que entender leva tempo o agora é imenso, não há fronteiras a possibilidade se avizinha de outra possibilidade que é irmã de mais uma e em nada se assemelha a tantas outras”
página 37, poema “quando ainda”
A poeta escreve para dentro, construindo uma concha misteriosa em torno das palavras. Só que essa concha não está absorta em si mesma, ela é também uma concha acústica, que, inspirada no ouvido humano, é feita para fazer reverberar melhor o som para a plateia que se permite entrar, ficar e permanecer.
Dentro da poesia de Marcela, o íntimo nos atinge. Nossa intimidade se entrelaça com a do eu-lírico e nos lembra do que somos feitos: ternura, medo, beleza, dúvida, perda e um pouco do que pode parecer nada para alguns, mas é a matéria-prima que nos faz gente, como a cena de uma avó plantando rosas, de uma casa que é casa por causa das amoras roxas de sua calçada, de um pai fritando peixe e servindo cerveja para ele e a filha numa sexta-feira santa, de uma mãe que cozinha couve com devoção, de um amigo recém retornado de uma grande viagem.
Da costela do impossível se constrói pela via da luz, da sombra e da imagem refletida por essa combinação ser possível como parte da natureza. Mesmo buscando iluminar as miudezas que tornam a existência algo muito além da mera sobrevivência, a autora nunca esquece que na luz se encontra também a escuridão. Marcela escreve para honrar o mais bonito de suas origens, trazendo à tona Adélia Prado como epígrafe e referência de sacro e sacrilégio, luz e sombra, vida e poesia. E, nesse estranho lugar, tradição e modernidade se encontram com todas as suas contradições.
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Acervo pessoal – Registro meia boca do último show de Milton Nascimento – Dia 13.11.22, por volta das 20h.
Somos feitos por memórias. Cada um reage, pensa, descobre e sente o mundo e a si mesmo a partir de uma bagagem construída por um estranho mix que une real e imaginário, vivido e ouvido, experimentado e pesquisado. Nossa identidade se deriva dessa reunião de fragmentos, flashes e miudezas que se dispersam de situações variadas para se fixar neurônios afora como lembranças.
Somos uma colagem em construção. Vamos juntando pedaços de mundo, empilhando recortes de revista, unindo cenas cotidianas com histórias inusitadas, sem nunca isolar qualquer uma dessas imagens, sensações, pensamentos. Somos uma bola de neve de referências unidas organicamente, vindas de nós, dos outros e do mundo, selecionadas por um cérebro sedento por sobrevivência e ainda assim influenciado pelo mundo externo e a repetição de situações banais, a assimilação de imagens nunca vistas e o encontro com a criação humana em qualquer forma. Seja na música, em um corpo que se mexe e se expressa ou numa sequência de palavras que formam uma frase que pra você explica tudo.
O problema é que o que você pensa ser essencial agora pode ser visto pelo seu corpo como algo a ser descartado daqui a 3 anos, uma década ou 6 meses. E é por isso que eu escrevo. Pelo registro daquilo que em algum momento ganhou minha atenção e eu achei importante o suficiente para não deixar sua lembrança à mercê de circunstâncias cerebrais misteriosas.
Hoje me esforço para escrever sobre o show de despedida do Milton Nascimento. Quase 90 horas separam a escrita da experiência. Não pude escrever imediatamente. O show continuou reverberando dentro de mim, fugindo do controle das palavras, me assombrando, enquanto se tornava lembrança e matéria em um processo de digestão que não inclui a linguagem como a gente conhece.
Dizer que faltam palavras para descrever uma experiência é um clichê humano que toda tentativa de comunicação busca transformar em mito. Contar algo para alguém, antes de ser um compartilhamento diligente de uma experiência que pode fazer surgir ou reforçar uma conexão entre pessoas, é um esforço pelo registro, um teste experimental da memória, uma iniciativa que busca transformar em narrativa um processo não linear de percepção.
E eu quero tentar fazer isso com esse show, porque preciso prover minha memória de um recurso que, além de organizar o mundo de cenas, sensações, sentimentos e pensamentos que me vem quando penso no que experimentei domingo, servirá, no futuro, para não deixar o tempo fazer sumir com nuances que eu considero essenciais nessa lembrança que ainda tenho, mas não sei se devo. Realmente não sei se devo.
O registro da memória é um desejo impossível, uma busca que a humanidade tenta empreender pela arte, pela cultura, pela ciência e pela convivência humana. Só que o registro desse show é mais do que isso, é uma tentação, talvez até mesmo uma violação de um pacto selado com todos que estavam ali para vivenciar o final de uma carreira de 60 anos numa única noite.
O show do Milton Nascimento começou antes de começar. No telão, uma foto dele abraçado com Gal Costa, nos fazendo lembrar, mais uma vez, que aquele encontro era também uma despedida. Um ritual de despedida, na verdade. Uma celebração da vida e de uma vida que a partir de suas criações foi capaz de encontrar outras tantas. Uma cerimônia que uniu fins e começos, tendo como matéria-prima o canto, a palavra, o choro, o riso, a contemplação, o compartilhamento e o festejo. E a memória, porque é ela que faz tudo isso fazer sentido.
A voz de Milton evocava a nossa, como se assim, cantando juntos, tivéssemos a força de enfrentar com dignidade o medo da morte que a velhice — e a própria vida — anuncia. E assim Bituca se mostrou inteiro para nós, colocando seu corpo frágil de 80 anos de história no centro de um palco que pulsava o vigor de sua presença, sua vontade, sua relação com a música e o público. E essa cantoria bonita foi se desdobrando em outras vozes e sons feitos por convidados ilustres como os outros membros do Clube da Esquina, Samuel Rosa e Zé Ibarra, mostrando a vivacidade do afeto presente nesse evento capaz de unir com precisão sentimentos antagônicos como a alegria do encontro, a tristeza de ser o último e o júbilo de ouvir “viva a democracia!” após a queda de Bolsonaro. Sentir é mesmo uma força da natureza.
60 mil pessoas estavam no Mineirão, sendo testemunhas, de corpo e mente, do espetáculo que acontecia dentro de um estádio de futebol lotado, todos esperando como parte de uma coletividade estranha, poder dizer “adeus”, “muito obrigada”, “como você pode escrever pra mim sem nunca ter me conhecido?”. 60 mil pessoas acompanhadas de outras tantas, porque se somos feitos de memórias, carregamos para onde vamos todos os nossos, vivos os mortos.
Minas Gerais é a terra da memória. Da minha memória, pelo menos. E também da memória da maioria das pessoas que estavam ali, unidas por esse canto coletivo pela arte, pela vida e pela nossa capacidade de lembrar e se tornar lembrança. Minas Gerais aconteceu no Mineirão no último domingo, ao se transformar neste espaço-tempo onde tudo e todos se uniram em uma liturgia contemplativa em que ontem, hoje e amanhã decidiram se confraternizar numa contradição que se resolve apenas no universo da memória. Minas Gerais é onde o tempo se fez presente para ver Milton Nascimento se despedir dos palcos no solo que fez dele um músico.
Ainda bem que pude assistir esse show na cidade que chamo de casa, onde talvez eu nunca precise explicar direito o que foi estar ali, se vendo diante da própria vida, a partir da música, da voz, da poesia de Bituca. Ainda bem que pessoas a quilômetros de distância da Avenida Abrahão Caram, 1001, também puderam assistir grande parte do que vi ao vivo, ampliando a possibilidade de fazer acontecer conversas sobre arte, conexão, vida e desejo de viver e morrer com dignidade e encanto. Ainda bem que a beleza desse momento ficará comigo além da tentativa de registro que esse texto e algumas fotos representam. E ainda bem que eu sempre soube que a linguagem não dá conta de tudo e agora eu posso ter comigo, sem culpa alguma, o assombro não-nomeado de um show que representa a vida como essa travessia estranha que Milton Nascimento, Guimarães Rosa, Conceição Evaristo, Adélia Prado e tantos outros artistas, mineiros ou não, ousaram tentar explicar ao nos fazer sentir vivos, vivíssimos.
Um livro chamado “Coisa amor” combina com a palavra afeto, porque lembra ternura, carinho, estima, conexão e todas essas coisas que a gente deseja, mesmo quando fingimos de cínicos ou nos consideramos incapazes de sentir, vivenciar ou despertar esse sentimento no outro. Só que afeto não é uma palavra simples. A gente usa, na maioria das vezes, como um sinônimo de amor, mas seu significado pode ir além: para a psicologia, por exemplo, é um agente modificador de comportamento, podendo ser positivo ou negativo. E essa definição não surgiu do nada. As palavras latinas que deram origem ao afeto que guia esse texto eram usadas como sinônimo de estar inclinado a, influir sobre, fazer algo a alguém. Afeto então é sobre afetar e ser afetado. “Coisa amor” também, porque Pedro Jucá escreve para causar alguma coisa dentro da gente, testando a forma que o leitor interage com personagens e situações, enquanto, de certa forma, brinca com o feio, o clandestino, com tudo aquilo que, direta ou indiretamente, ajuda a compor a matéria dos tabus, dos desejos e dos segredos.
A partir de quinze contos, o autor aborda temas como solidão, morte, memória, sexualidade, inconsciente, loucura e quereres e coloca quem lê frente a frente ao desconfortável limiar do dito e não dito da experiência humana. A cada narrativa, Pedro Jucá nos apresenta um pouco mais dessa substância viscosa, densa e cor de carne que nos faz gente. E, para isso, usa diferentes formas de narrar, explorando a vulnerabilidade humana a cada cena, reflexão, circunstância, partindo principalmente de relações familiares, como a maternidade. Assim, consegue amarrar todos esses temas e perspectivas ao que podemos chamar de busca humana por conexão, companhia, entendimento.
Em “Coisa amor”, o encontro com o Outro é sempre desafiador. Ainda que essa demanda por compreensão e afeto guie os sujeitos dessas histórias, o Outro é sempre Outro. Nesse encontro de identidades há momentos em que o laço entre os personagens se amplifica, tornando aquela ligação um instante de entendimento, mas, na maioria das vezes, o medo de ser visto completamente, como se isso fosse possível, impede qualquer vestígio de conexão. Só que essa conexão, sempre tão desejada e praticamente impossível, acaba acontecendo com a gente, que a partir do ato da leitura, tentamos decifrar comportamentos, personalidades, situações.
Nesse caso, estamos numa posição de poder. A cadeira de quem lê é a de quem espera uma trama se desenrolar. Somos espectadores, na maioria das vezes invisíveis, da história alheia e queremos entretenimento. Só que Pedro Jucá cria suas narrativas para nos lembrar do poder da linguagem de nos afetar e, dessa forma, aproxima seus personagens de quem lê, obrigando a gente a lidar com esse lugar de uma outra forma. Lemos essas histórias, então, como quem se dirige para um parque de diversões, e acaba entrando numa enorme sala de espelhos cheia de sombras e truques que são capazes de transformar 149 páginas de texto em 3450 minutos em um labirinto de sensações.
O entendimento desejado por essas personas fictícias acontece, porque aquilo que esses personagens se esforçam tanto para esconder até deles mesmos, escapa. O trabalho estético do autor ajuda nesse efeito: Pedro escreve para gente decifrar, exige atenção. O texto flui, mas tem voltas, alguns estranhamentos, qualquer coisa que te obriga a frear, com medo de atropelar algo importante. E essa conexão se completa, porque ao entender alguma coisa, quem lê se sente cúmplice. Leitor e personagens se encontram na clandestinidade do ato de levantar o tapete que cobria o elefante no meio da sala.
Mesmo incomodados, continuamos lendo e, por escolhermos continuar, nos associamos ao que está sendo compartilhado por esses Outros. Somos gente, afinal, e por isso inevitavelmente comparsas de tudo aquilo que é demasiadamente humano, como a literatura é. Ao sermos afetados, ficamos mancomunados aos personagens e assim nos tornamos coautores de tudo que a humanidade é capaz de sentir, e por isso, fazer. Podemos até ler como detetives, fiscais ou juízes, mas ainda assim, nos vinculamos ao que foi dito, feito, produzido, porque em algum momento aceitamos fazer parte disso tudo, em especial quando tentamos nos fantasiar com essas figuras de poder que simbolizam a proibição de qualquer demonstração de vulnerabilidade.
Ler “Coisa amor” então é se permitir investigar a composição da matéria oculta que nos forma e nos permite ser capaz de produzir e consumir arte. Jamais entenderemos completamente o que nos leva, por exemplo, a amar alguém e o que de fato significa isso pra nós mesmos. Como no conto que dá nome ao livro, mesmo com o mapeamento da química da paixão e a descrição técnica do funcionamento do corpo nessas horas, ainda há espaço para uma certa poética, logo uma certa dose de pensamento mágico. Jamais haverá compreensão completa do Outro e nem de nós mesmos. E a gente sabe disso, mas ainda assim continuamos tentando decifrar o indecifrável, porque é isso que precisamos fazer para vez ou outra conseguir vivenciar instantes em que não nos sentimos sós.
“Mas não, nada disso aconteceu. As histórias mais tristes são também as mais prosaicas, as que sequer alcançam o status de tragédia. Desprovidas de potência ficcional, nem à catarse servem […]” – Passo a Passo (pág. 22)
Acervo pessoal
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Não sou uma leitora imparcial. Escolho as minhas prioridades de leitura guiada, principalmente, pelo afeto. Sei que afeto é uma dessas palavras gastas — até as lojas de dermocosméticos a utilizam pra vender shampoo anticaspa e protetor solar quando querem falar sobre autocuidado e amor próprio — mas foi inevitável não usá-la enquanto escrevia sobre o livro de contos “Coisa amor”, de Pedro Jucá, que, por acaso, se tornou especialista em Escrita e Criação junto comigo, após uma imersão que envolveu escrita, leitura e compartilhamento durante 19 meses.
Algumas das prosas que constroem essa obra, como a penúltima história, vi nascer. Oficina já era uma conhecida minha das aulas, ainda que numa versão ainda pouco trabalhada. Outros simplesmente me surpreenderam: como Cerimonial, Nutriz e até mesmo o Coisa amor, que empresta seu título ao livro. Mas foram os contos Ela, Passo a passoe Years of Solitude que me fizeram pensar que Pedro sabe muito bem onde quer chegar.
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“Apague a luz se for chorar”, romance da escritora Fabiane Guimarães, me aguardava na biblioteca do Kindle fazia quase um ano. Prestes a embarcar em uma via sacra celeste com destino final em Brasília, me veio a lembrança de que tinha lido em algum lugar, provavelmente nas redes sociais da autora, que ela tinha nascido no interior de Goiás e agora morava na capital federal, a cidade que mais uma vez eu ia visitar. Buscando algum cenário ou passagem ficcional que me levasse até o Centro-Oeste mais rápido que qualquer avião, abri o arquivo do livro decidida a começar a leitura. Logo, junto de Cecília, estava no ar, pousando no aeroporto com água até dentro dos meus olhos, mesmo com o mundo real seco como eu já esperava encontrar indo para lá no inverno.
Fui fisgada pela história já nas primeiras páginas.
Se um luto é sempre um processo de conhecimento, onde o enlutado, na busca por alguma resposta, precisa produzir provas, ouvir testemunhas e captar todas as informações possíveis daquele fato para elaborar perante o juiz, que, nesse caso, também é ele mesmo, Fabiane Guimarães soube levar isso além, transformando em algo mais uma narração em que a lógica enlutada e ansiosa de uma personagem nos conduz vertiginosamente a partir da dúvida.
Cecília vivencia seu luto por inteiro, mesmo quando tem certeza que deixou quase todo seu corpo coberto e protegido. Ela perdeu seus pais no mesmo dia, na mesma hora. Morreram juntos, de causas naturais, alguém explica a ela que segue sem absorver a frase como se esperava. “Sua mãe era tão boa”, diz outra pessoa que ela nunca viu na vida. Tudo é estranho, a morte é estranha. E por isso a gente se abre para essa personagem na hora, como se tentar entendê-la fosse preparar a gente para lidar com nossos mortos, com a certeza da nossa própria morte. Assim como Cecília, a gente tem dúvidas e nos expomos a elas a cada página lida, porque sabemos que não conhecemos ninguém tão bem assim, porque também temos medo da morte e dos segredos de família, porque desconhecemos qual é o sentido da vida, se há um ou dois ou nada. A gente simplesmente entende Cecília, porque conhecemos o poder do “e se”, então abraçamos sua desconfiança, tememos por ela, nos perguntamos porque ela falou alguma coisa e deixou de falar outra.
Com João é diferente. A história dele simplesmente vai se desenhando, acontecendo, sem a gente entender bem o porquê dela estar ali, sendo contada junto da vida de Cecília. A gente só acompanha ele e seu filho Adam, enquanto espera o momento em que tudo fará sentido. Agimos exatamente como o personagem, que parece, ao menos inicialmente, simplesmente seguir seu caminho trabalhando na zoonoses fazendo eutanásia em animais, fingindo não pensar tanto no que isso significa para ele, seu filho com uma grave deficiência e todos os cães e gatos que lhe são entregues. Só que um dos fios condutores desse livro se revela rapidamente, ainda que a gente demore um pouco para perceber: João também está lidando com a morte, com a sombra dela se aproximando do filho, e sua história é a de quem também busca respostas, mas tem medo até das perguntas que cogita fazer. João tem medo do seu futuro com e sem o filho.
Pirenópolis é um destino estranho para enlutados, mas me parece um lugar perfeito para dois idosos viverem juntos seus últimos dias. Não importa se os mortos gostavam ou não do último lugar em que moraram, porque aqueles que ficam e sofrem se sentirão pisando em um terreno insólito e perigoso independente de onde estejam. No fim das contas, qualquer lugar é um destino estranho para quem sofre uma perda. Ou acha que pode perder alguém a qualquer momento. Ou perde alguéns e ainda descobre um segredo de família que pode mudar a maneira como você encarava até então seu pai, sua mãe, sua vida.
“Apague a luz se for chorar” é uma história sobre as descobertas que fazemos quando somos obrigados a tatear essa escuridão. Lidar com a morte, aquela que ameaça ou já aconteceu, é estar em um não-lugar, um espaço suspenso, em que o mundo dos vivos se esbarra no dos mortos o tempo todo. Cecília e João vivem de maneiras bem diferentes a angústia de não conseguir mais pisar no solo e senti-lo firme e por essas e outras se encontram nesse livro que fala de morte, luto, medo, família, escolhas e segredos.
As memórias do angustiante verão francês que Annie Ernaux viveu em 1963 ganharam novas camadas ao serem transformadas em obra cinematográfica pelas mãos da diretora Audrey Diwan, da roteirista Marcia Romano e de toda uma equipe repleta de mulheres.
Quando Annie Ernaux escreve sobre o aborto clandestino que viveu mais de três décadas depois, tempo e memória se misturam ao fato vivido. O que torna seu livro uma busca pelo registro daquilo experimentado em segredo, como outras tantas fizeram, francesas ou não. Quando ela decide escrever essa história da forma que fez, crua e quase documental, ela coloca em evidência que a escrita de si é também uma tentativa de adaptação: como fazer das lembranças palavras? É possível capturar os sentimentos dissolvidos nas cenas que conseguimos recordar mesmo tanto tempo depois? Qual é o papel de ler e reler o diário daquele ano nisso tudo? Como as palavras escritas quando tudo acontecia afetam quem se é agora? Falar de si é falar de uma época? Escrever sobre a própria solidão é uma forma de se sentir acompanhada nela? E esquecer é também uma forma de morrer? Se sim, escrever o que lembra é tentar viver além da própria experiência?
Se no livro a solidão, a angústia e o desamparo da personagem durante os três meses de 1963 chamam atenção, enquanto se misturam com o efeito do tempo e a ânsia da tentativa de tornar aquela vivência algo tangível pela escrita, o filme se propõe a tratar apenas do tempo da gravidez indesejada como fato incontornável, concentrando todo o desespero silencioso da personagem só naquilo, sem a reflexão temporal que envolve a recordação.
“O acontecimento” cinematográfico consegue então tornar a escrita memorialística de Annie Ernaux um recorte situacional que se aproxima ainda mais da construção dessa verdade pretendida na tentativa do relato, ainda que as cenas do filme tenham tido modificações pontuais no processo de adaptação e essas mudanças mostrem a presença de autoras, atrizes, cenários e a transformação daquilo que foi escrito e criado como memória em ficção.
No filme, acompanhamos a história de Anne Duchesne (Anamaria Vartolomei) como quem persegue uma personagem por ângulos intrusos. Nos transformamos em olhos vigilantes pela câmera curiosa, como se fôssemos parte do que torna o aborto buscado pela personagem um crime, uma vergonha, algo a ser acompanhado como fofoca por quem se delicia por saber que conseguiu escapar de estar nesse lugar, que pode ser “só” o de vagabunda que transa antes do casamento ou o de mãe solteira.
Conhecemos a intimidade dessa protagonista como parte do que torna a sua vivência um tabu e uma ilegalidade e isso, junto da atuação de Anamaria Vartolomei, ajuda a construir para o espectador uma agonia silente que mescla uma espera ansiosa por uma possível solução para aquilo que seria o fim de um futuro brilhante, enquanto esse mesmo futuro brilhante parece prestes a desmoronar pelo efeito dessa espera que não se realiza, e o medo dessa solução, se ou quando alcançada, se tornar o fim de qualquer futuro ou quase isso, com a morte, a mutilação ou a prisão.
O interdito é trabalhado também com a tensão sexual que insiste em se manifestar o tempo todo no universo da personagem, mesmo aquilo sendo visto como proibido. O estigma do exercício da sexualidade feminina paira sobre as jovens que falam o tempo todo de sexo, enquanto julgam as que ousam fazer, junto do medo da gravidez, que, além de ser uma manifestação da maternidade indesejada para aquele momento, representa também um atestado público de que aquela mulher não é mais virgem e pura, logo não merece mais respeito.
O universo da personagem é bem apresentado: temos ali as visitas aos pais trabalhadores no interior que precisam se manter como sempre foram para ninguém desconfiar de nada, as disputas internas entre os diversos grupos de jovens mulheres que dividem o dormitório e o espaço universitário, as fofocas durante as aulas, as festinhas regadas por Coca-Cola, a solidão mesmo quando acompanhada, a insônia de quem tem um problema a resolver e as mesmas três ou quatro roupas repetidas que evocam tanto a origem da protagonista, quanto o cotidiano como ele é.
O aborto clandestino se desenha nas duas linguagens como um desalento construído por uma disputa de riscos que pesa principalmente para aquelas sem os contatos e informações certas, essas que precisam apelar para métodos caseiros no escuro do quarto ou cirurgias em um cômodo de uma casa qualquer ou os dois. Sendo as consequências de uma gravidez indesejada ainda mais pesadas para uma mulher pobre buscando alguma ascensão social pelos estudos, como a personagem, ou uma operária ou atendente de supermercado. Só que até para as mais ricas, a clandestinidade recai de forma ameaçadora, porque mesmo com um contato do médico certo e seguro em mãos e a garantia de que não irá presa por escolher, ainda existe solidão, proibição de falar e praticar e estigma. Tudo isso cria um cenário perigoso que poderia não existir se a responsabilidade da gravidez não fosse imposta às mulheres somente, o aborto fosse legal, seguro e gratuito e uma informativa e acolhedora educação sexual fizesse parte do currículo das escolas.
Ainda que o aborto por escolha da mulher seja legal na França desde 1975, tendo sido Annie Ernaux uma ativista por esse direito, no Brasil nunca foi e ainda não é. O que torna a aflição da personagem Anne e os riscos corridos por ela para fazer valer seu desejo pelo, ainda que inexistente legalmente na época, direito à escolha muito próximos da realidade das mulheres brasileiras hoje, com suas vítimas fatais aqui e agora, entre mutiladas, presas e sortudas aliviadas. O interdito presente nas obras segue firme no Brasil, não só pelo tabu, mas também pela força da lei e das ameaças e práticas conservadoras que tentam tornar o aborto uma ilegalidade mesmo nos raros casos liberados pela nossa legislação: risco de vida para a gestante, gravidez fruto de estupro e gravidez de feto anencéfalo.
As cenas do filme “O acontecimento” parecem ainda mais gráficas e desoladoras para quem divide comigo a nacionalidade e o domicílio brasileiro e acompanha, além das histórias veladas de familiares, amigas e conhecidas, as notícias de meninas que sofreram pressão judicial, governamental e social para não usufruir do seu direito ao aborto legal previsto como exceção na lei penal.
Mesmo a filmagem fugindo do sangue, da agulha, dos instrumentos da enfermeira e focando no rosto e atuação da atriz, a gente sabe o que a clandestinidade causa direta e indiretamente e isso basta para nosso estômago revirar de tensão.
Poderia ser eu, poderia ser minha mãe, poderia ser uma amiga, poderia ser a vizinha do 103 ou a moça da bilheteria do cinema, mas foi Annie Ernaux em 1963 e muitas outras que não tiveram a sorte de sobreviver para contar ou nunca puderam elaborar o momento. Para quem tem um útero que se revira em cólica e sangue menstrual periodicamente, não precisa ser gore para ser quase um filme de terror, emular a realidade como ela é basta para nos lembrar que nosso corpo ainda está no controle do Estado e da sociedade e o que tudo isso significa.
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A escrita de Annie Ernaux foi um acontecimento pra mim: ler “Os Anos” (tradução de Marília Garcia) me impactou de um jeito que de repente me vi indo atrás de tudo que ela escreveu. Cheguei a cogitar começar a estudar francês para eventualmente poder ler sua obra no original, sonhando em não ter mais que lidar com a busca por uma ponte idiomática entre ela e eu e a espera por novas traduções ou encontros com exemplares em inglês perdidos em sebos. Desisti quando percebi o óbvio: a fluência necessária ainda ia demorar muito e os novos lançamentos da autora pela Fósforo acabariam vindo primeiro, até porque o período de aprendizado de um novo idioma dura uma vida inteira.
Annie Ernaux faz literatura a partir do tempo e da vida. E por causa dela me peguei negociando com ambos, como se eu já não estivesse acostumada a tentar controlá-los. O tempo para essa autora não é simplesmente uma agenda, um relógio, o despertador que se esgoela, é a matéria da vida. E não só a vida dela. Escrevendo a partir de si, Annie Ernaux aborda a memória como vida, identidade e zeitgeist, uma mistura que transforma uma cena pessoal em um retrato de um momento específico na França, um recorte que só ela, tendo vivido aquelas experiências, poderia fazer como foi feito. A memória em “Os anos”, “O lugar” e “O acontecimento” é uma manifestação que abarca os arredores de quem narra, forma paisagens e cenas vívidas, é feita por pessoas além da autora e os lugares que cada uma dessas pessoas tem dentro do que a sociedade definiu nesse recorte temporal que pode caber quase um século ou três meses. É uma mancha disforme feita de gente se espalhando em um papel, não um ponto perdido e fixo no eu.
Além de contar o que lembra, a escritora relata com detalhes o processo de lembrar, e assim transforma sua escrita numa busca que parte do registro da lembrança como tentativa de capturar a sua verdade, o seu sentido da vida. Essa investida em transpor memória na escrita é o desafio impossível que a move. A partir do ato de registrar e formular, a autora tenta preservar a memória, torná-la menos volátil, tirar dela a abstração presente em sua composição, transformá-la em algo menos dela. A escrita então não representa as condições de temperatura e pressões normais, ela é a ferramenta que se usa para tentar tornar sólido o que em nosso universo só se encontra em estado gasoso. É uma busca por materialidade.
Ao escolher a via da memória como projeto literário, Annie Ernaux decide expor seu corpo, sua verdade, seus registros mentais e documentais e todo seu esforço por lembrar e escrever e elaborar. A exposição em si não é o intento final, é o meio, é a única forma de buscar acessar a reminiscência, logo a percepção de tempo tangível para a humanidade e que, de maneira única, forma quem cada um de nós é, enquanto nos une em torno de uma mesma época.
Em “O acontecimento” (tradução por Isadora de Araújo Pontes) isso se torna ainda mais evidente, talvez pela gravidade da situação narrada, da separação desse momento de todos os outros, pelo uso da primeira pessoal do singular ou por tudo isso junto. Quando ela escreve seu aborto e afirma que a única culpa que carregava a respeito dele era a de até então não ter criado algo não ficcional a partir disso que aconteceu com ela, Annie Ernaux revela quem ela é, foi e quis ser e a relação disso com sua motivação para escrever.
Relatar seu aborto clandestino é se colocar novamente exposta ao olhar de julgamento do Outro e de uma época, enquanto toma pra si o direito de lembrar, de falar, de escrever. É uma busca extrema por autonomia, porque vai muito além da escolha que ela expõe e revela como parte de si e direito essencial, é sobre olhar para quem se é até o limite e transformar esse processo criativo em sentido da vida, em algo que vai se fazer chegar em forma de literatura até outras pessoas. Sendo as epígrafes desse livro uma pista desse projeto maior: “Meu duplo desejo: que o acontecimento se torne escrita. E que a escrita seja acontecimento” (Michel Leiris) e “Talvez a memória não seja mais do que olhar as coisas até o limite” (Yüko Tsushima).
E o que torna essa escrita que busca autonomia ainda mais interessante é que a autora tenta dar forma às suas memórias levando em conta uma perspectiva documental, de registro de um momento além dela mesma, ainda que nesse livro a escritora francesa não use o nós e nem a 3ª pessoa, como faz em “Os Anos”. O individual e o coletivo se encontram o tempo todo ainda assim, quando ela narra o que viveu. A conexão dela com os Outros, no caso, principalmente as Outras, não está no jornal ou na lei, está nesse espaço coletivo e público não captado e captável pelo jornalismo ou pelo legislativo francês, esse espaço que ela como escritora tenta acessar ao fazer e ler literatura. O lugar de suspensão da personagem durante a espera pelo aborto parece só dela, mas nunca foi e, justamente por saber disso, Annie Ernaux escreve assim, buscando expor a experiência humana a partir da própria subjetividade, sendo essa subjetividade um eu presente e marcante e também parte de um meio, um mix de self, origens familiares, bagagem cultural, conhecimento e construção social. Um mundo feito de memoração pura e simples, daquilo que foi capaz de fixar nesse cérebro, independente da procedência, da lógica e da utilidade.
Ler “O acontecimento” num fôlego só dá mais sentido ainda pra tudo que está escrito ali. Toda a angústia e desespero que movem essa narradora pela cidade e a silencia pela solidão e pelo interdito estão ali, mesmo quando a gente lê que ela falou de novo com alguém sobre seu desejo de abortar, porque a gente sabe que se ela fez isso foi para lembrar que ainda existe, importa, está viva, quer algo diferente do que está posto. A gente só respira direito quando termina o livro e sabe que tudo passou e que ela conseguiu, tanto abortar na clandestinidade e sair viva, quanto escrever sobre essa experiência de extrema violência sem os ornamentos literários comuns às representações de angústia e desespero. E isso importa, porque a busca por autonomia dessa escritora também tem a ver com encontrar essa crueza sem os artifícios tradicionais, porque para Annie Ernaux autonomia também é fazer a experiência dobrar o que a linguagem impõe a ela e é por isso que ela evidencia, ao longo do livro, que a palavra aborto era proibida para o mundo, enquanto para ela o que nunca fez sentido foi a palavra grávida. Palavra é poder e é por isso que ela narra assim, como se somente a partir desse tensionamento ela pudesse se colocar no mundo de verdade, integrada ao todo, sem estampar no texto de maneira óbvia o desamparo que a acompanhou durante seus três meses de gravidez indesejada, mas ainda assim torná-lo quase palpável para quem a lê.
Annie Ernaux escreve porque quer registrar uma verdade pessoal e coletiva que se dissipa ao ser procurada, ela quer transformar em palavra sentimentos, reflexões e memórias difusas e criar a partir do indizível. Com sua criação e processo criativo, Annie Ernaux tenta controlar o tempo, dominar as próprias vivências, entender como a memória funciona e torna cada um de nós um, mas também nos une aos outros, tudo com base no misterioso poder da palavra, do simbólico, do dito e não dito. Annie Ernaux escreve, porque quer captar o que é a experiência humana total para depois transmiti-la, se tornando parte desse todo, e, por isso, diz ao fim desse livro: “As coisas acontecem comigo para que eu as conte. E o verdadeiro objetivo da minha vida talvez seja apenas este: que meu corpo, minhas sensações e meus pensamentos se tornem escrita, isto é, algo inteligível e geral, minha existência completamente dissolvida na cabeça e na vida dos outros.”