“Flor de gume”: as mulheres, águas e as travessias

Acervo Pessoal – Compre seu “Flor de gume” aqui.

Monique Malcher escreve como quem conhece bem a água. Suas primeiras frases funcionam como o toque inicial dela no corpo. Aquele momento de arrepio que vem da consciência de que a partir de agora dizemos adeus à terra firme. Nesse instante, a água nos convida a entrar de vez e você simplesmente vai, guiada pela promessa de que é assim que se acostuma com ela. Mas, justamente por conhecer tão bem o curso dos rios, Monique nunca nos deixa acostumar inteiramente com essa imersão.

Entrar na água é um risco. O mar impõe suas ondas aos olhos e ao corpo e os rios e lagoas não são muito confiáveis. A força da água doce é menos conhecida, pode não parecer, mas dali vai vir um nocaute em forma de história. É fácil se enganar e achar que nadar ali vai ser como estar numa piscina de hotel lotada de cloro. Às vezes pode até ser, mas vai saber. Talvez dê para nadar tranquila, talvez não. Talvez o único problema que você encontre seja simples de resolver, como uma alergia ao cloro. Talvez você simplesmente afunde.

As águas de Monique são mornas, turvas e podem ser perigosas. É fácil se deixar inundar por elas lembrando de alguém, pensando numa mãe, numa avó ou numa menina, todas perdidas nessa terra afundada cheia de vida. Tem quem se veja ali, inclusive. Então, no meio de um conto, um objeto há muito tempo perdido evoca uma figura-fantasma de mais uma mulher-menina-lembrança. Estar na água é uma ruptura com o mundo fora dela. As sereias e as rusalkas que o digam.

“Não é exclusividade das casas serem assombradas, mulheres são também. Isso conheço bem”, a autora elabora a partir de uma personagem, nos ajudando a encontrar o que nos assombra em terra firme, mas a gente só consegue ver mesmo quem esses monstros são quando mergulhamos e nos permitimos olhar para o mundo sem definição, sem os contornos que somos acostumadas a lidar.

“Flor de gume” é um livro imagético, que constrói seu ritmo e sua atmosfera a partir das forças da natureza. Água, vento, perna, muralha, asfalto, memória, arte, luto, morte, tudo se mistura para contar essas histórias que tem como tema em comum a filiação, a memória, o eu e a resistência histórica do enfrentamento desses corpos perante e a partir de tanto poder. O que pode acontecer desse encontro?

Ler Monique Malcher é se permitir navegar pelas águas barrosas dos rios e das travessias que partem de lugares desconhecidos interiores e úmidos até chegar a vários outros. Quem guia esse barco são as mulheres que conhecem esse caminho desde muito cedo por terem sido obrigadas a conhecê-lo, mas, por algum motivo, quem ainda está no barco como passageira tende a achar que continua sozinha, mesmo não estando.

Se mulheres são como águas e ficam mais fortes quando se encontram isso acontece, porque as histórias vão se alinhavando e quando são finalmente contadas juntas formam um fio condutor que também funciona como uma possível rede de proteção.

Uma hora as piloteiras e passageiras desses barcos vão se encontrar e se entender, ô se vão. Exatamente como o fogão ganhado pela menina numa rifa encontrou sua avó após dias navegando e serviu de conexão entre elas.

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Esse é um livro para quem gosta de textos híbridos, que conseguem respirar dentro e fora d’água. Se você quer ler algo que atravesse gêneros textuais a partir da construção de contos bem unidos e de uma poética, se permita conhecer “Flor de gume”. Com essa leitura, somos capazes de pensar a condição feminina e as lutas e heranças, individuais e coletivas, que acontecem como resistência a toda violência que cerca a vida das mulheres. E, mais do que isso, a partir dessa obra, nos tornamos capazes de lembrar melhor o que nos afeta e nos constrói. É importante conhecer melhor essas águas que nos cercam, deixar que elas nos mostrem o verdadeiro rosto de muitos homens.

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Monique Malcher foi a 2ª paraense a concorrer e ganhar o Jabuti. Sua vitória veio na categoria Contos pelo seu livro “Flor de Gume” na 63ª edição do prêmio. Além de escritora, é colagista, zineira e tem uma carreira acadêmica em construção.

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Reli “Flor de gume” agora em janeiro de 2022 junto ao Clube Cidade Solitária e adorei, sendo que minha 1ª vez com ele foi diferente. Eu gostei desde o início, e gostei muito, mas tinha rolado um trem meio seilá antes. Na releitura e também na conversa com outros leitores junto da autora, elaborei melhor essa minha primeira impressão perdida. Foi coisa de momento, acho, porque tem livro que tem hora, frequência e companhia certa para fazer a gente conseguir lidar com certos abalos de estrutura. Pensando então no tamanho do desconhecido das águas, na hibridez da escrita da autora e também no próprio ato de gostar, resolvi escrever sobre essa obra desse jeito meio misterioso, híbrido e quase ficcional, como se assim eu pudesse ficar mais próxima dessas personagens.

*alguns trechos dessa quase-resenha foram retirados do post que escrevi para o Leia Mulheres Divinópolis sobre o #DesafioLeiaMulheres2021 de fevereiro.

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Sobre publicar um livro pela primeira vez

Acervo pessoal – Divulgação

Na foto, tenho como minha extensão meu livro aberto. Levei um exemplar pra passear na praça antes de qualquer um poder fazer isso. O que é óbvio, porque coloquei meu livro em movimento desde meu 1º momento com ele, quando nem desejo ele era. Meu livro circulou muito sendo feito, quando cada cenário, testemunha, autoras, tempo e ação se apresentava pra mim. Nem sei dizer quantos animais estranhos leram esses poemas no Google Drive antes deles formarem o que tenho em mãos. O mundo virtual é pouco tangível ainda que eu consiga saber quantos clicaram nas publicações que fiz de alguns deles no meu blog. Ainda que eu saiba que tenho clique de Portugal, da Holanda e da Irlanda nos meus poemas belo-horizontinos e nos meus poemas insólitos e nos meus poemas sem nomeação e publicação conjunta. Não sei dizer quantos vão ler meus poemas no arquivo zoado disponível na Amazon. E nunca vou conseguir saber até onde esse livro vai chegar quando seus PDFs, epubs e mobis começarem a voar.

Sei mais dos exemplares físicos. Sei que eles nasceram numa gráfica, foram para editora e depois se espalharam a partir das minhas mãos, dos Correios, dos entregadores, dos divulgadores literários que eu escolhi a dedo junto da editora e da minha assessora e amiga pessoal Marcela Güther. Sei que logo estarão nas mãos de bibliotecários, professores e, espero, leitores da cidade que escolhi como minha. Sei que eles chegam semana que vem no Ceará, em Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Pernambuco. E sei que a maioria permanecerá na sua cidade-origem, se espalhando em bairros, ruas e praças que nunca pisei, porque morar em uma grande cidade não significa conhecê-la completamente. Elas são inesgotáveis.

Já estive com esses livros em mente, andei com eles na bolsa, tive que protegê-los da chuva, da cerveja e da oleosidade de mãos. Já vi um exemplar manchado de gordura e vários dos meus poemas desformatados. Já encontrei foto de poema meu em redes sociais de gente que ainda nem conheço. Já descobri o poema preferido de algumas pessoas. Nem sempre o que gostam mais coincide com a minha opinião. Ainda bem.

Quero saber um pouco do caminho que o livro vai trilhar sozinho, só o suficiente para eu eu possa imaginar onde ele pode chegar. Peço que não me contem os versos que vocês não gostaram. Deixem para falar isso quando eu não estiver olhando. Não deixem de me dizer que leram meus poemas esperando ônibus no ponto ou curtindo uma tarde numa praça. Isso é o que eu realmente quero saber.

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Prêmio Thaís Campolina de Literatura e os limites do registro e da investigação do gostar

Nem o nosso lado leitor é um personagem plano. Ler é movimento, é processo, uma atividade que envolve pela sua própria natureza a dúvida e a busca. A leitura é cheia das interrogações, mesmo em um texto tomado por frases curtas e secas sempre terminadas com um ponto final. A gente nunca sabe qual livro, trecho ou palavra vai nos arrebatar e nem que horas esse arrebatamento virá. Às vezes chega de uma vez, nos tira as palavras, impossibilitando até a escrita de resenhas. Simplesmente subimos aos céus, como se o impacto do que foi dito fosse combustível de um foguete pronto para viajar por toda Via Láctea, e depois ficamos tateando nosso interior tentando entender o que nos fez voar tão longe, tão rápido. Outras vezes, o assombro surge nas brechinhas das nossas vidas, como um matinho que insiste em enfrentar o concreto para crescer. As frases vão expandindo dentro da gente até tomar todo nosso corpo, simplesmente brotam lentamente onde cabem, até tornar impossível diferenciar o que é mato, o que é pele, o que é concreto e o que é sangue.

Escrevo, busco metáforas toscas, adio a publicação desse texto por mais um dia, faço tudo para me justificar por não saber simplesmente citar três livros e dizer que eles foram os melhores do ano. Se no ato de lembrar os melhores surgiu um nome, eu dificilmente o abandonarei. Me parece injusto ignorar o trabalho de algumas sinapses para trazer aquele título com tanta convicção.

2021 foi um ano muito rico em leituras por aqui. Fazer curadoria e mediação de dois projetos literários (Leia Mulheres Divinópolis e Clube Cidade Solitária), acompanhar vários outros e fazer uma especialização em Escrita e Criação tem me ajudado a entender cada vez melhor o meu gosto, tanto no sentido estético, quanto no que se refere a temas, personagens e debates que me interessam. Esse é um processo estranho, porque é nessa hora que a gente percebe que nossa subjetividade não é tão linear quanto a gente imagina e descobre que gosta muito de ler o que nem tem tanto interesse assim em escrever e vice-versa, percebe que é uma curiosa inveterada que se perde nas leituras começadas, porque sempre existem muitas outras possíveis, ou mesmo constata a possibilidade de mudar de ideia sobre um livro, porque alguém, em um clube do livro ou resenha, disse algo que te convenceu. Para o bem ou para o mal.

Segundo o Goodreads, eu li 65 livros. Conforme minha agenda, que inclui as leituras críticas/beta que fiz e ainda não foram publicadas e livros que não encontrei no aplicativo, foram 71. Não tenho certeza desses números, confesso. Minhas anotações são apenas uma tentativa descompromissada de fazer um registro do que eu estou lendo, pensando, investigando nesse meio tempo. Os livros não terminados, alguns teoricamente sendo lidos desde janeiro de 2020, também contam algo de mim. Minhas 16 leituras que ainda estão em andamento segundo o app são compostas por um possível abandonado, duas preguicinhas, alguns esquecidos na casa dos meus pais e muitos perdidos na minha desorganização. O que significa que podemos ter muitos outros além dos 16 que o Goodreads conhece. Como eu raramente documento os títulos e autores enquanto eu ainda estou lendo, vai saber. 

Gosto da ideia de documentar meus interesses, mas não sou organizada o suficiente para isso. Gosto da ideia de fazer listas de leituras preferidas, mas não sei se consigo colocar ordem no meu gosto. Sou caótica demais. Gosto de muita coisa, entre elas, tentar, porque é nas tentativas, dúvidas e busca por uma resposta que a gente encontra as melhores perguntas e cria as mais imprevisíveis categorias. Vamos pra listinha então?

Os trÊs MELHORES ROMANCES/novelas nacionais

*o livro da Natércia Pontes merece também brilhar na categoria própria de livro mais sujinho do ano, quicá da vida!

Os três MELHORES ROMANCES/novelas internacionais
as três melhores estreias recentes
Os cinco MELHORES livros de contos
melhor não ficção
OS seis MELHORES LIVROS DE POESIA
narrador-personagem MAIS marcante
os três mais divertidos

*o livro de Mila Teixeira também poderia estar listado aqui

livro que mais me fez chorar
LIVRO MAIS BONITO DO ANO
Livro que ficou me assombrando

No útero não existe gravidade – Dia Nobre

*o livro não é de terror, mas ele ficou comigo depois como se fosse um fantasma

livro mais cogumelo de todos

*eu invento categorias para indicar livros que são experiências únicas!

menção honrosa
três melhores releituras

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“O som do tapa” e o fio quase invisível que une as escritoras

Escrever é uma atividade considerada solitária. É preciso concentração, silêncio, tempo para colocar as palavras no papel, transformá-las em alguma coisa com sentido e depois trabalhar o texto, polir frases, reconstruir parágrafos. Só que escrever é muito mais do que isso. Quem escreve não escreve do nada, dialoga com o que veio antes e com o que está por vir. Um livro puxa o outro, que puxa mais um e esse faz nascer um blog, uma newsletter, um instagram literário, uma ideia, uma vontade de contar uma história ou duas, um desejo de compartilhar cada detalhe. Quem escreve está povoado de vozes e todo o processo de silêncio, concentração e tempo vem da necessidade de encontrar a maneira certa de construir cada texto.

O parágrafo acima é uma especulação, talvez até uma idealização. Foi construído amparado ao que eu acredito como escritora e o A que fecha essa palavra-identidade-desejo significa. Ao meu redor, vejo muitas mulheres que escrevem construindo um universo que as caiba. O apetite pelas letras de uma alimenta a coragem da outra de se colocar no mundo e assim vai. É uma tentativa de construção de potencial e oportunidade que surge a partir da troca, uma rede de aprimoramento que se cria do encontro da identidade com a alteridade e também um desafio de convivência.

Carla Guerson escreve desse lugar. Eu gosto de pensar que eu também. Por isso, em algum momento, a gente se esbarrou. Nesse nosso meio, encontros são desejados. A gente se constrói como escritora assim. A descoberta da Outra é a nossa chance de pescar algo novo no mar de histórias que nos cercam. Quem escreve precisa estar atento, uma boa história pode estar bem ao nosso lado e ai de nós se não tivermos com o olhar afiado o suficiente para captá-la. Quem escreve se coloca no mundo como uma antena parabólica. “O som do tapa” é o resultado dessa perspectiva de escrita e leitura do mundo.

A partir de 28 contos curtos, a autora constrói um livro coeso todo protagonizado por mulheres desabando, mulheres que se sentem deslocadas no mundo que vivem, destituídas da própria vida, fora daquilo que esperavam delas ou de si mesmas. Mesmo com experiências, idades, situações financeiras e sociais diferentes entre si, as vidas dessas personagens se entrelaçam no livro pelo que elas têm em comum: o impacto na subjetividade que o machismo e outras questões pessoais ou sociais que atingem algumas mulheres específicas podem trazer.

Em poucas páginas, Carla dá vida a um mundo de personagens complexas que mesclam questões individuais e atravessamentos sociais, sem jamais reduzi-las somente a seus sofrimentos, tornando cada uma dessas mulheres um alguém diferente, apesar do que o mundo quer de cada uma delas ser mais ou menos igual: a anulação de si. Mesmo abordando temas difíceis e necessários na maioria das histórias e por isso mexer com o leitor a partir do incômodo, há também contos um pouco mais leves, apesar de também críticos, como o incrível “As louças”.

Vale destacar que a autora explora muito do universo íntimo, tratando relações familiares e amorosas de uma maneira que surpreende, mas também é capaz de criar identificação e/ou empatia. “O som do tapa” mescla cotidiano, crítica ao machismo e muita vontade e habilidade de nos surpreender com finais fechados com chave de ouro. Carla Guerson estreia com contos bem escritos, bem conduzidos e de estrutura variada, histórias que se constroem baseadas em detalhes banais e privados que aproximam e afastam quem lê de cada personagem, de cada relação, porque o comum nos lembra o que mais existe com o disfarce de dia a dia, o que mais a gente finge não ver com a desculpa de que é tudo ordinário demais ou particular demais.

“O som do tapa” é um exercício de observação que denuncia o que muitos de nós não têm percebido ao redor de si ou, em muitos casos, até em si mesmas e escrever sobre isso é algo muito menos solitário do que pode parecer. Um livro puxa outro, que puxa mais um conto e esse conto servirá pra puxar mais uma língua e essa língua agora falante puxa outras línguas falantes e assim acontece a descoberta de que todas essas histórias também importam.

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Os tais caquinhos que formam Abigail, eu e você

Virar mais mãe de mim mesma; era o que me restava. Ou nascer de mim como salvação. (pg 130)

Acervo Pessoal – Adquira seu exemplar aqui!

Aos 31 anos, 11 meses e 1 dia, eu posso dizer que já me senti um caco várias vezes. Me vi caco por estar muito cansada, fiquei um caquinho por causa de uma virose que peguei na praia, me senti um pedaço de uma garrafa de cerveja quebrada depois de algumas brigas, episódios de bullying, pesadelos, ressacas e noites de insônia. E nem comento de como me dividi em pedacinhos minúsculos de vidro temperado nas incontáveis vezes que fracassei, nos lutos que me cercaram e naquela vez que peguei dengue e fiquei com o corpo todo dolorido, inchado e coçando.

Estar um caco ou dividida em muitos caquinhos é um estado quase permanente para todo mundo, ainda que se varie os motivos, a frequência e a força dos desastres que afetam cada um. Viver é se dividir em pedaços cada vez menores, se quebrar toda, aprender a cair pra lascar menos as arestas e depois, lentamente ou não, colar tudo ou tentar fazer isso da melhor maneira possível. Na hora de pregar as peças, a gente percebe que nada mais tem lugar certo e que não tem super bonder que resolva algumas coisas. Alguns pedaços, talvez a maioria deles, ficam expostos mesmo quando a gente termina de montar esse mosaico que somos. De pertinho, alguém sempre consegue ver os remendos, mas de longe não. De longe, as pessoas às vezes não veem nada disso, ou veem, mas fingem que não tem nada demais no que parece estar prestes a cair criando milhares de novos pedaços. De longe, a maioria pensa que tudo está funcionando nos conformes, porque não sabe que essa resenha demorou tanto a sair, porque alguém, em meio ao seu caos particular de sempre, sumiu com as anotações que fez para se preparar para mediar o encontro do Clube Cidade Solitária sobre a obra que tenta introduzir agora e por isso teve que recomeçar a escrita desse ensaio/resenha do zero. O que, vamos combinar, é quase uma piada, como é também nosso hábito de fingir que esse processo de recolhimento e colagem de pedaços não acontece o tempo todo e como esse ciclo ganha características especiais quando se é adolescente e pertencer se torna um desejo, um desafio, uma necessidade e quase uma impossibilidade.

Eu odeio o Ivan Lins, eu me odeio e me amo e não me suporto. Não sei qual fundamento me fez vir ao mundo, já que não contribuo pra nada, nem para o meu próprio benefício. Sou imatura e tenho um coração de um tupperware malcheiroso e vazio. (pg.82)

Os tais caquinhos”, livro de Natércia Pontes, é sobre os fragmentos, pensamentos, sentimentos, sonhos, pesadelos e lacunas que quando empilhados formam Abigail. A própria estrutura da obra evoca esses pedaços unidos pela cola do diário da narradora e protagonista que acompanhamos, um diário que parece fazer pouco sentido até que faz algum, porque esta história só poderia ser contada assim, totalmente despedaçada e cheia de durepox. Temos então uma adolescente que vive paixões avassaladoras, o tédio e a escola, como a maioria das meninas de sua idade. Só que a vida de Abigail não é como a delas e as paixões avassaladoras, o tédio e a escola acontecem no apartamento 402. O que significa um lugar de falta, de caos, de sujeira, de nojo, de infestação de insetos e, por incrível que pareça, um lar.

Fiz questão de dormir enrolada nele, como se estivesse encapsulada num casulo de algodão, forte o suficiente para me proteger do impacto de mais um chute. (pg 87)

Natércia Pontes escreveu uma obra que evoca a adolescência em tudo, inclusive na invenção do mundo, da família, da falta, da intensidade, da sexualidade e do significado do eu, sem esquecer dos odores fortes desses corpos tão hormonais e ainda não totalmente compreensíveis a seus donos. Odores comuns que se misturam a um apartamento que parece estar em decomposição e a um pai pouco afeito ao mundo prático e cotidiano.

Lúcio — sempre hipervigilante, sobretudo em situações cotidianas, que não suscitavam perigo — me ouviu. (pg 124)

Esse é um livro que fede. Depois de terminar essas páginas, a frase “o requeijão está estragado” nunca mais será lida ou ouvida sem que esse odor não venha até às narinas pronto para derrubar qualquer um em um nocaute. As descrições incomodam, ensinam o cérebro a fazer o caminho direto para o nojo, nos lembram que algo deve estar podre no reino da Dinamarca — ou da Nova Zelândia — e talvez até dentro de nós mesmos.

Essa é uma obra capaz de nos fazer voltar para cada um dos caquinhos que acumulamos na nossa formação, olhar de novo para aquilo que a gente costuma chamar de passado, mas faz parte de cada um mesmo quando a gente tem o hábito de jogar fora as coisas na hora certa. E também faz mais do que isso, porque Natércia descreve o que ninguém gosta de olhar, cria cenas úmidas que misturam elementos que poucas vezes vemos juntos e que por isso tornam essa história ainda mais próxima, interessante e, talvez, poética. E, desse mesmo modo, ela incomoda o leitor por mostrar a complexidade das coisas. Nada nesse livro é limpinho. Ou simples. Ou mesmo fácil de lidar. Igual crescer.

Lúcio, pai de Abigail, não sabe cuidar nem de si mesmo. É acumulador, neurótico, diz que quer morrer e que é muito bom sentir fome, mas também é amoroso e compreensivo com suas filhas. Confia nelas, inclusive. Conversa, apoia, dá autonomia, junto a uma perigosa passividade de sua parte. Lúcio não é um homem que abandona, é um negligente negligenciado, um cara que simplesmente não está bem. Juntos, os três sobrevivem.

De repente os dias pareciam mais leves, como se uma camada grossa de poeira espalhada sobre todas as coisas e sobre cada pensamento entulhado na minha cabeça tivesse sido sugada por um imenso aspirador de pó. (pg. xx)

O apartamento 402, em todo o seu caos, é uma extensão de Lúcio, a materialização de seus caquinhos se acumulam ali, juntando poeira, sebo e bicho. Ele tenta guardar todos os aspectos de sua vida ali, como se dessa forma, com tudo perto e (quase) visível, ele conseguisse encontrar algum sentido nessa sucessão de acontecimentos que nós não conhecemos bem, mas formam sua existência (logo, também a de suas filhas). E por serem partes essenciais da vida dele, elas também moldam seus quartos cada uma à sua maneira, com suas marcas de pés na parede, suas roupas sujas guardadas, um edredom sonhado ou mesmo com roupas emprestadas das amigas, um certo asseio e um maior nível de organização. Cada caos, uma tentativa de ordenação e registro dos caquinhos que surge como uma necessidade imediata de Lúcio e reverbera nelas.

Fiquei absorta por essa visão por um tempo indeterminado. O velho silêncio que nos unia, confirmando nossa proximidade, nossa vida cúmplice, mesmo que na maior parte do tempo nos comportássemos como frios inimigos debaixo de um teto recoberto de bolor” (pg.96)

“Os tais caquinhos” não é um livro fácil, sua fluidez angustiante e suja não funciona para quem tem estômago fraco. E eu nem falo isso por causa das descrições difíceis de digerir. Natércia construiu uma história que explora a feiura da adolescência, a naturalização da violência machista, a descoberta do eu e a espiral de autodestruição de um homem que sem querer leva sua amada filha mais velha junto a essa mesma lógica. E que, mesmo diante desse contexto, nos faz pensar que Abigail, Berta e Lúcio são uma família unida e em transformação, apesar dos pesares. Eles se amam e podem contar um com o outro. Eles se amam e querem ser melhores juntos. Eles se amam e por isso sobrevivem. Eles se amam… e acho que posso simplesmente dizer: “e ponto”.

Eu não tinha dito que o apartamento 402 era, apesar de tudo, um lar?

A casa dos outros, com seus cheiros adstringentes, lava-roupas trabalhando e geladeiras abarrotadas de produtos, não nos chamava mais. Queríamos o nosso escuro, o nosso casulo comum. (pg 129)

Observação: Cuidado! Ler esse livro pode te dar ânsia de vômito, fazer você pensar em gafanhotos como Clarice Lispector pensava em baratas e te levar a terminar o dia buscando no Spotify Marina Lima para ouvir em pleno anos 20!

Observação 2: Esse livro pode ter o efeito adverso de obrigar resenhistas sedentos por likes a passar minutos olhando fotos de gafanhotos para assim conseguir desenhar um só para fazer uma foto única para acompanhar a resenha/ensaio ainda a ser escrita. Foi o que aconteceu comigo. Espero não acabar sonhando com versões gigantescas desses bichos que Abigail “gosta” tanto.

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Espinheira-santa: luz e sombra na infância e além

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Em algum momento do fim da adolescência e ainda em Divinópolis-MG, Igor Damasceno e eu nos conhecemos. Há quase quinze anos, a partir dos blogs literários que mantínhamos em um misto de dedicação inesperada e displicência forçada, começamos a conversar. Igor foi o primeiro grande amigo que a literatura me trouxe. Se hoje troco com tantos leitores e escritores foi porque em algum momento a gente se encontrou e eu entendi o poder de conexão que a arte tem. E agora, em pleno 2021, estamos realizando o sonho que nos uniu: eu na espera do lançamento do meu livro de poemas eu investigo qualquer coisa sem registro, que sairá ainda esse ano pela Crivo Editorial, e Igor com seu livro recém chegado no mundo, vendo amigos e conhecidos espalhados pelo Brasil recebendo seus exemplares pelos Correios.

Com Espinheira-santa, que acabou de sair pela Caravana Grupo Editorial, meu amigo estreia e eu queria convidar vocês para lerem essa novela. Esse não é um convite que faço (só) como wannabe influencer literária, ele vem de um outro lugar, vem da sensação de que esse é um livro que me pega pela memória em todos os sentidos: evoca conversas, sonhos e leituras que dividi com o autor e também com o mundo, esse mundo que, mesmo sendo o da minha época, me parece mais próximo agora que eu o conheço pela turma de Reinaldo e Adelina. Esse mundo que, querendo ou não, também me formou.

Essa é uma obra com ares infanto-juvenis que tem como protagonista uma turminha de crianças que quer se dar bem a qualquer custo. Tudo se passa numa cidade do interior de Minas Gerais nos anos 90 e, durante a leitura, a gente se depara com referências da época, muita diversão e também as regras sociais que vigoravam enquanto os tais millenials cresciam.

Na última newsletter que enviei para meus apoiadores, eu disse “Se Ted Lasso é sobre acreditar, Espinheira-santa é sobre desconfiar”. Explico: a vida, especialmente essa que vivemos em pleno capitalismo tardio, vai nos ensinando a desconfiar de tudo, nos deixando cínicos e desencantados. Vivemos sem acreditar que um outro futuro é possível. Por isso, eu preciso do Ted Lasso. Ele, como personagem e programa de TV, me lembra de respirar, acreditar e sorrir. Fui 100% Ted Lassada não pela promessa de gargalhadas, mas pelo encantamento que essa série foi capaz de gerar em mim mesmo nesse aqui e agora. Só que eu nasci, cresci e vivo no Brasil e reaprender a acreditar é um exercício tão complexo justamente porque preciso continuar desconfiando. Então chega o Espinheira-santa que me lembra que as crianças vivem nesse mesmo mundo que a gente conhece e às vezes quase nega conhecer, elas não estão isoladas do universo adulto, e, por essas e outras, são pessoas com suas complexidades e, principalmente, interesses.

Desconfiar e acreditar coexistem dentro de nós: o mundo nos ensina a suspeitar, como também nos ensina a querer conquistar o posto de o melhor em alguma coisa e levar vantagem em tudo, então a gente vai e, sem jeito e hipocritamente, começa a depositar todas as nossas esperanças nas crianças, enquanto continuamos os mesmos ou quase isso. Mas esperança é algo a ser cultivado em conjunto, como numa horta comunitária. Mudar o mundo não pode ser algo guardado para gerações futuras, porque acreditar e desconfiar são ensinamentos e consequências da vida em todas as idades. Se o mundo é dos espertos hoje, a geração que cresce agora tem aprendido isso desde que respirou fora da placenta pela primeira vez. Exatamente como foi com a gente.

Em um momento em que a defesa dos direitos das crianças se tornou um tema constantemente manipulado para servir à censura e ao autoritarismo, essa novela de Igor Damasceno representa um respiro. Ele ousa sair desse lugar comum que insiste em reduzir a humanidade das crianças colocando-as como anjinhos puros unidimensionais, escolhendo contar uma boa história que expõe quem fomos, somos e podemos ser nesse mundo que nos é oferecido. Com uma narrativa que expõe uma multiplicidade de crenças brasileiras, os perigos da fé cega e sutis exemplos de intolerância religiosa, o livro mostra um mundo de plantas, filmes, conhecimentos gerais e sociais que cercam esses personagens cativantes que ainda veem meninas de uma maneira meio torta, tem medo de serem zombados e provavelmente surtariam com qualquer insinuação sobre a sexualidade de qualquer um deles.

Espinheira-santa brinca com o imoral e justamente por isso importa, porque o certo e o errado não são tão óbvios quanto parecem. Fugindo dessa idealização típica da infância e do passado, Igor nos diverte, enquanto nos faz refletir sobre como é preciso explorar o mundo para aprender mais sobre ele e seus horrores tão naturalizados. Talvez esse processo seja o melhor exemplo do que é crescer. E crescer também inclui olhar para trás, para quando éramos crianças, e perceber que muita coisa mudou, ainda bem, mas seria bom mudar mais um pouquinho e, como Ted Lasso, acreditar que isso é possível.

Seguindo a sugestão da capa do livro com vários tons de verde e título vegetal, começo então a pensar que há algo muito importante a se aprender com as plantas e que Igor captou bem: elas podem ser ornamentais, gostosas ou mesmo fitoterápicas, não importa, todas existem a partir da combinação de luz e sombra e seus mais variados usos dependem de nós. Acreditar inclui entender que essa é a regra da natureza, logo nossa, e assim aprender a lidar com esse outro lado repleto de zonas cinzentas que dizem muito mais da humanidade do que o simples preto e branco ousariam tentar.

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Ponciá Vicêncio: a memória é um vaivém de tempos e heranças

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Antônio Candido disse uma vez que o tempo é o tecido da nossa vida. Com essa frase, ele defendia o direito à literatura por considerá-la uma força humanizadora, uma forma de resistência ao capitalismo que se apossou daquilo que nos molda. A partir dessa perspectiva, penso que a memória é o nome que o tempo ganha quando é marcado pelas vivências, nossas ou dos nossos. Se tempo é uma palavra abstrata, de difícil apreensão, a memória talvez seja diferente. Enquanto palavra, sem qualquer outro complemento, a memória já evoca algo dentro da gente: uma história que alguém nos contou, uma cena, um momento, um fragmento daquilo que somos, do tempo que pertencemos.

Tempo também pode ser questão de segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses, anos, décadas, séculos e milênios, uma definição que tenta nos iludir sobre o grau de controle e conhecimento que temos de tudo isso enquanto humanos. Ou mesmo clima. O tempo pode estar ou não bom pra se sair de casa, fazer uma caminhada ou render uma boa colheita. O tempo assim parece mais simples, mais simples até que a memória. Parece definitivo, certeiro, algo que pode existir em forma de calendário. É um terreno perfeito para planos. O tempo é para nós também todas essas convenções, mas a memória é o nome que o tempo, em qualquer uma de suas concepções, ganha quando encontra um eu.

Ponciá Vicêncio, romance de estreia de Conceição Evaristo, existe, porque existe um tempo e ele é o tecido de nossas vidas. E as vidas se constituem e se constroem a partir da memória. E é seguindo essa lógica que a história da protagonista que dá nome ao livro se desdobra, mostrando que memória é o que nos forma enquanto indivíduos, ou personagens, mas é também o que nos liga aos outros, ao mundo. Somos o que nos é contado e também o que é silenciado, somos fruto de narrativas que envolvem muitas gentes, memórias e heranças, somos essa mistura entre eu e nós. Enquanto romance, essa história é sobre o tempo que circunda a existência dessa personagem que vive uma vida negra anos após a abolição da escravatura, mas sente em seu corpo, sua mente e em seu entorno o que restou da época anterior. E restou muita coisa e todas elas permanecem como uma herança dolorosa de um passado que não foi completamente embora.

Conceição Evaristo constrói essa narrativa e sua protagonista a partir de pedaços: costura retalhos — ou cola caquinhos — de quem foi Ponciá com a Ponciá do presente, enquanto, a partir dos laços familiares, monta um cenário mais amplo que o próprio tempo da protagonista. Ponciá se vê responsável por ser guardiã da memória dos seus e lembra, lembra e lembra, vivendo de lembrar. Estando longe e vivendo o que seu tempo reserva, é isso que resta. A memória se manifesta no enredo a partir dos fragmentos, das idas e vindas entre tempos, da trajetória que se conta nessa linearidade própria das lembranças, e, estruturalmente, vem também a partir da repetição de nomes, de cenas, de imagens, das percepções e sensações. Os nomes tão ditos são uma reafirmação de vínculo, de existência e um lembrete da negação da humanidade de muitos. Vicêncio é um nome que não é tão nome, é marca de um passado que insiste em continuar à maneira da branquitude.

A memória é para a protagonista um chamado, o que resta de uma subjetividade esmagada pelas faltas, pelas perdas, pela violência da vida, que é marcada por seu gênero, classe e cor. Nesse sentido, entre tantas coisas, chama atenção a saudade que ela sente de moldar o barro. A mão coça, ela diz. Ela precisa estar perto do rio, usando as mãos pra moldar essas memórias que são seu destino. Nisso me vem uma dúvida: memória também pode ser desejo? Se é possível ser assombrado pela falta, também existe o fantasma do querer. Volto então ao barro: as peças que Ponciá fez com sua mãe são reconhecidas em um passeio que seu irmão faz em um museu. Os nomes delas estão ali como criadoras, mas as peças pertencem a um nome desconhecido, o do proprietário. Parte da memória daquela família ainda está nas mãos de um outro alguém e é assim que é apresentada no espaço que se coloca como guardião da história, da memória.

O tempo é o tecido da vida, múltiplas linhas se cruzam e entrecruzam, formando uma malha que serve de cenário-personagem-enredo, que formam passado, presente e futuro, formam eus e nós. E talvez também eles. O tempo forma a memória e a memória é algo que não pode ser completamente destituído de uma pessoa, mas que ainda assim acaba no terreno da investigação e recuperação dependendo da sua origem, etnia, cor de pele. Conceição Evaristo então escreve essa história, porque lembrar, lembrar e lembrar, e depois contar, seja pela via da ficção ou não, é resistência, é força humanizadora, e também uma espécie de destino, porque essa história não é só a de Ponciá.

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A proclamação da vulgaridade é uma defesa pela risada largada

Acervo PessoalTodas as fotos desse post foram originalmente publicadas em meu Instagram.

Não me lembro direito da primeira vez que li a frase “Sexy sem ser vulgar”, mas de quando comecei a ironizar e responder, ao menos mentalmente, a tudo com um simples “Vulgar sem ser sexy”, eu me recordo muito bem.

“Vulgar sem ser sexy” se tornou uma espécie de grito de guerra interno meu, a frase conforto que eu pensava toda vez que sentia um incômodo com o que me era empurrado como obrigação feminina e sonhava com as ideias de liberdade e intimidade.

O que chamam de vulgaridade sempre me pareceu muito mais humano do que o elegante, o culto, o feminino ideal. Mais verdadeiro, algo da essência humana, o segredo que todos realmente dividem, o de sermos bichos (ou que a Sandy também caga).

“A proclamação da vulgaridade ou quantos furos uma calcinha pode ter?”, livro de estreia da Mila Teixeira, foi uma leitura que me lembrou do meu apego adolescente a essa expressão e me divertiu horrores com as boas doses de realidade e identificação que, junto a um mundo de boas referências, tornam a voz da autora única.

Eu amei, porque esse é um livro que mostra e explora a beleza e o horror de sermos o que somos, de não nos levarmos tão a sério e da intimidade das portas abertas. Mila é uma mulher que tem como poética o humor, o comum, a banalidade, a risada rasgada e a boa e velha cachorrada.

Terminei a leitura lembrando que as primeiras mensagens que eu troquei com a poeta na rede social Instagram foram sobre candidíase e me senti ainda mais próxima desse livro que conforta e faz rir todo mundo que usa calcinhas furadas, já tomou dipirona vencida, pensa na decomposição da barata que mata e mija demais por prezar sempre por boa hidratação (e Coca-Cola).

Tudo a ver com o #domingodabanalidade, né?

Esse texto foi publicado originalmente em meu perfil do Instagram durante um especial chamado #domingodabanalidadeSe você gostou, deixe um comentário, compartilhe com seus amigos e me acompanhe também pelo Medium,  Facebook,  Twitter,  TinyletterApoia.se e  Instagram. Compre o livro diretamente com a autora ou na editora Urutau.

Mulheres negras escrevem o mundo

No mesmo mês que “Poetas negras brasileiras: uma antologia” chegou em minha casa, o livro “A vulva é uma ferida aberta & outros ensaios” da Gloria Anzaldúa veio parar em minhas nãos. A antologia foi lida primeiro, a partir do acaso que, com ajuda dos Correios, impôs a esses dois livros diferentes datas de chegada, mas Gloria Anzaldúa já estava ali comigo, acompanhando minha incursão nos vários universos poéticos catalogados por esse livro de poemas que, do miolo até a capa, reafirma a existência e a heterogeneidade da escrita feminina e negra e brasileira, essa escrita feita fora do que chamam de Norte do planeta por quem precisa colocar sua voz no mundo.

De Gloria Anzaldúa conheço pouco até então, apenas o texto Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo”, lido antes e depois da chegada desse pequeno tijolinho roxo editado pela A Bolha e traduzido pela poeta Tatiana Nascimento, e algumas outras citações esparsas, mas isso foi mais do que o suficiente para eu costurar essas duas leituras que agora me parecem tão complementares.

“Poetas negras brasileiras” tem como organizadora Jarid Arraes, escritora que desde a sua origem independente atua evidenciando as desigualdades do mercado editorial e do mundo da escrita em seu sentido mais amplo. Com esse livro, que une estreantes e também nomes consolidados, a editora do selo Ferina desconstrói estereótipos sobre a escrita feminina e negra e indica novos caminhos para quem escreve e quem lê, enquanto apresenta o livro e a palavra como ferramentas de expressão cultural e individual e também de luta e denúncia. Semelhança e diferença coexistem na obra como uma bandeira literária que aponta o óbvio ao leitor, ao crítico e à sociedade: a literatura não é feita só por homens brancos e a ideia de condição humana e universalidade não vem somente dessa perspectiva, ela vem das múltiplas possibilidades de encontro da alteridade com a identidade.

Gloria, em seu ensaio mais famoso, diz:

“Por que sou levada a escrever? Porque a escrita me salva dessa complacência que temo. Porque não tenho escolha. Porque preciso manter vivos o espírito de minha revolta e a mim mesma. Porque o mundo que crio na escrita compensa aquilo que o mundo real não me dá. Ao escrever, eu organizo o mundo, ponho nele uma alça em que posso me segurar. Eu escrevo porque a vida não satisfaz meus apetites e minha fome. Escrevo para registrar o que outros apagam quando eu falo, pra reescrever as histórias mal-escritas que eles contaram de mim, de você. Para ficar mais íntima comigo mesma e contigo. Pra me descobrir, pra me preservar, pra me fazer, pra ter autonomia.”

E continua:

“O ato de escrever é um ato de fazer alma, uma alquimia. É uma jornada em busca do eu, do cerne do eu, aquele nós mulheres de cor pensamos ser “a outra” – a escura, a feminina.”

E depois, seguindo esse raciocínio, afirma:

“A escrita é uma ferramenta para adentrar esse mistério, mas também nos protege, nos dá uma margem de distância, nos ajuda a sobreviver”.

Por mais diversos em temática, estilo e até estrutura que sejam os poemas das autoras negras brasileiras catalogados nessa antologia, todos eles me parecem ter sido escritos por essa força-motriz exposta pela Gloria nesses destaques. A escrita para grupos oprimidos é marcada pelo desejo de subjetivação perante o mundo que prega o individualismo homogêneo, enquanto nega a subjetividade de certos corpos, e é por isso que a publicação de obras como essa antologia importam tanto e tem dimensões políticas que mesclam o individual e o coletivo.

Ancestralidade e filiação, afetos e sexualidade, identidade, racismo, trajetória, dúvidas, amor romântico e a falta dele e até mesmo as angústias contemporâneas que se relacionam com as redes sociais são alguns dos assuntos trabalhados por algumas das mais de 70 poetas negras que fazem parte desse trabalho. Vale destacar que a curadoria de Jarid reuniu autoras de 18 anos a 70 anos e tentou abarcar todo o Brasil, com nomes oriundos inclusive de cidades do interior, mas infelizmente falhando em não conter representantes das regiões Sul e Norte do país*.

Com poemas de nomes como Conceição Evaristo, Bianca Gonçalves, Cristiane Sobral, Mel Duarte, Lubi Prates, Mika Andrade, Nina Rizzi, Tatiana Nascimento, Cecília Floresta e o da própria organizadora, a obra surge já mostrando que o enorme talento dessas poetas negras não é exceção. Entre as poetas que eu ainda não conhecia, destaco o que vi de Thamires P., Silvia Barros, Pétala Souza, Nicole de Antunes, Mayara Ísis, Marina Farias, Mariana Madelinn, Maria Vitória, Luna Vitrolira, Juliana Berlim, Jhen Fontinelli, Gessica Borges, Eliza Araújo, Débora Gil Pantaleão, Kiusam de Oliveira, Jovina Souza e Andrezza Xavier no livro. Há um mar de mulheres negras fazendo literatura em terra firme mesmo quando o mundo, na prática, ainda insiste em dizer que esse não é um lugar para elas.

*O livro foi construído a partir de uma chamada nas redes sociais e, apesar do esforço da organizadora em mudar isso, a ausência de autoras dessas regiões provavelmente veio da limitação desse formato.

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Nas minhas andanças literárias, conheci Eisejuaz

Acervo pessoal – Compre seu exemplar aqui

Pensar nos caminhos misteriosos que trilhamos para chegar a cada livro às vezes nos leva a descobrir que estamos investigando temas sem tomar consciência disso. Encontrei Sara Gallardo numa busca pessoal que envolve conhecer mais autoras argentinas, ou melhor, mais autoras latino-americanas, mas lendo “Eisejuaz”, único livro da autora traduzido para o português, percebi que fui parar em um outro lugar, um espaço muito mais amplo que envolve mais do que autor(a), territórios nomeados e personagens. Essa impressão, assim como essa procura, não veio do nada: caminhei para ela sem gps ou bússola, seguindo apenas pistas aleatórias que os livros que li foram me deixando.

Eu não sabia, mas “O mundo se despedaça” de Chinua Achebe e “Os rios profundos” do José María Arguedas me levaram até “Eisejuaz” e a investigação do que foi e é poder e na concorrência desleal de um com o outro. Eu poderia ter seguido uma linha reta, como a rota de uma viagem de avião típica, e chegado outra até essa obra da Sara Gallardo, mas minha leitura foi a partir desse lugar mais sinuoso, porque eu fiz essa viagem por terra nesse ano de 2021, levando um outro ritmo e um outro mundo de referências que incluem esses que nomeio e muitos outros, entre eles Ailton Krenak, Sônia Guajajara e Joênia Wapichana.

“Não tem lugar pra nós nem lá e nem cá. Lá o barulho dos brancos acaba com nosso alimento. Cá, nós se alimenta de peste e de miséria.”

Recém chegado no Brasil com tradução de Mariana Sanchez e edição da Relicário, mas publicado originalmente em 1971, essa narrativa, construída por Sara Gallardo a partir da entrevista que ela fez com um indígena wichí em 1968, continua necessária e, infelizmente, bastante atual e indo muito além do Chaco Argentino. Vide o Brasil e a grilagem, o Brasil e a Damares, o Brasil e o Bolsonaro, a pandemia e o genocídio indígena.

Mais do que um livro riquíssimo que nos faz pensar nos efeitos gerais do colonialismo e do racismo anti-indígena, essa é uma obra sobre o esforço de um homem para encontrar algum sentido em meio a dois mundos colidindo. “Eisejuaz” é sobre a insistência em tentar se encontrar e encontrar algo maior que a própria humanidade quando os parâmetros que o seu povo sempre seguiu não existem mais e as novas diretrizes te excluem e te exploram. O personagem que dá nome ao livro vive uma trajetória religiosa que surge em meio a isso e, a partir da sensação constante de deslocamento, falta de sentido e exclusão, se desenha. Essa é uma obra sobre ser estrangeiro em todos os espaços, inclusive às vezes até dentro de si mesmo.

“Um animal demasiado solitário devora a si mesmo.”

Com uma escrita poética, misteriosa e construída a partir de uma disputa de línguas e visões de mundo, Sara Gallardo nos coloca para pensar, também a partir das palavras torcidas de seu protagonista, no ensinamento da subordinação que está intricado no colonialismo e na dominação no todo e em como esses conflitos atravessam, de maneira violenta, todo um território. E mesmo com um protagonista homem, a autora explora como, em meio a imposição de uma sujeição geral, o jugo feminino se desdobra, misturando velho e novo, gênero, classe e raça.

Eisejuaz é Lisandro Vega, Este Também e Água que Corre. Suas várias vozes, angústias e seu espírito buscante interagem com um mundo que se despedaça e um outro que se impõe já com a desigualdade como base. Ler essa obra dói, porque nos faz pensar em solidão, desejo, tempo pertencimento, levando em conta também esse entorse social que parece estar sempre a um passo de romper contra o lado mais fraco.

“Nosso tempo terminou e o de todos os paisanos. Agora cada qual deve viver como puder.”

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