Amor como trajetória

Arquivo pessoal. Ilustração minha.

Desaprendi a escrever sobre amor. Há anos não o faço. Isso não aconteceu porque eu deixei de achar esse sentimento importante ou por decepção, simplesmente eu não sei mais fazer isso. Perdi meu mojo. Só as cartas e zines de amor restaram.

Amor foi o tema principal da maioria dos meus poemas, contos e crônicas por alguns anos. Enquanto eu idealizava o amor, os textos fluíam, brotavam, surgiam até mesmo ao olhar uma rachadura na parede. Eu queria tanto viver e me alimentar de amor, que a escrita servia de sobremesa gourmet após os beijos nas paixões fast food.

Eu definia o amor como algo intenso, louco, inseguro, exagerado e doloroso. Apesar de escrever tanto sobre, eu ainda encarava amar como uma fraqueza, uma vergonha, um sofrimento desejado. A receita para se sentir completa. Eu enxergava uma espécie de glamour em sofrer por amor. Achava bonito isso, sabe? Achava coisa de artista. Achava que era assim que se vivia de verdade.

Aprendi nos filmes, séries e livros que amor era algo a ser escondido ou jogado de forma estratégica, sempre chorado. Tudo que eu escrevia se baseava num jogo de egos em que os envolvidos competiam o tempo todo. O amor era o que tornava os personagens especiais porque ser amado significava que eles eram alguma coisa o suficiente para serem notados por alguém. Eu demorei a perceber que eu não escrevia sobre amores falidos e sim sobre ego, idolatria e controle. Eu narrava a história de gente que se achava um floquinho de neve especial só porque alguém queria estar perto deles ou que definia seu valor com base nisso. Amor era troféu. Lembro de um conto feito por mim que narrava um caso amoroso pela ótica dos dois personagens envolvidos e um deles concluía que ambos estavam perdendo ao encarar o que viviam como uma competição. O interessante é que perder ali podia ser perder a chance de viver um amor saudável ou perder um jogo mesmo. Eu idolatrava uma ideia de amor torta ao mesmo tempo que a questionava.

Minha visão foi mudando e passou a ser mais difícil escrever sobre. Percebi que os conflitos que entendemos como inerentes ao amor não o definem. Agora considero esse sentimento como algo leve e o vejo como uma troca gostosa de carícias,de memes, risadas, sonhos e preocupações de pessoas completas. Pra mim, ele é tranquilo, é se satisfazer ao ficar perto e dividir, se divertir e desabafar deitado na cama antes de dormir. Fazer nada juntos e gostar muito disso e ter um mundo de piadas internas que exteriorizam um pouco da conexão que existe ali. Não são metades que formam um, são pessoas diferentes que juntas potencializam o que a outra tem de bom.

As histórias de amor agora só fazem sentido se contadas cara a cara. Gosto de ouvir como as pessoas se conheceram, como elas estão juntas e o que elas planejam. Gosto de acompanhar a história observando todas as nuances das expressões humanas e acompanhar a felicidade conjunta. O amor é simples demais para ser traduzido só em palavras. A intensidade do amor não é tumultuada, ela é uma sensação imensa de que a simplicidade do que se vive não é explicável. Ele só existe e nos preenche. É a questão da prova que é fácil, só que a gente erra porque acredita que não pode ser tão simples assim e fica procurando algo mais.

Acho que aprendi o que é amor só quando parei de idealizá-lo e passei a vivê-lo.

Para isso bastou descobrir que na palavra amor cabe relações humanas que vão muito além de pares românticos e que qualquer afeto pode ser construído pelos envolvidos sem naturalizar dores e angústias além daquelas que a convivência humana saudável pode trazer.

A palavra-chave do amor, qualquer que seja o foco dele, é vontade de fazer ser bom. Se amor é mesmo um jogo, como dizem os filmes e os conselhos, ele é um joguinho de construção. Peça por peça, se monta e desmonta o que é o amor.


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Crise existencial protocolar

Arquivo pessoal. Ilustração feita por mim.

Desde o registro do nascimento no boletim médico, nós recebemos um número que nos identifica. Data, hora, peso, altura, protocolo de entrada da gestante (ainda somos um pouco nossas mães). Poucos dias depois, alguém nos registra e o cartório informa ao mundo o nome e sobrenome que a família escolheu e nos dá um número que servirá de base para tudo, o de matrícula. Agora temos uma certidão de nascimento. O Estado e o direito nos reconhece. Com ele, conseguimos ter os números que abrem as portas para tudo: o de registro geral e o do cadastro de pessoas físicas. Nesse meio tempo, somos registrados em cada instituição que pisamos: escola, faculdade, banco, plano de saúde, cursinho de idiomas, trabalho, clube, outro país. Do passaporte à carteira nacional de habilitação. Também somos o ddd e o número do celular.

Seu nome, seus números. Para acessar qualquer direito, para comprar várias coisas, contratar serviços, receber salário, para atravessar a fronteira, a gente precisa de se afirmar como uma sequência de algarismos. Existimos enquanto números, enquanto achamos que somos nomes.

Um dia tememos o bug do milênio, os computadores eram programados para entender os anos com apenas dois dígitos e 00 podia ser 1900 ou 2000. Datas erradas, números binários, falência, juros negativos, investimentos perdidos: era a previsão de uma desordem no sistema econômico mundial sem precedentes. O ano virou sem o apocalipse financeiro e seguimos com medo dos próximos fins do mundo.

O meu fim do mundo ocorreu numa segunda-feira, ao descobrir que mais de dois anos da minha vida tinham sumido de um sistema. Foi um bug que passou despercebido por ter atingido só a parte de um todo e se alimentou da incompetência alheia e da minha negligente mania de adiar tudo e não conferir nem troco. Tenho ou tinha a ingenuidade de quem se acha mais que número. Sempre achei que eu era gente e que era meu nome que carregava minha história. Eu não sabia que nome não é garantia de existência. Puff, nenhum dos tantos protocolos que um dia tive que anotar consta como registrado, tudo apagado. Em algum aspecto deixei de existir. Minha percepção de quem eu sou perpassa por esses anos perdidos, mas eles não existem mais. São feitos de memórias sem fé pública. Qualquer coisa feita pra corrigir será fora de hora. Tudo será refeito com uma nova data. Os anos continuarão vagos. Um lapso temporal que soa como anos sabáticos. A nova data valerá para documentos e constará no sistema, mas um pedaço de mim desapareceu. Ainda existe pra mim, mas oficialmente sumiu. Sou o que consta ou o que aconteceu?

Um bug de consequências burocráticas que num mundo de números e documentos afeta até os batimentos cardíacos e o funcionamento do intestino. Somos mais número que imaginamos. O acesso ao mundo depende deles. Somos afetados, somos dependentes.

Depois dessa, não sei por quanto tempo me sentirei confortável sem uma conta de banco e um cartão de crédito. Por não existir em termos capitalistas ou corporativos, fui rejeitada na hora de contratar alguns serviços algumas vezes. Nunca tinha me incomodado com isso antes, achava que era só uma bizarrice boa pra virar “causo”. Agora temo que a cada ano sem, eu passe a existir menos, independente de eu ter me tornado ou não mais gente. Afinal, é um número a menos e somos todos feitos por eles.


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A casa da memória

Aos quinze anos fui visitar a casa em que cresci e a descobri muito diferente. Os cômodos eram bem menores do que eu me lembrava. Os armários acoplados dos quartos não eram enormes pedaços de madeira escura trabalhada e que intimidavam pelo seu tamanho. Esses armários, na minha memória, eram tão imponentes que pareciam sustentar as paredes, o teto, a casa. Agora não havia nada de intimidador neles. Estavam velhos, com aparência de fragilidade até. Pareciam tão fracos que era como se tivessem encaixado painéis de madeira esculpidos como guarda-roupa entre as paredes. “Foram só cinco anos, como pode tudo ter mudado assim?”, eu me perguntava.

Eu não esperava encontrar tudo igual. Eu sabia que haveria um estranhamento, que eu me sentiria uma estranha ali. Só que eu imaginava que a percepção seria outra, que eu sentiria a casa mais ampla do que de fato ela foi, que tudo aparentaria ser bem maior sem as nossas presenças marcadas pelos objetos que possuíamos.

Depois de revisitar os cômodos do interior, fui para o quintal. Pela porta da cozinha, avistei onde ficavam os canteirinhos. Ali, meus pais plantavam cebolinha, manjericão, salsinha, couve, pimentas e até umas ervas para chás. Tanta vida coube ali, mas agora só se via um espaço com terra tão pequeno que fazia o verde da minha memória parecer quase um bosque. Só que dessa vez eu já não buscava mais comparar minha memória com a realidade. Não era mais isso que me movia. Eu já sabia que seria decepcionante ver essa parte da casa sem qualquer planta viva. O que eu queria mesmo era saber como estava o quartinho dos fundos que me aterrorizava durante a infância.

Desci a rampa. Ela não tinha nada do grande tobogã que fez parte de tantas das minhas brincadeiras. Apesar das minhas pernas terem continuado curtas, atravessei com poucos passos o caminho que um dia me pareceu longo e quando vi já estava na porta do quartinho.

Ele estava fechado. Eu já tinha aberto a porta dele antes, mas dessa vez tinha algo diferente. O meu medo de infância rememorado e o vazio de toda a casa aumentou seu ar de mistério.

Durante todo o tempo que vivemos ali, meus pais guardaram ferramentas, potes, vassouras, rodos, vasos, material de jardinagem, cadeiras de bar, enfeites de natal, baldinhos e até minha bicicleta e meus patins nesse espaço. Tudo que não cabia bem dentro da minha casa ia parar ali e formava uma bagunça daquelas. Entrar no quartinho era necessário, algo do dia-a-dia, mas ainda assim sempre fiz com pressa e receio. Toda vez que era preciso transpor aquele limite simbolizado pelo batente, eu sofria, e uma vez lá dentro, eu temia não mais voltar.

Por isso, eu escancarava a porta, colocava algo para garantir que ela ia se manter aberta e entrava correndo e voltava de lá com o que eu deveria buscar em minhas mãos. Quase sempre minha bicicleta ou meus patins, que ficavam apoiados bem na entrada, mas que ainda assim me faziam entrar ali por tempo o suficiente para temer.

Não sei dizer quanto tempo fiquei ali apenas encarando a maçaneta. As lembranças infantis são capazes de aterrorizar mesmo o mais seguro e cético adulto, imagine então uma adolescente de quinze anos que foi visitar sua antiga casa sozinha antes que ela fosse pintada para ser colocada à venda.

Abri a porta, entrei e notei que o quartinho tinha diminuído como todo o resto. Só que ele sofreu a diminuição de forma mais intensa: o que antes me parecia uma sala que foi transformada num armário de coisas pouco usadas ou grandes demais pra ficar dentro de casa se tornou uma dispensa grande.

Estranhei como era capaz de caber tudo aquilo que sempre vi ali dentro naquele lugar tão pequeno. Fiquei conferindo o espaço, enquanto lembrava onde a gente guardava tudo. Eu sentia o cheiro de tinta, as paredes ali já estavam recém pintadas. Não havia nada mais ali. Nenhum objeto, nem mesmo as marcas das prateleiras que eu esperava ver. Senti que todo aquele medo era coisa de criança.

Contemplei o quarto com o orgulho de quem venceu seus próprios medos. Finalmente tranquila, pude olhar para o todo com atenção e assim consegui ver algo que não tinha percebido ainda. Havia um buraquinho no chão bem onde as paredes se encontravam. “O quarto está recém reformado, como poderiam deixar passar isso?”, me perguntei enquanto chegava mais perto para conferir. Quando me abaixei para olhar, senti que o buraquinho não era só estranho, era poderoso. Ele inspirava o ar dali e o levava para o lugar nenhum. Eu sabia que se chegasse mais perto sentiria também que ele fazia um som bem específico quando puxava o ar. O som que eu lembro de ouvir sempre que entrava ali. O som que sempre me aterrorizou.

Gelei da cabeça aos pés e me virei em direção da porta. Nisso, senti a puxada do ar ficar mais forte e comecei a ouvir o som familiar ficar bem mais alto do que me lembrava. O lugar não parecia mais uma dispensa grande e sim um corredor. Eu olhava para os lados e via as paredes compridas e a porta mais longe do que eu imaginava. Consegui sair, mas no caminho — sim, agora já dava pra ter um caminho — eu cheguei a ver a porta fechando sozinha bem devagar com a força do buraquinho que sorvia o ar com cada vez mais força.

Fora dali, confusa e duvidando de tudo que tinha acabado de acontecer, reabri a porta e encarei o quartinho. Ele parecia inofensivo, exatamente como enxerguei antes. Ele tinha voltado ao seu tamanho normal e não havia nenhum sinal da corrente de ar bizarra que eu senti lá dentro e que me acompanhou até a saída.

Acreditei que tudo aquilo tinha sido só imaginação até meu olhar alcançar o buraquinho. Sua dimensão tinha mudado, quadruplicado na verdade. Agora ele era maior e ao ser notado voltou a sorver o ar como antes. Me afastei da porta e, já na rampa, a vi fechar sozinha, apenas com a fome daquele buraco. Fui embora com a impressão que a casa tinha ficado ainda menor e que ele nunca ia deixar de sorver.

Optei por nunca contar isso aos meus pais. Eu não queria ganhar o rótulo de louca. Achei que eu ia esquecer com o tempo. Não esqueci. Tentei criar teorias com base na ciência para explicar o que vivi ali. Não consegui. Pensei que um dia ia cair a ficha que foi só imaginação. Não aconteceu. Ainda não sei se o quarto se alimentava com as coisas que a gente deixava ali e naquele momento se rebelou por sentir a fome de alguns anos vazio ou se ele simplesmente viveu anos nutrido pelo meu medo guardado na memória e ao me ver chegar sozinha, com a casa toda vazia, decidiu que dessa vez ele ia me comer junto.


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Conexão é a palavra.

Pedaço de uma mini-zine que fiz. Arquivo pessoal.

Mesmo muito antes daquele cdzinho do discador da IG, conexão já era uma palavra que tinha tudo a ver conosco. Conexão é aquele zunido bizarro da internet discada, inserir a senha do wi fi e ler conectado, mas também é cada ponto das nossas histórias que tocam as histórias dos outros.

Somos bicho humano e a gente sempre arruma um jeito de conectar. Os espaços de conexão são vários e todos parecem uma grande colcha de retalhos. Na cidade, os percursos são diversos, as pessoas também, eles se encontram e desencontram. De tanto se esbarrar, cria-se uma conexão. Ora são zés e marias ninguém, ora são aqueles do ônibus 9410, aqueles do twitter, aqueles do grupo de vídeos e fotos de bichos fofinhos.

Nesse mundo feito de esbarrões, onde linhas invisíveis unem e desunem pessoas, a gente existe e as conexões se fazem. Nem sempre entre pessoas. A gente se conecta até com os prédios bonitos que contemplamos no caminho. Basta ter tempo de olhar, olhar mesmo, para o cérebro criar uma lembrança nomeada prédiohistóricobonito.neurônio. Com o tempo, nossas histórias se tornam parte da cidade. A praça não é só a praça Nome Masculino de Um Cara Branco e Rico, ela é a praça onde a gente andou pela primeira vez de bicicleta, onde se quebrou o dente na infância, onde todo mundo joga pokémon Go.

A história começa no funcionamento dos neurônios. Os dendritos captam sinais elétricos e os retransmitem para o axônio e o axônio se conecta com outros neurônios ou mesmo com células de diferentes tecidos. Isso feito inúmeras vezes e em todo o tecido nervoso. Conexões múltiplas que juntas criam nossa percepção e memória. E o que seria da memória sem um punhado de ligações entre nós, os outros e as coisas?


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Filha de peixe

Imagem de água cristalina

Sou filha de peixe. Fui encontrada à beira de um rio poluído, daqueles que cheiram morte. Hoje tenho a teoria de que meus pais-peixe queriam tanto que eu vivesse que pediram às águas que eu me tornasse gente. Me tornei e cresci pisando firme numa terra de um rio morto.

Minha mãe-gente me encontrou por morar perto de um dos trechos mais vivos do rio morto da cidade. Era 06:50 da manhã de um domingo e ela acordou com um choro de quem nunca sentiu o ar entrar pelas narinas vindo do lado do rio. Ela pensou que aquele som vinha de um parto estranho, o parto de uma mulher silenciosa e saiu para tentar ajudar. Encontrou, bem na beira do rio, um bebê sozinho, todo molhado, já maior do que um recém nascido, mas que parecia respirar pela primeira vez.

Mamãe-gente me levou para o hospital, falou com as instituições, conversou com a mídia e lutou para conseguir ficar comigo. Meu surgimento ali, na beira do rio, foi encarado por ela como um presente das águas e uma missão. Ela deveria me fazer ser uma filha digna do rio, a última filha dele.

Mamãe correu tanto para acudir a mulher inexistente que paria um bebê choroso não por ser enfermeira, mas por ser seu destino. Ela é bibliotecária e antes de mim nunca tinha cuidado de ninguém. Numa cidade seca de tudo, inclusive de recursos e atenção política, ela tinha que me levar para o trabalho todo dia. Imagine só um bebê numa biblioteca! Qualquer chorinho e os olhares cresciam para cima dela. Viveu com medo de perder o emprego até que um dia sonhou com uma confusão de sons, sensações e cores e acordou sabendo que precisava arrumar um aquário e colocar perto de onde eu ficava. Funcionou.

Mamãe também fala que eu sempre senti muita sede. Se a indicação de quantidade de água diária é dois litros, eu sempre bebi ao menos três. Nenhum suco, leite, refrigerante, chá ou café jamais me saciou, só água.

A cidade onde cresci nunca teve água direito. O rio, sem a vida dos peixes, secou e morreu. Vivi num ambiente em que a chuva e o banho eram meu único contato com a água. A chuva só aparecia durante uns quatro meses do ano e ainda assim era rara. As piscinas eram para os poucos que podiam pagar cotas em clubes e eu nunca nem vi.

Quando eu tinha sete anos, mamãe e eu fomos visitar minha avó. Ela morava numa cidade do interior, cheia de rios, há oito horas de viagem do meu local natal. Um dos afluentes passava bem no terreno da casa dela. Ao chegar lá, vi águas cristalinas num córrego cheio de peixes e essa foi a primeira vez que percebi a abundância e o poder da água. Fiquei encantada e pulei. Foi um deus nos acuda: mãe e vó desesperadas até perceberem que eu sabia nadar. Passado o susto, elas ficaram chocadas ao me ver dar braçadas, bater as pernas e boiar. Vovó disse para minha mãe “Você deu o nome certo para ela”. Me chamo Iara e segundo minha mãe meu nome significa senhora das águas em algum idioma que fugiu da minha memória.

Lembro que foi muito sofrido me separar da água e voltar para a sequidão. Custei a me adaptar ao local que sempre vivi. Meu nariz sangrou todo fim de tarde durante o mês que seguiu minha despedida da água. Nessa época, mamãe já sabia que eu era de fato uma filha da água. Ela não tinha dúvidas. Até minha pele lembrava em algo a escama lisa de um peixe.

Descobri que eu era diferente aos dezesseis anos. Sempre soube como fui encontrada, mas nunca tinha me pensado como filha de peixe, do rio, da água. Ouvia os casos da minha mãe e eu achava que ela gostava de criar um mito em cima de mim simplesmente por ser uma boa contadora de histórias e fã de livros e folclore. A ficha caiu quando comi comida japonesa pela primeira vez. Sentir o gosto e textura de uma alga me tocou de um jeito que eu simplesmente disparei a chorar no meio do restaurante, mesmo diante de toda a turma da escola. Foi ali que notei que todos meus interesses se relacionavam com o mundo aquático e parei de tentar nadar contra meu destino.

Vim morar longe de casa para estudar biologia marinha. Mamãe veio junto, porque segundo ela todo lugar precisa de uma bibliotecária, mas eu acho que é porque ela sabia que depois que eu entrasse no mar pela primeira vez, eu não voltaria pra sequidão nunca mais. De longe, de dentro do ônibus, eu vi o mar e já o senti reverberar dentro de mim. Desci na rodoviária com mala e cuia e já fui ao encontro das águas. Ao vivenciar o mar, o sal, a espuma das ondas, a força do puxão das águas marinhas, eu percebi o meu lugar no mundo. Me descobri senhora das águas e hoje vivo por ela, porque foi ela que me deu a vida. Devo isso aos pais-peixe e minha mãe-gente que me preparou para ser quem eu nasci para ser.


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Chuva na janela

Imagem encontrada aqui

Hoje parei para pensar em tanta coisa. Acordei e contemplei o som da chuva batendo na janela fechada e os uivos causados pelo vento passando no corredor que os prédios formam nos centros das cidades. O barulhinho da água caindo camuflava os sons urbanos. Não dava para ouvir o vai e vem de carros. As coisas pareciam calmas, simples. Tudo pairava. O tempo e a cidade pareciam suspensos. O mundo parecia nosso. Tudo parecia um sonho. Tudo parecia certo.

Voltei a dormir, a chuvinha me ninou até que o dia nasceu de vez. Nem a chuva e nem os uivos de vento nesse horário são capazes de camuflar a cidade. As buzinas chamam atenção e lembram que a cidade parou, mas o tempo não, ele corre, independentemente de ter alguém parado na frente dele. Nesses casos, ele passa por cima.

A cidade foi interrompida no seu fluxo cotidiano. Nem ela, nem eu, podemos nos dar o luxo de descontinuar o que tem para hoje. O movimento é obrigatório, todo mundo está proibido de estacionar e finalmente conseguir ver qual é o melhor caminho no meio do caos da chuva e da cidade. Somos baratas tontas, corremos em círculos buscando a rua que não está engarrafada. Pelo menos agora tem Waze e Google Maps para ajudar.

O destino é certo. Vou para o ponto de ônibus, espero, avisto o veículo e corro para fechar a sombrinha e me enfiar no meio dos outros tantos que querem entrar logo naquela caixa de metal que não cabe todo mundo. Entro, sinto cheiro de gente molhada, suada, cansada, sigo, desço, vivo, mas sei que tem hora que todo esse movimento é só estagnação. Sei porque mais cedo estava pairando no ar e pensei que o sonho segue vivo, por mais que às vezes eu esqueça de tentar.


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Eu sou um monstro

Foto meramente ilustrativa, pois não sou fofo e sou bem mais abstrato. Imagem encontrada aqui.

Sou nômade, vivo de favores e vou me ajeitando onde me deixam entrar. Finjo que vou ficar pouco tempo, que aparecerei só às vezes e que quase não vou incomodar. As pessoas não gostam de mim, mas me deixam entrar e se habituam com a minha presença por achar que faz parte. E eu entro, me ajeito e vou ganhando espaço, mesmo sendo insuportavelmente chato.

Eu gosto de zoar. Amarrar perna de sapo, criar apelidos cruéis e assustar quem não estiver atento. Esses são hábitos que tenho desde que nasci. Recentemente decidi adotar o rótulo de zoador e tenho aperfeiçoado meus dons para atingir em cheio os participantes da tal vida adulta.

Esse novo rótulo veio a calhar, viu? Agora quando eventualmente me confrontam, digo “quem tem limite é município” e as pessoas caem, como bobas, porque nunca querem ser estraga-prazeres. Elas temem cortar o barato de alguém e ganhar a fama de politicamente corretas. E eu aproveito disso sendo aquele cara que vive falando como são chatas essas pessoas que vivem patrulhando o humor, repito como um papagaio como é tudo inofensivo, digo que bullying forma caráter e outras baboseiras como “vocês são os verdadeiros fascistas” e assim consigo me manter por mais tempo na minha morada da vez.

Antigamente, tudo que eu fazia era mais direto, sabe? Os resultados apareciam rapidamente, não tinha tanto jogo e assim a comida ficava escassa num pulo e minhas mudanças tinham que acontecer com mais frequência. Pois agora, eu sou um novo monstro. Me adaptei aos tempos modernos e me alimento moderadamente em três em três horas, tudo muito saudável, com cara de indicação de nutricionista.

Antes minha comida era o medo, o pavor, a culpa. Agora é um prato diversificado e cada vez mais colorido: ansiedade, culpa, medo, tristeza, pavor, depressão, raiva, dores crônicas, compulsões variadas, insônia, paranoia, estresse e tudo mais que há de ruim.

Posso adotar muitas faces no mundo atual. Além do zoador, uma das minhas preferidas é a do cara que fica falando para todos que pra ser valorizado tem que vestir a camisa da empresa mesmo, que tem que se esforçar, dar o sangue, suar a tal da camisa da empresa até dar pizza debaixo dos braços. Adoro essa persona monstra! E juro que nem é porque o papo envolve suor e sangue, que, por sinal, caem muito bem brócolis e insônia! Esse personagem julga, julga e julga e faz aquele tipo de comentário que cria uma culpa deliciosa em todos ao redor! A moça que prefere tirar férias do que receber o proporcional ouve minha ladainha, começa a pensar nela e acaba dizendo foda-se para o seu corpo e mente que pedem descanso, trocando a folga pelo dinheiro e por uma suposta valorização profissional que nunca vai vir. Se eu tiver sorte, em alguns anos ou meses, ela vai ter um ataque de nervos que vai servir de sobremesa a semana inteira!

Gosto do jogo moderno. Vejo o definhar das minhas vítimas por anos, me alimento e me reproduzo. Fiquei menor, é verdade, e minhas crias, também. Mas isso é até bom, porque desse tamanho é mais fácil chegar de fininho e fixar morada ou, em alguns casos, me esconder por anos, fazendo refeições mínimas, até criar um espaço propício para crescer e constituir família. Nesse modus operandi, as pessoas demoram a perceber que somos tão nocivos e mesmo depois de anos, quando a gente já cresceu tanto que é um elefante enorme parado na sala de estar, eles fingem que não estão nos vendo.

Confesso que tem hora que sinto falta da juventude. Quem nunca, né? Os apetites vorazes, a inconsequência, a vontade de comer o mundo inteiro numa só mordida. Ai, ai, que saudade desses tempos em que a falta de mastigação não causava azia… Mas era outra época. Época em que éramos muitos, nômades, e dominávamos a igreja, o Estado e manipulávamos vilarejos falando sobre bruxas, pecado, bem e mal.

Desde esse tempo, me alertavam que quando chega a velhice a nostalgia aparece, principalmente quando somos imortais. Eu sei que aquela dinâmica toda de se empanturrar de uma vez e andar dias em busca de um novo cardápio não é boa pra mim e nem para os outros da minha idade. Deixo isso para alguns dos meus filhos, sobrinhos, netos e bisnetos, ainda jovens e com espírito aventureiro. Eles, inspirados em nossas histórias, resolveram voltar a alimentar a caça às bruxas e estão juntos aproveitando que o Estado Laico ainda é uma lenda.

Me perguntam algumas vezes se eu estou cansado, se penso em me aposentar e nossa, como esses caras não entenderam nada sobre ser monstro! A gente não se cansa! A gente se diverte! O trabalho é pouco, pouquíssimo. A gente não precisa de muita coisa para fazer os humanos fazerem o trabalho sujo. A gente tenta alguns e já é o suficiente. É como se fosse uma terceirização! Pauta que a gente apoiou bastante no Congresso, por sinal.

Não precisamos de muito esforço, porque os humanos se deixam levar. A gente investe na raiva, na mágoa, na culpa e no medo deles, sentimentos que eles adoram ignorar, e pronto, a refeição do dia está servida! Com o capitalismo, a globalização, as redes sociais e a internet com seus trolls e mensagens que espalham ódio e pânico facilmente, tudo ficou ainda mais fácil. Eles não olham a própria história e não entendem que nunca somos completamente exterminados, porque somos imortais e sobrevivemos — como sementes, larvas de aedes aegypyi ou bactérias e vírus congelados no permafost — a espera da oportunidade certa para poder prosperar. Esperamos dentro de cada um de vocês. Somos seus hóspedes folgados.


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Escrevo, porque sim.

Ilustração minha originalmente publicada em meu instagram.

Eu escrevo desde que me entendo como gente. Eu escrevo o que penso, sinto, crio, quero. Escrever pra mim sempre foi sinônimo de existir. Escrevia porque eu estava ali, porque eu existia e sabia disso.

E hoje parei para pensar sobre a minha vontade de me mostrar existente mesmo tão nova e percebi como isso tem a ver com se sentir invisível. Eu era uma menina. O que eu pensava, sentia, criava e queria era invisível, desimportante, visto como uma brincadeira ou desde já como uma futilidade. Futilidade, essa palavra que persegue a existência das mulheres.

Escrevia, como escrevo hoje, também para preencher essa lacuna de silêncio sobre o mundo que não é o masculino. O mundo dos que são vistos como desimportantes. Escrevia, como escrevo hoje, também pra rejeitar o que diziam, e ainda dizem, que eu devo ser e querer ser. Escrevia, como escrevo hoje, pra me lembrar que o que penso, sinto, crio e quero são parte do mundo, por mais que joguem tudo isso para um nicho específico. Escrevia, como escrevo hoje, também pra não deixar a raiva corroer tudo que há de bom dentro de mim. Escrevia, como escrevo hoje, por ser apaixonada por histórias e querer impactar as pessoas como tantas tramas me impactaram e impactam. Escrevia, como escrevo hoje, para refletir sobre o que me faz ser quem eu sou. Escrevia, como escrevo hoje, para entender o que eu e o Outro temos em comum. Escrevia, como escrevo hoje, para criar pontes entre o mundo que eu conheço e vivo com o que ainda não existe.

Escrevo, porque escrevo. Escrevo, porque existo. Escrevo, porque aprendi, a partir da escrita, o poder do desejo de criar.


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Declaração de amor ao ato de dormir

Cão dormindo com cobertas

Não tem como negar a importância de uma boa noite de sono. É uma questão biológica. Sem ela não somos funcionais. Dormir mal pode acarretar problemas de saúde futuros e dores de cabeça na manhã seguinte. Mas o ato de dormir é muito mais que uma necessidade fisiológica, jamais uma perda de tempo.

Dormir. A gente percebe o tempo de acordo com esse verbo: é sempre hoje quando a gente ainda não dormiu. O amanhã é pós-sono. Meia-noite só importa na festividade do ano novo, porque, se você ainda não dormiu, pode ser meia-noite e um ou três e quinze da manhã nos outros dias que continua hoje.

Dormir cria missões: a do início e a do fim do dia. Seu dia é programado de acordo com a hora que você acorda e a que você deita. E é nesse meio tempo que cabe a maioria dos verbos. Sonhar, descansar, respirar são alguns dos poucos verbos que fazem segundo turno e estão ali de plantão, mesmo quando Morpheu faz o seu trabalho.

Dormir não é um verbo sem história. Nossos demais atos também constroem um novo jeito de fazer as coisas, mesmo as tão básicas e óbvias quanto dormir. A eletricidade, essa coisa de gente humana, criou o pisca pisca das luzes das cidades e a luz da casa, da tela do celular, do computador, da televisão mudaram o ato de dormir. Em outros tempos, dormir se relacionava diretamente com o escuro. Não só o do quarto, mas de tudo. Acordávamos com o raiar do sol e dormíamos quando ele se punha. Fogo, velas e lamparinas eram a única possibilidade de luz no meio do breu, além do brilho das estrelas e da lua.

Éramos bem parecidos com galos e galinhas. O canto do galo vem junto com o nascer do sol e ele se empoleira para dormir quando ele se põe. Na cidade grande, ouvi mais de uma vez um galo cantar noite e dia. Dependendo de onde o galo mora, o sono dele também mudou.

Dormir nos proporciona resiliência. Você deita, dorme e deixa pra trás o dia ruim pra dar lugar a uma nova manhã de possibilidades. Se não há insônia e estamos saudáveis, acordar no outro dia tem um quê de renovação.

Dormir também tem algo de cura. Outros verbos, como o remediar, vão chamar o dormir de charlatão se ele vier com esse papo, mas a verdade é que, para muitos, o sono bom sara pequenas dores, como a dor de cabeça e a tristeza passageira, e ajuda a cura do resfriadinho vir mais rápido.

Dormir também pode ser um lazer. Dormir sem colocar o despertador para tocar é um ato de liberdade, de permissão ao ócio, de descanso e curtição. Dormir de tarde, após o almoço, é um exemplo. O ritual do sono diurno envolve comer e se preparar para digestão deitado, enquanto faz alguma atividade que permita você deixar o corpo mole e a mente se desligar aos poucos. Quando você vê, você acorda com o corpo todo preguiçoso e continua descansando um tempo. Descansando do ato de dormir. Você sabe que preguiça passa se alongar, mas sabe que ainda não é a hora. O jeito é pegar uma cruzadinha pra fazer, jogar algo no celular, ligar a tevê e esperar a hora certa para levantar e se esticar de novo.

Deitar e esperar o sono tomar conta do corpo e da mente é um momento em que o corpo relaxa e a mente voa. As melhores ideias surgem nesse espaço de tempo e preguiça. É sempre difícil decidir se vale a pena deixar a mente voar livremente com suas boas ideias e correr o risco de acordar sem lembrar nenhum dos caminhos percorridos na noite anterior ou se o melhor a fazer é interromper o processo do vôo livre e despertar do sono que bate à porta anotando tudo.

Esse texto surgiu em um desses momentos pré sono. Interrompi o momento para anotar a ideia no bloco de notas do celular. Só que meu sono é pesado demais e antes mesmo de começar a escrever, mas antes de ser completamente vencida pela moleza, eu anotei no bloco de notas do meu celular apenas a frase: “carta de amor ao ato de dormir”.


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Celular na mão e carro estacionado no Leblon

Grazi Massafera deixou a academia com o celular na mão. Caetano Veloso estacionou o carro no Leblon. Emanuelle Araújo atravessa a rua concentrada. Chico Buarque compra baguetes para o lanche da tarde. Todas essas manchetes mostram acontecimentos do cotidiano que só se tornaram importantes por causa do sujeito da frase. Sujeito que, ao contrário de nós, tem suas ações eleitas como noticiáveis.

Quando a gente observa cada momento do nosso cotidiano e cria uma manchete para ele, ao mesmo tempo em que a gente se sente treinando para trabalhar em um site especializado em fofoca, surge também o sentimento de que se é importante. Sim, importante. A gente quase se sente de terno dependendo do que você anuncia.

Laura enviou e-mails importantes para a chefia hoje. Laura fez isso com a blusa toda amarrotada e com a calça suja de molho de tomate do almoço. Laura saiu mais cedo da Firma hoje para comemorar com colegas do serviço o sucesso de um trabalho. Se você pegar qualquer um desses acontecimentos e transformar em uma manchete, você fará muita gente (inclusive a própria Laura) encarar a personagem ali exaltada como uma possível executiva de sucesso, a próxima capa da revista Exame ou Caras, não importa.

O efeito é poderoso. Eu sei, parece ser ótimo para dar um boom de autoestima, mas nem sempre funciona como a gente imagina. Se você anuncia detalhes da sua virose dessa forma, o senso de importância não é positivo e você se sente apenas um nojento. Talvez o mais nojento de todos. O nojento que até vira notícia, uma pessoa muito repulsiva.

O dia-a-dia está lotado de possibilidades de estrelar chamadas jornalísticas, se você é uma celebridade. Como? Onde? Com quem? Tudo isso interessa. Privacidade é item do passado. Mesmo se seus passos não interessam a uma legião de fãs, a privacidade já se tornou um artefato de museu. Anunciamos os acontecimentos do dia nesses diários de bordo da vida conhecidos como redes sociais. Adoramos falar onde fomos, marcar nossos amigos nas fotos e responder o “com quem?” espontaneamente. Aqui não tem essa de assessoria. A gente gosta de se sentir especial mesmo, né?

Aline comeu pepino e está com gases. Breno aconselhou Aline a não comer pepino, porque sempre que ele come, ele passa mal. Carol usou delineador num ônibus em movimento e não terminou o ato parecida com um panda. Débora correu na orla da praia. Elisa vomitou no colo de seu pai. Felipe foi a uma barbearia chique — tem até sinuca! — e saiu de lá com a barba de sempre e o bolso bem mais vazio que o normal. Gabriela foi vista entrando em um ônibus. Hélio comprou um refrigerante diet. Isabel foi ao cinema. Janaína fez a feira. Kelly peticionou. Lucas foi visto comendo pipoca. Mari recolheu as fezes de seu cão enquanto passeava com ele. Nádia afirmou que prefere café. Olga usou sua bicicleta. Paulo chorou. Quércia pegou um táxi. Raquel rachou o táxi com Quércia, pois era táxi lotação. Stela foi ao restaurante e fez cara de satisfação quando o prato chegou e também quando ele acabou. Thaís escreveu mais um texto medíocre como exercício de se manter escrevendo. Umberto dormiu até tarde no domingo. Valdívia fez um gol, mas não foi no futebol profissional, foi na pelada dos caras do escritório. Wanessa não é Camargo, mas também ganhou um processo por danos morais. Seu caso não envolvia famoso algum. Seu nome foi parar no SPC e no Serasa injustamente. Xavier abriu uma escola. Ela não tem como público-alvo jovens mutantes, é só uma salinha que reúne professores que dão aulas particulares para quem vai prestar ENEM. Zélia se matriculou na escola de dança.

Sentiu um pouquinho do senso de importância de encontrar seu nome ou algum ato que você fez? Tão reconfortante. Tão útero quentinho. Faz a gente se sentir um snowflake especial, não é? Ao mesmo tempo que dá uma sensação de que o controle não está mais em nossas mãos e que não somos tão especiais assim e que alguém logo vai perceber isso.

As manchetes dos famosos só existem para fazer com que a legião de fãs deles sinta aquela identificação que surge com a percepção de que eles são gente como a gente. A gente gosta disso porque sentir que somos um pouco parecidos com celebridades nos dá uma sensação de que temos valor também e isso só existe porque sentimos que eles estão num patamar diferente. Nesse mundo, nosso patamar é inferior ao deles e é por isso que a gente busca o mérito de se identificar com algo que o famoso faz. A gente quer subir uns degraus e achar que pode olhar para os outros como se houvesse realmente um topo, como se a gente realmente estivesse nele.

Queremos tanto nos sentir um pouco mais especiais.


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