Pensamentos soltos sobre estética, novas obrigações e o tal do feminino

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Falar de cuidado de pele como um momento para si não cola para mim. De todas as coisas que alguém pode fazer para se curtir, por que quando se é mulher tudo acaba se relacionando com aparência?

Fora que o cuidado de pele nesses casos é a busca da pele perfeita, aquela que parece maquiada mesmo sem estar, e não um simples e necessário uso de protetor solar ou algum outro produto, como hidratante, recomendado por médicos para situações específicas. (Ainda que eu ache que as pessoas se sintam mais inclinadas e cobradas ao cuidado no sentido de saúde quando aquilo incomoda também a aparência.)

Toda vez que vejo alguém com esse discurso, eu lembro de gente dizendo “você precisa se cuidar” como sinônimo de fingir que é de plástico. Rotina de skincare agora anda junto com depilação, unha feita, cabelo tratado e pintado e outras práticas relacionadas à estética e que também passaram a ser consideradas uma forma de autocuidado.

Ou seja, o papo autocuidado se tornou uma versão mais palatável do controle e da preocupação com aparência. O que mudou é que atualmente tudo isso ganhou o rótulo de moderno, saudável e responsável. Parece que agora a gente precisa ser uma mulher linda que não parece se importar tanto em ser uma mulher linda, mas ainda assim é, porque se cuida de forma muito natural, saudável e, claro, com muito prazer. Afinal, agora é o tal do autocuidado que nos move. A gente tem que fazer as coisas chatas, caras e impostas como se aquilo nos completasse e nos fizesse sentir livres, leves e soltas. Se não fizermos, somos coitadas sem amor próprio.

O motivo da gente engolir tão facilmente que rotina de skincare ou qualquer outra coisa do tipo é autocuidado ou um momento para si é o medo que temos de sermos vistas como fúteis por nos preocuparmos com a aparência e com os efeitos do envelhecimento como nos é imposto. Só que isso acaba naturalizando a neura da beleza como parte do feminino, da autoestima e do cotidiano e isso afasta as mulheres, cada vez mais, de ter uma relação um pouco mais tranquila com tudo que se relaciona com aparência e inseguranças relacionadas.

Tudo bem fazer as coisas para se sentir mais bonita ou menos feia. Tudo bem chamar de vaidade ou algum outro termo correlato. O problema é pintar tudo isso como algo necessário e relacionado com o tal do autocuidado e do tempo de qualidade consigo e não pensar no que certas práticas inseridas no nosso cotidiano significam. Inclusive no sentido de imposição. É muito ruim se importar tanto com aparência, colocar esse tipo de questão como uma prioridade nas nossas vidas, mas a gente não precisa fingir que a questão é outra. Quanto mais a gente mascarar, mais dependentes ficaremos disso.

Questionar essas coisas não é dizer simplesmente que se importar com aparência está proibido ou é necessariamente errado. É somente uma tentativa de entender melhor o que nos afeta, o que afeta as mulheres enquanto grupo e o que interessa ao capitalismo, ao patriarcado e também ao racismo que promove, por exemplo, o uso de clareadores de pele e outros produtos como alisadores de cabelo.


Observação #1: Essa crítica que fiz, inclusive, não quer dizer que eu sou uma pessoa que vive livre de imposições estéticas ou que eu não neure com isso ou que eu nunca tenha passado um creme hidratante na vida. São só reflexões.

Observação #2: Esse texto é fruto da soma de vários tweets que postei há alguns dias em minha conta pessoal do Twitter + uma leve edição para que essa bagunça virasse um membro típico do gênero Textão de Facebook™, porque eu também quis postar sobre por lá.

Observação: #3: Aconselho ler a thread do Twitter inteira, porque rolou muitos comentários ótimos de outras pessoas e que, por não serem meus, estão de fora do texto. Inclusive, há até uma discussão bem interessante que envolve mulheres com deficiência e estética. Não deixem de ler!

Observação #4: Essa thread fez surgir conversas envolventes, mas, além delas, também rolou comentários agressivos. Por causa deles, serei obrigada a escrever no futuro próximo um texto de humor exagerando as reações bizarras que recebi ao compartilhar essas reflexões numa rede social em tempos como os nossos. Posso adiantar que a galera parece partir do pressuposto que eu falei que está terminantemente proibido fazer skincare e iniciei o recolhimento compulsório dos produtos com a finalidade de jogá-los no lixo, sendo que eu só acho que a gente precisa entender o porquê de fazermos certas coisas e acatarmos certos discursos. É preciso assumir o que nos move para isso, chamar as coisas pelo nome correto, entender as forças envolvidas, etc.

O corpo dela e outras farras: a misoginia em evidência

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Carmen Maria Machado, em seu livro “O corpo dela e outras farras”, usa a linguagem, a quebra de fronteiras entre gêneros literários e a potência política de se abordar o corpo feminino em oito contos narrados por elas. Ao menos na edição brasileira feita pela Planeta, na página que antecede cada um deles, há a imagem de um corpo feminino marcado em segmentos como se fosse carne de açougue, deixando claro que o fio condutor entre as narrativas parte do tratamento que mulheres recebem pelo mundo a partir disso.

Por mais diferentes que as histórias sejam umas das outras, todas elas abordam o lado sombrio de ser mulher. A violência que permeia a existência feminina aparece, ainda que camuflada num cotidiano de naturalizações que implicam sempre em mais do que se vê num primeiro momento, como em “Ponto do Marido”, “Mulheres de Verdade Têm Corpos” e “Oito bocados”.

As dores e dilemas se fazem presentes, mas Carmen Maria Machado não trata o corpo somente dessa forma. Suas personagens gostam de sexo, sentem tesão e a maioria se atrai ou se relaciona com outras mulheres, o que é tratado com naturalidade pela obra. Essa abordagem, entretanto, não é usada para evitar tratar de como certos terrores femininos se relacionam também com o exercício da sexualidade e a vulnerabilidade que ela pode significar.

A inadequação e o sentimento de não pertencer também são temas retratados nos contos, ganhando destaque principalmente em “A residente” e “Oito bocados”. Nos demais, isso se apresenta de forma mais sutil, como uma maneira de expor que quando se é uma mulher e se vive sabendo que seu corpo é um alvo de controle é quase impossível se sentir inteiramente parte do mundo ou dona de si.

Chama atenção como a autora mistura maneiras de contar histórias e ainda assim o livro tenha tanta unidade. Há distopias, como em o “Inventário”. Há terror, gênero que se manifesta de certa forma em todas as histórias. Há uma quebra no realismo, que acontece principalmente em “Especialmente hediondas” e “Mulheres de verdade têm corpos”. Há mudanças de ritmo, como a adição do recuso da não linearidade, que dá ao que é narrado um ar quase delirante em “Mães” e até mesmo um toque de tom folclórico ou de fábula como no conto “O ponto do Marido”.

“O corpo dela e outras farras” é chamado por muitos de “black mirror” feminista por abordar temáticas sociais de grande importância de uma forma moderna, ousada e que nos faz pensar sobre presente e futuro. O grande trunfo de Carmen é, provavelmente, conseguir abordar questões políticas e delicadas sem cair no erro de explicar demais os significados daquilo, enquanto mexe com as fronteiras entre realismo, fantasia e horror. A autora não tem medo de tratar de temas relacionados com opressões e faz isso muito bem.


Carmen Maria Machado participará da 17ª edição da Flip nesse sábado, dia 13 de julho, às 17h, num bate-papo com Jarid Arraes, no Auditório da Matriz. Também em Paraty e na mesma data, mas às 20 hs, vai rolar outra mesa com ela na Casa Libre & Sta. Rita de Cássia.

Na terça, dia 16/07, às 19:30, vai acontecer, dessa vez em São Paulo no Sesc da Avenida Paulista, uma outra conversa que contará com a presença da autora.


Tradutor do livro: Gabriel Oliva Brum.


Observação: As histórias que compõem o livro atraíram os olhares do mundo do entretenimento e ele será adaptado para TV pelo canal FX. O projeto ainda é bem inicial, mas promete.


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“Maternidade”: uma investigação sobre a pressão de se ter filhos quando se é uma mulher

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Tenho o hábito de postar imagens dos livros que estou lendo no stories do Instagram. Não sei se faço isso porque as redes sociais funcionam como uma vitrine e eu quero, talvez inconscientemente, vender uma imagem leitora para quem me segue ou porque acho que pode aparecer alguém lendo ou querendo ler a mesma coisa que eu e essa coincidência me permitir trocar impressões, quotes ou até mesmo ideias para uma possível resenha. Provavelmente as duas hipóteses são válidas, já que não são excludentes e eu bem sei que a lógica das redes sociais nos captura mesmo quando nos achamos espertos demais para isso.

As reações aos posts variam entre a visualização pura e simples e perguntas sobre o livro, nenhuma muito elaborada, mas sempre sobre a leitura em si ou sobre quem escreveu, mas quando publiquei a foto do “Maternidade” da Sheila Heti foi diferente. Mais de uma pessoa, ao ver a foto do livro, resolveu me perguntar se eu estava grávida com um certo tom de alegria.

Ninguém perguntou se eu pretendia matar alguém quando falei que estava lendo “Lady Killers” da Tori Telfer ou qual esporte eu praticava ou queria praticar quando me empolguei com livro “As esportistas”, escrito e ilustrado por Rachel Ignotofsky. Por que quando o título versa sobre maternidade e a leitora é uma mulher a reação óbvia é assumir uma gravidez desejada?

Sheila Heti, em um livro estruturado num formato de ficção introspectiva que faz certos trechos mais filosóficos ficarem com cara de ensaio, responde essa pergunta — e muitas outras — quando explora o universo da decisão feminina de ter ou não ter um filho sem medo de abordar até mesmo as arestas que essa questão faz surgir nas relações entre amigas, namorados e parentes.

A obra explora como a sociedade vê as mulheres, sejam as mães ou não mães, enquanto narra um processo de descoberta e autoconhecimento de uma personagem que vive a pressão da proximidade do fim da fase reprodutiva e a dúvida sobre optar ou não pela maternidade enquanto ainda há tempo, conflito que às vezes parece ter sido implantado na cabeça dela pela sociedade que cobra tanto isso das mulheres.

Por que ainda encaramos como se houvesse apenas uma decisão certa? Por que quando uma mulher escolhe não ter filhos isso passa a ser visto por outras mulheres como um julgamento sobre a decisão delas de maternar e vice-versa? Por que a sociedade trata homens que escolhem não se tornar pais de uma forma tão mais tranquila? Quem é a mulher que decide não ser mãe? Qual o nome que ela recebe?

Todos esses questionamentos são levantados por Sheila Heti de alguma forma nesse livro e as respostas são trabalhadas a partir do que a personagem-narradora pensa, diz e investiga sobre essa decisão que expõe o tabu que ainda envolve a não maternidade feminina.

A construção narrativa dessa história-ensaio parte das consultas constantes que a narradora faz usando uma técnica derivada do I Ching, sendo a maioria das perguntas relacionadas com a decisão sobre ser ou não ser mãe que a assombra, mas não só. Ela pensa, examina assuntos e se questiona o tempo todo, usando muitas vezes os sins e nãos que recebe do acaso nesse jogo de moedas que guia seus pensamentos e às vezes até suas ações.

A introspecção nesse romance serve como uma ferramenta para o leitor entrar em contato com as ótimas reflexões da personagem. É pelos seus pensamentos que conhecemos essa mulher, marcada pela insegurança e melancolia, e nos deparamos com um texto que questiona comportamentos sociais que atingem toda a coletividade.

Existe a mãe e a não mãe, como diz o livro em um momento. Uma é marcada pelo que se tem, a outra pela falta de. Quando a narradora de “Maternidade” questiona se deve ou não ser mãe e, a partir de suas reflexões sobre isso e todo o resto, escreve, ela tenta entender quem ela é dentro dessa lógica de significados que não parecem ser capazes de capturar a essência humana das mulheres.

A narradora, em dado momento do livro, diz que não quer ser uma passagem de homens para o mundo quando pondera que, ao longo da história, bastava para os homens que as mulheres existissem para dar à luz a eles e criá-los, enquanto parece ainda buscar uma justificativa para qualquer escolha que faça. Ela parece sentir que precisa embasar, especialmente, a decisão de ser uma não mãe, por saber que essa escolha ainda é vista como um não lugar e uma espécie de identidade indesejada.

Sheila Heti se debruça nessa questão sem esquecer de citar o passado — e o presente — das mulheres que nunca puderão escolher, as raízes da narradora-personagem, a questão do aborto, o peso da maternidade e o possível impacto disso na vida da mulher que escreve e faz arte e, no fim, a obra acaba servindo também para refletirmos sobre o peso de se fazer qualquer escolha, especialmente essas que são marcadas pelo tempo e por expectativas criadas por toda uma vida inserida em um sistema que define o que mulheres e homens devem fazer.


Sheila Heti, autora do livro “Maternidade” é uma das convidadas da 17ª edição da Flip. No dia 11 de julho, às 17h, no auditório da Matriz, que fica na Praça da Igreja da Matriz (Paraty-RJ), ela participará da mesa “Bom conselho”, junto com Kristen Roupenian, a autora de “Cat person e outros contos”.


Tradutora da obra: Julia Debasse


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Futebol, mulheres e esporte: o campo ainda é um espaço de batalha

Divulgação

O futebol feminino não precisa passar por mudanças de tamanho de campo e gol para se tornar atrativo, como insinuam vários homens toda vez que o Brasil perde em uma grande competição como Copa do Mundo e Olimpíadas. Ele já é atrativo como é e essa Copa do Mundo na França deixou isso evidente.

Para melhorar a modalidade, especialmente no Brasil, precisa-se de investimento desde a base para que as meninas comecem a treinar e competir bem novas, como é padrão para os meninos. O problema é que, além da falta de interesse dos clubes, da CBF e afins, nossa sociedade ainda tende a desencorajar meninas a praticarem futebol.

As meninas que gostavam de jogar bola, ainda que sem intenção de competir, sabem o quanto todos ao redor tentam empurrá-las para o balé, para o jazz ou mesmo para o vôlei. “Muito bruto”, eles dizem e tentam criar nelas medo da bola, dos chutes, dos encontrões. Se isso não funciona e elas continuam, eles esperam que as meninas se cansem de pedir para os meninos permissão para jogar. Eles querem que, com as negativas de participação nas aulinhas de futebol do clube, no futebol de rua e nos jogos do intervalo da escola, elas percebam que não são bem-vindas. Felizmente, nem todas desistem, apesar dos esforços coletivos para isso. A verdade é que nem quando havia lei impedindo elas de jogarem bola, muitas não se deixaram intimidar. Os esportes ensinam a persistência como um caminho e esse aprendizado guiou as mulheres do futebol desde sempre.

Por meio do decreto-lei 3199/41, o futebol feminino foi proibido no Brasil por quase 40 anos com a justificativa de que sua prática era incompatível com a natureza das mulheres. Além do futebol, o futsal, o futebol de areia, o polo, o polo aquático, lutas de qualquer natureza, o rugby, o beisebol e o halterofilismo também foram vedados para mulheres por esse documento legal. Isso impactou o desenvolvimento do esporte feminino no Brasil, apesar da resistência de grupos como o Araguari Atlético Clube e da primeira árbitra de futebol do mundo, Léa Campos.

A mentalidade de que o futebol e as demais modalidades citadas no decreto não são esportes adequados para mulheres ainda sobrevive culturalmente, apesar do documento em questão ter perdido sua validade em 1979. As meninas e mulheres que seguem jogando fazem isso por teimosia e paixão, sendo consideradas intrusas, sendo ofendidas com termos como “maria homem” e vivendo isso tudo sem apoio da família, dos professores ou dos colegas. A visibilidade dada aos últimos jogos da seleção feminina parece uma boa oportunidade para fazer esses caminhos de mudança se tornarem permanentes e mais efetivos, mas é necessário levar em conta que a questão das mulheres no futebol se entrelaça com a das mulheres nos esportes e, além de tudo que se relaciona com a modalidade em questão, é preciso entender que os esportes num todo não são incentivados para meninas, a não ser por motivos estéticos como emagrecimento ou crescimento, e traçar estratégias para transformar essa realidade.

As práticas esportivas nos ensinam muito sobre disciplina, determinação, fracasso, trabalho em equipe, consciência corporal e até ousadia e prazer, mas a falta de incentivo e muitas vezes de acesso afeta o desenvolvimento pessoal de meninas e mulheres, como escrevi no meu texto sobre o livro As Esportistas.

Nossa cultura machista cria obstáculos para mulheres praticarem esportes, especialmente esses colocados como “coisa de homem”. Mesmo meninas que, como eu, cresceram praticando acabam se afastando de esportes na adolescência porque entendem que esse espaço não é delas ou mesmo porque a divisão sexual do trabalho começou a atuar em seus cotidianos e agora há a obrigação de limpar, cozinhar e cuidar dos irmãos mais novos ou até filhos nas horas vagas.

As trajetórias amadoras das meninas e mulheres no esporte, especialmente no futebol e nas artes marciais, expõem o quanto essas restrições, sejam elas culturais ou mesmo legais, tem a intenção, ainda que inconsciente, de não permitir que mulheres descubram os limites, capacidades e características de seus corpos.

O corpo ativo, que ocupa espaços, testa limites e tudo mais não pode ser o que é considerado feminino. O corpo feminino é para parir, servir, enfeitar, ser passivo, segundo o machismo, e é por isso que o mundo dos esportes ainda é considerado deles, mesmo nas modalidades não consideradas masculinas.

Meninos e homens encaram o esporte como território próprio, inclusive de socialização, e assim as práticas esportivas se conectam facilmente com diversão. As praças, parques, clubes, quadras comunitárias e as ruas brasileiras são tomadas por meninos. Eles podem ocupar esse espaço. Podem e devem. Eles são os donos da bola. Não todos, claro. Meninos considerados afeminados ou gordos ou fãs das modalidades esportivas ‘erradas’, por exemplo, também se sentem fora do lugar, ficam deslocados e são excluídos, como as meninas que tentam participar desse espaço.

O controle dos nossos corpos, comportamentos e subjetividades se soma sempre para não permitir que meninas e mulheres descobram o que são capazes de fazer. Para que todos, inclusive meninos, possam descobrir suas potencialidades, a educação igualitária e o fim desses padrões de gênero tão castradores é necessária. Além de resolver as questões de acesso que envolvem desigualidade econômica, claro.

A discussão do futebol feminino, seu desenvolvimento e das mulheres no esporte perpassa pelo aprofundamento do debate sobre machismo e estereótipos do que é feminino e masculino. O esporte deve ser visto como um espaço para todos, independente do gênero, etnia, orientação sexual, tamanho, peso e corpo. Só assim para o acesso às quadras, campos e bolas deixaram de ser uma batalha.


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Cat Person e outras histórias: o lado sombrio das relações

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Kristen Roupenian é uma das autoras convidadas para a 17ª Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP). Evento que acontecerá do dia 10 a 14 de julho desse ano. Seu nome foi o primeiro a ser anunciado na agenda do evento, mesmo ela sendo uma estreante no mundo dos livros.

Sua importância se deu porque a autora protagonizou um fenômeno da literatura contemporânea após sua história “Cat Person” se tornar viral ao ser publicada na revista “The New Yorker” no final de 2017. O conto de Kristen foi um dos mais acessados da biografia da publicação e moveu debates intermináveis na internet durante dias, despertando, inclusive, até mesmo haters. A partir dessa história, muito se comentou sobre liberdade, consentimento, objetificação e trocas virtuais. Temas que receberam um baita holofote nos últimos anos graças aos debates feministas, especialmente a partir dos primeiros passos do #MeToo, episódio que se iniciou semanas antes da publicação do conto.

“Cat person” é especial por expor, em um texto cheio de camadas, aspectos quase invisíveis das relações de poder entre homens e mulheres. Em poucas páginas, a autora nos faz refletir sobre o quanto a paquera, mesmo marcada pela modernidade das mensagens de texto e de uma certa liberdade sexual feminina, ainda reproduz expectativas a partir de estereótipos de gênero e dominação masculina. Ainda há obrigações que mulheres acreditam ter por terem gerado uma certa expectativa e direitos que homens acham que merecem.

Essa história chegou ao Brasil traduzida pela Ana Guadalupe em um livro, publicado pela Companhia das Letras, que reúne mais onze contos escritos pela Kristen Roupenian. Em comum, todos falam sobre poder e tratam sobre aspectos sombrios da humanidade. Suas histórias, no geral, carregam em seu cerne uma estranheza e, em alguns casos, mesmo quando envoltos de realismo, características que dialogam com filmes de suspense psicológico e até terror.

A obra e estilo de Kristen nos deixam desconcertados, especialmente quando ela escreve sobre consentimento, a arte do flerte e todos os estereótipos envolvidos nisso. “Cara legal”, “Seu safadinho”, “Não se machuque” e “Vontade de morrer” são bons exemplos de como ela explora esse tema de uma maneira que incomoda e choca por expor as problemáticas que se fazem presentes nos relacionamentos humanos.

“Look at your game, girl” é uma narrativa que também merece destaque e mexe, principalmente, com mulheres. Nesse texto, a autora mostra como a violência rodeia o feminino desde que somos muito jovens e explora o medo que toda essa dinâmica causa na gente, evidenciando como essas histórias marcam nossas identidades. Esse conto, analisado a partir do contexto de toda a obra, ainda nos faz pensar no quanto as relações de poder são moldadas também pelos acontecimentos que circundam nossas vidas. O medo que nos acompanha talvez seja parte essencial do desequilíbrio de poderes nas relações amorosas e sexuais entre homens e mulheres.

“Cat Person e outros contos” tem como trunfo a maneira que Kristen Roupenian aborda as relações humanas, a complexidade de seus vínculos, seus perigos e o quanto o poder mexe com a humanidade, especialmente quando ninguém parece estar observando.


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Cultura do estupro: o que a reação das pessoas ao Caso Neymar diz sobre nossa sociedade?

Neymar vestindo a camisa 10 da seleção brasileira em campo

Desde que a acusação de estupro contra Neymar saiu na mídia, muito se discute sobre o comportamento da possível vítima. Esse é o modus operandi da cultura do estupro. Especialmente quando o acusado usa o comportamento sexual da mulher como um meio de tentar provar sua inocência.

Mesmo que o jogador seja inocente na acusação de estupro, sua tentativa de defesa pública partiu de estereótipos de gênero, misoginia e de noções bem erradas do que é consentimento. Além de tudo, houve a propagação de imagens íntimas da mulher em questão, o que por si só configura crime e também pode ser visto como uma tentativa de intimidação bem característica do fenômeno chamado de pornografia de vingança. Toda a exposição do caso e da possível vítima feita pelo Neymar, seu pai, Datena e outros evidencia o poder e influência que o atleta tem e como a sociedade legitima que ele o use contra essa mulher como uma maneira de silenciá-la.

A partir desse caso e a reação da sociedade ao que é dito, exposto ou suposto, mesmo sem qualquer veredicto sobre Neymar, temos a chance de debater sobre o que é estupro e combater esses pensamentos que fazem tanta gente considerar que a manifestação prévia de uma certa disponibilidade sexual é necessariamente um impeditivo para que tenha havido abuso e como essa visão colabora com a ideia de que certas mulheres são consideradas estupráveis e outras não.

Para entender tudo isso é preciso se perguntar sobre o porquê das defesas de crime de estupro, profissionais ou feitas pelo próprio acusado, sempre apelarem para essa abordagem em que o foco recai na vítima que é cobrada a se provar idônea o tempo todo.

O estupro é abordado historicamente, inclusive pelo Direito, pela ótica masculina e patriarcal que vê as mulheres como manipuladoras e traiçoeiras quando se trata de sexo, sedução e afins. A ideia de que o valor feminino estava ligado à virgindade alimentava ainda mais essa visão, porque esse seria um motivo que faria mulheres que “cederam à tentação do sexo” mentirem e a possível vida sexual fora do casamento um sinal de que a mulher em questão já seria impura, logo pouco confiável e propensa a fraude. Isso, somado ao fato de que o corpo feminino é considerado propriedade e direito dos homens, sedimentou a prática de colocar a vítima como foco em caso de violência sexual. Isso é tão forte que há quem defenda, ainda hoje, que não existe estupro dentro de casamentos usando o argumento de que esse contrato social e jurídico envolve necessariamente obrigação de sexo.

Quando se coloca uma possível vítima de estupro no centro de um tribunal público em que se discute, principalmente, o comportamento sexual dessa mulher que acusa, a mensagem que se passa é a de que mulheres ativas sexualmente são corpos disponíveis, logo impossíveis de serem estupradas.

É preciso reiterar que o fato de dizer sim uma vez não é sinônimo de um sim eterno ou que esse sim atinge todas as práticas sexuais possíveis. Sexo é algo que parte de interesse, respeito e combinados mútuos. Sua palavra-chave é consentimento e ele pode ser retirado a qualquer momento e ainda assim precisa ser respeitado. Topar transar não é topar fazer tudo que o outro quer. Topar sexo agora não impede a pessoa de mudar de ideia 10 minutos depois.

A noção deturpada de consentimento faz com que mulheres se sintam confusas sobre terem ou não sofrido violência, principalmente em casos de date rape e estupro marital. O imaginário social do que é estupro ainda é o da vítima pega de surpresa e com extrema violência em um beco escuro de noite, o que torna difícil o reconhecimento do crime de primeira por quem vive situações que envolvem paquera, interesse e envolvimento ou por quem não se vê no papel de vítima ideal por já ter transado ou querido transar com o agressor.

Estamos todos acostumados demais com a desumanização das mulheres, o que dificulta que a gente olhe para possíveis vítimas femininas de homens, especialmente aqueles poderosos e públicos envolvidos em casos de date rape, com empatia. As estranhezas que podemos enxergar em um relato podem ser sintomas de estresse pós-tramático ou parte de um processo de distanciamento e negação, por exemplo. Quando se trata sobre estupro, podemos, mesmo sem querer, nos amparar em noções distorcidas pelo machismo e misoginia do que se é ou não violência sexual e de quem pode ou não ser vítima dela.

Esse texto não é sobre condenar ou absolver o Neymar socialmente, é, principalmente, sobre como nossa sociedade encara a violência sexual e o corpo das mulheres. Mesmo que esse caso acabe se tornando um exemplo raríssimo de falsa acusação, a reação da sociedade perante o tribunal sexual montado pelo Neymar diz muito sobre o mundo que vivemos e o que é e como se manifesta a cultura do estupro.


Obs: Esse texto surgiu a partir de dois tweets que fiz para o Ativismo de Sofá e foi publicado, originalmente, em minha página pessoal no Facebook. Se você gostou dessa leitura, deixe suas palmas, faça um comentário, compartilhe com seus amigos e me acompanhe pelo Facebook e Twitter.

“As esportistas” e o lugar da mulher

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As Olimpíadas não tiveram nenhuma prova de ciclismo feminino até 1984*, sendo que em 1967 Beryl Burton quebrou o recorde de velocidade masculino da época. Demorou dois anos para um cara superá-la, mas, ainda assim, nos jogos olímpicos, as ciclistas não podiam estar.

Quando se observa a história do futebol feminino no Brasil, o machismo fica ainda mais evidente. A modalidade passou quase 40 anos proibida de ser praticada e ainda hoje sofre com uma estrutura precária, pouco incentivo e é alvo de comentários maldosos que partem da ideia de que essa não é uma atividade para mulheres. Só que a restrição das mulheres nos esportes é ainda mais complexa do que a gente imagina. Até em modalidades consideradas hoje “mais femininas”, como a patinação artística, houve luta das pioneiras para competir profissionalmente.

As práticas esportivas nos ensinam sobre coragem, disciplina, determinação, fracasso, trabalho em equipe, consciência corporal e até ousadia e prazer. Quando há uma evidente falta de incentivo — e até de acesso — para as mulheres nesse espaço, há uma restrição ao desenvolvimento pessoal delas.

Esportes ainda não são encarados como lugar de mulher. Eles só são socialmente incentivados se a prática for amadora e com a finalidade de manter as mulheres numa determinada estética. O corpo feminino deve ser apenas um objeto a ser visto e admirado, jamais ativo, forte, hábil. Os homens podem ser o que quiserem. Algumas modalidades, inclusive, sofrem com um certo estigma que é marcado por comentários como “se você continuar a praticar isso, seu corpo ficará horrível”. O levantamento de peso é o principal exemplo disso, mas até a natação vez ou outra se torna alvo.

As atletas são lembradas mais como musas, caso se encaixem no padrão de beleza, do que por testarem seus limites individuais de forma obstinada. Nos portais esportivos, principalmente fora do período das Olimpíadas, elas só aparecem no pé da página. A verdade é que, apesar de tantas conquistas, sejam elas medidas em medalhas ou pela abertura de caminhos para as mulheres, as atletas sofrem com uma invisibilidade tremenda e é por isso que o livro “As Esportistas”, escrito e ilustrado por Rachel Ignotofsky, é tão importante.

As biografias apresentadas por ele são centradas, principalmente, em pioneiras, sendo a maioria delas estadunidenses ou europeias. Na edição brasileira, houve um acréscimo de cinco perfis de atletas do país, entre elas Marta e Aída dos Santos. Além disso, há uma grande diversidade de modalidades. Tem motocross, skate, escalada, hóquei, tiro ao alvo e até boliche e corrida de trenó com cães.

A obra nos permite conhecer histórias de mulheres que se destacaram por suas habilidades esportivas, determinação e vontade. Elas quebraram recordes e barreiras de gênero e, muitas vezes, também de raça.

Por causa da segregação nos EUA e da luta pelos direitos civis, muitas histórias mostram os obstáculos que atletas negras, como a jogadora de beisebol Toni Stone, tiveram que lidar e também destacam como algumas delas usaram suas vitórias e capacidades extraordinárias para questionar a barreira racial existente.

A corredora Wilma Rudolph, por exemplo, ao ganhar 3 ouros na mesma olimpíada, ia ser homenageada pela sua cidade natal com um desfile. Ela se recusou a participar dele porque as regras diziam que a cerimônia só poderia ser frequentada por brancos e, com essa pressão, o que antes seria segregado se transformou no primeiro evento integrado da cidade.

Visibilizar essas histórias ajuda a mostrar que o esporte feminino importa e que o espaço desportivo também nos pertence. Ainda há barreiras de gênero a serem enfrentadas, já que mulheres ainda não tem tanto acesso, exposição e valorização quanto os homens esportistas, mas, mesmo quando as barreiras eram ainda maiores, as mulheres foram lá e fizeram, abrindo as portas para todas nós.

As biografias dessas pioneiras nos inspiram por passarem a mensagem de que podemos ir em frente mesmo quando o machismo diz que não. Fazer isso é lutar por nosso direito de sermos vistas como pessoas.

*existe prova de ciclismo masculino desde o início das olimpíadas modernas.


Quer o kit do mais novo livro da Rachel Ignotofsky? A página do Facebook Mulheres Notáveis, numa parceria com a página de divulgação da obra no Brasil, vai sortear um no dia 09/05/19. Confira as regras e participe.


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A Pequena Sereia e o reino das ilusões patriarcais

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Hans Christian Andersen foi um autor dinamarquês que viveu no século XIX e escreveu diversos contos de fadas infantis, entre eles, “A Pequena Sereia”. O fascínio que essas criaturas mitológicas exercem na humanidade e a curiosidade humana sobre as profundezas do mar ajudou a tornar essa história bem popular inclusive entre crianças, especialmente após a adaptação cinematográfica feita pela Disney em 1989.

Tanto no conto original, quanto na famosa animação, a protagonista abandona sua vida nos mares e sua identidade, além de mutilar seu corpo, para tentar conquistar um homem. A Bruxa do Mar é feia, solitária, invejosa e infeliz. Uma personagem clichê, que tem sua vilania construída a partir de uma oposição ao que é colocado como ideal de feminilidade, enquanto a Pequena Sereia corresponde ao padrão de beleza e ama verdadeiramente um homem, como se é esperado de uma mulher.

A construção dessa história e das principais personagens reproduz uma mensagem que, agora, quase 30 anos depois, é questionada por Louise O’neill numa releitura feminista desse clássico.

O patriarcado marinho

Na versão de Louise, o reino do Rei dos Mares é uma epítome da opressão contra as mulheres e é nesse lugar que a Pequena Sereia cresce cercada por suas irmãs, sua avó e a intimidação de seu pai e outros tritões.

O valor das sereias está apenas na aparência que possuem, há um incentivo à rivalidade feminina, inclusive entre irmãs, o padrão de beleza é magro e os sacrifícios para tentar alcançá-lo são naturalizados, há casamentos arranjados e as sereias são vistas como troféus a serem ostentados.

Não importa o que as sereias sentem, querem ou expressem. O Rei dos Mares é quem manda e desmanda nesse lugar. A Pequena Sereia, chamada Gaia na releitura, se incomoda com essas regras tácitas e expressas sobre como ela e todas as outras devem agir e vê as histórias de amor contadas por sua avó e protagonizadas por príncipes encantados como um refúgio desse destino que parece inescapável. Isso se intensifica com a proximidade do seu casamento com um tritão bem mais velho escolhido por seu pai.

A (des)construção do amor romântico

Louise O’neill parte da mesma problemática da história original para questionar o amor romântico que nos é ensinado. O refúgio da personagem é esse amor ideal que não existe, mas chegou até seus sonhos por meio dos contos de fada. Ela quer viver esse amor das histórias com Oliver, humano que ela salvou após uma tempestade afundar um barco em que ocorria uma festa.

Naquele contexto de opressão que, além de tudo, envolve um casamento arranjado com um tritão agressivo e manipulador, Gaia encara a paixão humana, a mutilação e o abandono do mundo que ela conhece como a única alternativa para fugir de um destino que promete ser repleto de violência masculina e silenciamento. Mal sabe ela que a realidade das mulheres na superfície está bem longe do ideal.

A autora dessa releitura trabalha a jornada da Pequena Sereia no mundo humano como um processo de descoberta de si, do que é amor e do que é a realidade das mulheres nos mares e na terra. A lição que fica para o leitor é de que a libertação que a personagem tanto buscava não pode ser encontrada no despertar do amor de um homem.

Essa visão da Pequena Sereia sobre as alternativas e caminhos possíveis evidencia o quanto a feminilidade que nos é ensinada, seja na terra ou no mar profundo, é ligada ao casamento e a busca do amor. A identidade feminina é construída para ser complementada por alguém, por isso Gaia e muitas mulheres do mundo real buscam o despertar do amor de um homem como uma solução para todos os seus problemas, caminho que acaba se tornando uma nova prisão.

A descoberta do Outro

A trajetória da Pequena Sereia até o mundo humano também envolve descobertas sobre o fundo do mar. Ela vê parte excluída do reino de seu pai, conhece pessoalmente Ceto, a famigerada Bruxa do Mar, e é obrigada a lidar com as Rusalkas, jovens humanas que se afogaram e se transformaram em uma espécie de sereia que foge desse padrão de feminilidade que ela representa. São essas sereias de origem humana que seu pai e seu prometido marido querem exterminar.

A conversa dela com a Bruxa do Mar é um dos pontos mais interessantes do livro. Nesse momento, Gaia descobre uma história silenciada, uma sereia livre e a possibilidade de ser diferente sem ser necessariamente uma vilã clássica. Ela teme o que Ceto pode fazer contra ela por conta de tudo que sempre ouviu, mas é ali que ela começa a sentir um pouco de liberdade e ouve alguns conselhos que ela prefere ignorar.

Nesse encontro, a sereia, colocada como vilã para o povo sirênico, diz que quem a chama de bruxa é o Rei dos Mares, pai da protagonista, e que bruxa é simplesmente um termo que os homens dão às mulheres que não têm medo deles, às mulheres que se recusam à submissão.

A mensagem da nova Pequena Sereia

Com essa releitura, Louise O’neill conseguiu transformar uma história problemática em um livro que toca pessoas de todas as idades, especialmente mulheres jovens. Ela aborda aspectos do machismo, incluindo a violência masculina e o padrão de beleza, de forma questionadora e expõe o quanto certas práticas e comportamentos são nocivos, apesar de serem naturalizados.

O processo de descoberta da protagonista carrega como ensinamento a importância de lutar para se viver com liberdade e autonomia e nos ensina que devemos tentar fazer nossa voz ser ouvida. Ela pode ser bem mais poderosa do que imaginamos, especialmente quando ela é fortalecida por outras mulheres.


Tradutora da obra: Fernanda Lizardo.


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Lady killers: as mulheres também matam

Arquivo Pessoal — Adquira um exemplar aqui.

Em “Alias Grace”, adaptação da Netflix do livro homônimo de Margaret Atwood, a personagem Grace Marks, sentenciada à prisão perpétua por ter assassinado seu patrão e a governanta da casa em que trabalhava, reflete que é melhor ser uma assassina do que um assassino. Segundo ela, a primeira palavra aguça a curiosidade, enquanto a segunda nos faz pensar em um machado em movimento e sangue derramado pelo chão.

Tanto a minissérie roteirizada por Sarah Polley e dirigida por Mary Harron, quanto o livro de Margaret Atwood, são ficcionalizações de um caso de homicídio duplo que chocou o Canadá em 1843. Pouco se sabe sobre a Grace Marks real, mas “Alias Grace” parte dessa personagem para tensionar o que entendemos como feminilidade e assassinato e isso nos faz pensar sobre como o nosso olhar pode ser facilmente manipulado.

A curiosidade perante uma assassina mulher é tão diferente porque matar não parece ser algo muito feminino. A opressão de gênero que tanto aprisiona mulheres, incluindo as homicidas, parece nesses casos um disfarce perfeito e um provável fator que coloca certas vítimas como alvo delas.

Lady Killers, livro de Tori Telfer, dedica-se a trabalhar essa curiosidade por meio de pesquisa sobre mulheres que mataram mais de uma vez, mais de uma pessoa, em mais de um momento. Elas são as assassinas em série que pouco ouvimos falar ou que se tornaram personagens macabras, que tiveram suas histórias contadas como uma fantasia aterrorizante de luxúria e vaidade, como Elizabeth Báthory.

Quando a expressão “assassinos em série” aparece em uma leitura ou mesmo em um caso, a gente pensa em homens como agressores e mulheres como vítimas. Tirar a vida de alguém é um exercício de um poder absoluto que nossa cultura não consegue ver como algo que mulheres podem fazer. Isso colabora para que as seriais killers atuem por mais tempo e façam mais vítimas, já que não são vistas como suspeitas.

A curiosidade guia nossos olhares em ambos os gêneros. Queremos saber os porquês numa ânsia de tentar nos diferenciar dos que nos causam horror. Essa curiosidade atua com mais ferocidade quando as acusadas de matar são mulheres, mas o horror é visto como um atributo que acompanha melhor os homens assassinos. A frase da personagem Grace Marks é justamente sobre isso.

Há um estranhamento quando uma mulher é capaz de um ato tão vil como tirar a vida de muitos, apesar de estarmos inseridos numa cultura repleta de histórias lotadas de vilãs, bruxas más e madrastas cruéis. A vilania feminina para nós é ligada, principalmente, ao comportamento esperado das mulheres. O pressuposto de que mulheres devem ser recatadas, cuidadoras, mães dedicadas prevalece no imaginário social. As vilãs das histórias tem o efeito de mostrar quem não podemos ser, como não podemos agir. Quando a vilania feminina aparece na vida real no formato de seriais killers, o efeito que elas causam é tão incômodo, destoa tanto do ideal de mulher, que há um esforço coletivo e espontâneo de tratá-las como menos letais.

Tori Telfer destaca isso muito bem quando aborda o comportamento da mídia e da sociedade perante as assassinas pesquisadas. Nannie Doss, por exemplo, que confessou ter matado quatro maridos envenenados, mas também foi acusada de matar outros familiares, incluindo crianças, foi tratada como uma mulher em busca do amor. Como se isso amenizasse o horror dos atos cometidos por ela. Nannie se tornou uma espécie de paródia de uma dona de casa romântica que deu muito errado por caber tão bem no ideal de feminilidade da época.

As histórias das seriais killers são contadas pela autora de uma forma que evidencia a diferença de tratamento social, especialmente punitivo, entre elas. A classe sempre pesa muito, mas não só. Tillie Klimek, por exemplo, não teve a chance de escapar da prisão ou ter sua pena amenizada, como acontecia bastante em Chicago na época, por não ser considerada uma personagem atraente. Sim, a beleza, esse atributo colocado como tão importante para as mulheres, afeta até mesmo a maneira que olhamos para suspeitas de assassinato. É por causa do que é dito como feminino que tantas citadas nessa obra escaparam da pena de morte simplesmente por serem mulheres.

A pesquisa de Tori Telfer expõe como as visões estereotipadas torna assassinas personagens muitas vezes romantizadas, outras invisibilizadas. Elas existem, mas suas ações ainda são colocadas como algo fantástico, fora da curva. Mas será mesmo que seriais killers são tão raras assim ou elas escapam mais facilmente por agirem dentro do espaço colocado como feminino, o privado, e por estarem acima de qualquer suspeita?

Talvez, nossa cultura, ao ligar mulheres à vida, ao cuidado, ao amor, à ingenuidade, nos faça esquecer que a violência e a crueldade são, acima de tudo, uma questão humana. Sabemos muito bem como a masculinidade patriarcal molda homens para buscarem a dominância e violência, mas é uma surpresa conhecer histórias que mostram que mulheres também podem ter um lado sombrio e cruel mesmo sendo condicionadas a se comportarem de modo oposto.


A edição brasileira do livro, feita pela DarkSide e traduzida por Daniel Alves da Cruz e Marcus Santana, conta com uma pesquisa extra que nos apresenta mais 14 seriais killers, incluindo nomes famosos como a da mulher que inspirou o filme Monster e uma espécie de glossário com obras sobre.


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Kingmakers: as esposas por trás de grandes homens

Cena do filme “A esposa”

“Atrás de um grande homem, há sempre uma grande mulher” é um ditado popular que evidencia os papéis de gênero esperados pela sociedade, especialmente dentro do casamento.

O lugar do homem dentro da relação é o de protagonista, seus objetivos e sonhos estão sempre em primeiro plano, enquanto a mulher trabalha nos bastidores para que o homem atinja suas metas. O lugar da mulher nessa dinâmica é o de complemento do homem. Os sonhos e objetivos dela são deixados de lado e não são vistos como importantes.

A ideologia machista afirma que homens e mulheres se complementam e usa esse argumento para perpetuar a divisão sexual do trabalho e a submissão feminina. A capacidade reprodutiva feminina é colocada como um destino biológico que serve como justificativa para que o que eles chamam de complementação seja apenas subserviência a um único projeto de vida, o masculino. Esse caminho é colocado como natural porque em nossa cultura os homens são vistos como os detentores das ferramentas, talentos e habilidades necessárias para buscar um sucesso que não seja o de cuidado da casa e dos filhos.

“A esposa” é um filme impactante porque foca na mulher que foi colocada nesse lugar e expõe as ações que um dia a levaram a acreditar que esse era o melhor caminho possível e o seu arrependimento posterior.

Joan (Glenn Close), apesar de lidar com uma frustração crescente relacionada com o sacrifício que fez, se incomoda com o rótulo de vítima, porque entende que foi levada a optar por esse caminho devido a todo o contexto de exclusão, discriminação e oportunidades diferentes relacionadas com homens, mulheres e a visão de como um relacionamento deve ser.

A visão do mercado editorial sobre a escrita feminina, as expectativas pré-existentes do que é um relacionamento de sucesso, o destino feminino padrão, a energia e o enfrentamento necessários para lidar com escolhas que fugissem do que era esperado e a manipulação de Joe são alguns dos pontos que a fizeram sacrificar seus sonhos em função de trabalhar pelos dele. Por Joan ser capaz de racionalizar alguns desses fatores contextuais, ela acredita que escolheu esse destino, que o que ela fez foi uma negociação a partir do que era possível ser alcançado por ela.

Cena de um flashback do filme com Joan e Jon jovens

Naturalização do machismo, violência psicológica e “escolhas”

“Quem é Joan e o que ela quer, pensa e sente?” é uma pergunta que ocorre desde a cena do telefonema que informa que Joe Castleman (Jonathan Pryce), seu marido, é o mais novo ganhador do Nobel de Literatura e ainda deixa dúvidas na última cena do filme.

Flashbacks ajudam a construir a imagem de Joan, de Joe e do mundo que os cercava desde jovens. Por meio desse recurso, a gente descobre que Joan escrevia, que Joe foi seu professor e que ela ouviu de uma mulher escritora que a carreira literária era um desafio praticamente impossível para mulheres.

Da dinâmica familiar, que inclui até mesmo os filhos do casal, até a organização do Prêmio Nobel que conta com uma funcionária responsável por cuidar das esposas dos laureados, o lugar da mulher é o de acessório. A exposição de cenas relacionadas a esses dois fatores argumentam contra a imagem de não vítima que Joan se apega e nos dão pistas essenciais para entender quem Joan foi, quem ela se tornou e o processo que está vivendo.

Ser laureado com o Prêmio Nobel é um dos maiores reconhecimentos que existem. Escritores, personalidades políticas e cientistas sabem que esse é o topo máximo de diversas carreiras. Ser declarado vencedor pela Academia Sueca é ser colocado em um pedestal de qualidade e relevância. Só que esse pedestal da intelectualidade mundial parece ser algo que só pode ser alcançado por homens brancos, como o filme mostra ao exibir detalhes da organização do evento e a gente entende muito bem por conhecer as estatísticas que apontam que as mulheres são uma minoria entre os premiados.

Fica evidente que qualquer mulher que surgir como ganhadora do Nobel será uma exceção, para muitos, uma intrusa. O lugar delas é o de esposas, de kingmakers, as que se sacrificam na vida privada para que a parte masculina do casal brilhe no espaço público.

A cerimônia do Nobel, foco do filme, se passa em 1992, com Joan e Joe já idosos, mas as espectadoras de hoje, mesmo com décadas separando suas vidas dos eventos do filme, percebem — e, de certo modo, ainda sentem — as engrenagens sociais que fizeram Joan tomar as decisões que tomou durante a vida.

O que torna “A esposa” um filme importante é o fato de que a história nos permite refletir sobre acontecimentos que vemos como naturais e não o são e como isso impacta nosso cotidiano sem prêmio Nobel por perto.

O que causa estranhamento em nossa sociedade é a mulher que quebra com as expectativas de comportamento ligadas ao seu gênero e lidar com isso pode ser bem difícil. Sabemos que elas podem ser punidas, inclusive por meio da violência física e sexual, até por dizerem não a um colega e, por isso, mesmo sem querer, mulheres muitas vezes se guiam pelo que é dito adequado. O que pode ser uma fonte enorme de frustração, mas é encarado como uma alternativa aceitável por parecer garantir alguma segurança. Nesse contexto não dá para dizer que há de fato uma escolha livre.

A naturalização da violência psicológica e do machismo são fatores que fazem com que alguns espectadores e até mesmo a personagem tenham dificuldade de entender que o relacionamento exposto no filme é abusivo. Como não há presença de violência física e o casal parece viver momentos de cumplicidade, muita gente entende que Joe e Joan vivem apenas um relacionamento com momentos ruins e ignora todo o resto. Esse resto inclui manipulação, a ideia de que o sacrifício feminino como mãe e esposa é algo a ser esperado por parte das mulheres e a concepção de que apoiar um marido é deixá-lo ser protagonista da vida do casal e aceitar suas traições dentro do relacionamento. Visões de mundo tão comuns que para muitos é preciso olhar duas vezes para que se perceba que poderia ser diferente.

Imagem de divulgação do filme — Joan um pouco atrás de Joe diz muito sobre a realidade das mulheres.

Indústria cinematográfica, machismo e o lugar da mulher

Essa visão de homens como protagonistas e mulheres como coadjuvantes é tão perniciosa que se apresentou até mesmo na feitura do filme. Glenn Close afirmou para a Agência NPR que a obra, adaptação de um livro de Meg Wolitzer, demorou mais de um década para ser feita porque atores de prestígio do meio se recusavam a aceitar o papel de Joe. Eles não queriam estrelar um filme chamado “A esposa” por não serem o destaque principal da obra e não receberem a maior remuneração.

O machismo da indústria cinematográfica não é bem uma novidade. Filmes dirigidos por mulheres raramente são premiados, bem distribuídos ou patrocinados. Os papéis voltados para mulheres privilegiam mulheres jovens, brancas e dentro do padrão de beleza, enquanto homens mais velhos são colocados para contracenar com mulheres cada vez mais jovens e, por essa razão, as atrizes perdem espaço na carreira bem mais cedo que eles. Além disso, análises dos premiados pela Academia do Oscar como Melhor Filme dos últimos anos apontam que personagens femininos nesses filmes tem um tempo de fala bem inferior ao de personagens masculinos. Todas essas questões se relacionam com a visão de que o espaço público, o sucesso, as carreiras importantes, são de protagonismo deles. Para as mulheres, o destino é ser coadjuvante, fazer casal, enfeitar e se dedicar aos cuidados de sua família.

Nos roteiros e bastidores dos filmes e também na vida real, a lógica vigente ainda é a que empurrou Joan para o sacrifício de sua subjetividade. Perceber isso é um passo para que essa realidade mude e esse debate, junto com a atuação impecável de Glenn Close, torna “A esposa” um filme necessário.

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