Hoje, dia do leitor, anuncio as leituras mais marcantes de 2024!
Não é do meu feitio simplesmente fazer uma lista genérica, como um ranking top10, então teremos algumas categorias especiais para assim eu poder colocar tudo que eu listei desordenadamente.
Sim, tem prosa e poesia, tudo junto e misturado!
Apesar que eu não conseguir nem estimar direito quantos livros foram lidos nesse ano, sei que foi muita coisa. Afinal, além de ler por diversão, li para alimentar o @bafodepoesia, mediar o @clubecidadesolitaria, participar da @casadaspoetas, fazer leituras críticas, freelas de release e resenhas e algumas pesquisas pessoais para elaborar oficinas.
Li e reli tanta gente! Tanto livro bom!
E eu não fiz lista de lidos, ficou tudo solto, apesar do que foi lido sempre carregar em seu interior post its, marcadores e grifos que me ajudam a encontrar o prumo, inventar algum número, se eu sair abrindo os livros.
Nesse remelexo todo, a memória se confunde: só sei que a safra foi muito boa e é injusto eu não destacar, por exemplo, o livro “Um caminho particular de futuro” do Ricardo Bernhard, só porque não consegui encaixá-lo em nenhuma das categorias que inventei. E é mais injusto ainda eu não seguir adicionando exemplos e mais exemplos nesse parágrafo.
Nunca mais tentarei fazer listas assim, juro! Em 2025 só vou listar os lidos do ano e será isso, para eu não sofrer!
Em novembro de 2022, eu viajei 17 horas de ônibus para ir para Flip, a maior festa literária do país. Para voltar, vivenciei junto de Tatiana Lazzarotto as forças ocultas de Paraty e acabei ficando mais um dia para curtir a cidade e, durante esse dia que precisava ser o derradeiro, eu e ela quase ficamos sem passagem para enfim cada uma voltar para a casa. A volta, ao contrário do que eu mesma esperava, durou 13 horas de ônibus, a quantidade de horas mais otimista para o modal escolhido.
Nesse último dia, descobri que existe uma lenda que diz que se você pular umas correntinhas do Centro Histórico, você fica preso na cidade. E, é claro, nessa altura do campeonato eu já tinha pulado muitas correntinhas, porque eu é que não ia dar a volta se podia simplesmente pular. Ainda mais numa rua de pedras. Sendo cética como sou, mesmo já sabendo da lenda, eu teria arriscado e feito tudinho igual. Mas eu voltei para casa. E a viagem foi tranquila, com zero intercorrências, diferente da ida.
Ainda durante a festa, eu já prometia regressar no ano seguinte. Dizia, para quem quisesse ouvir, que a Flip era mágica. E sigo dizendo isso até hoje, como vocês podem perceber por esse texto. E o retorno aconteceu. Voltei a repetir a saga da ida em novembro de 2023, dessa vez de carro, economizando assim algumas horas de viagem e paciência.
Nesse segundo ano, eu, como boa mineira, decidi que também ia aproveitar as praias e assim o fiz. Sem deixar de circular pela Casa Gueto, ir para o Areal, curtir as festas e as mesas da Flipei, ser host do Sarau das Escreviventes e afins, eu também fui para a água e levei meu companheiro junto. Ainda assim, eu sentia, às vezes, que a magia me escapava. Eu estava lá, mas nunca mais seria como a primeira vez.
E, então, a luz apagou por horas. E ali, ansiosa, frustrada e estranhando tudo, a realidade me pegou pela mão e me mostrou o impacto de tanta gente de tanto lugar em uma cidade pequena, histórica e com problemas óbvios de saneamento.
A magia foi estremecida. E ela retornou, com toda força, nos últimos dias, porque nesse ano eu não vou para Paraty e eu estou arrasada por isso. Descobri hoje que alguma dessas malditas correntinhas que pulei, fez o que prometeu, mas houve um pequeno erro de regência quando me contaram sua maldição. Ao pular, você não fica preso na cidade em si, você fica preso à cidade.
Paraty, durante os dias da festa literária, vira um lugar de encontro. Você conhece pessoas, você estreita laços, você vê a cidade inteira se transformar em um espaço-tempo em que a literatura ora é fuga, ora é assombro, mas é sempre centro. E, por algum motivo, essa estranha reunião precisa continuar se repetindo ao longo dos anos. E isso acaba, claro, criando um fluxo impossível de pessoas. Mas a impossibilidade de tanta gente estar ali, numa data específica marcada com menos de um ano de antecedência, não muda o fato de que há pessoas que você só vê lá. Há trocas que só são possíveis ali. Só nesse espaço-tempo você acaba passando horas numa fila para ouvir uma mesa com Conceição Evaristo, consegue enfim entrar na casa, apesar da lotação, por pura generosidade da porteira e, assim, acaba passando quase uma hora agachada debaixo de uma mesa para se proteger da chuva com as poetas e amigas Marina Grandolpho e Luiza Leite Ferreira, enquanto Conceição fala de Macabéa. Só ali você vê Annie Ernaux passeando pelas ruas de pedra aos 82 anos logo após ganhar o Nobel de Literatura. Só lá você janta do lado de Dionne Brand e finge que nada está acontecendo. Só ali você consegue tolerar a chuva, ainda que siga reclamando sobre ela. Só lá você consegue entender uma pessoa falando francês devagar mesmo sem nunca ter estudado o idioma na vida. Só lá você se sente tão viciada em viver e aprender e ler e escrever e escutar assim, como se nem precisasse dormir.
Hoje concluí que Paraty sempre vai tentar nos atrair, em especial nos dias da festa literária, quando a força da ficção fica mais poderosa e, assim, a atração da cidade se multiplica além de si mesma. O problema é que essa força, ainda que potente, precisa de ainda mais gente ansiando estar lá e, por essa falta, ainda não consegue me teletransportar agora para a Travessa Gravatá ou para a Rua Fresca ou para a Rua do Fogo.
Essa crônica foi inspirada pelo texto de Jeovanna Vieira sobre o FoMo de não estar na Flip depois de uma vez ter ido e conhecido a magia da festa.
Nasci na mesma cidade que Adélia Prado e quase sem querer encarei essa coincidência territorial como um destino passando a escrever poemas a fim de investigar qualquer coisa sem registro.
Nunca achei que a literatura fosse algo muito distante simplesmente porque Adélia Prado me ensinou a situá-la no aqui e no agora. O aqui e agora não é metafórico quando você vê a poeta citada no livro de literatura ir fazer a feira da semana onde a sua mãe também vai.
Lendo Adélia Prado eu aprendi a perceber melhor as cores. Descobri que uma casa com as paredes alaranjadas está constantemente amanhecendo, que o roxo é uma doidura para amanhecer, é bonito e o amarelo gosta dele, e eu e a Adélia também. Por causa dela eu passei a notar que os jardins fazem parecer que as arvorinhas conversam, que deveria existir licença para dormir, que o trem de ferro que atravessa a cidade atravessa também a minha vida e depois vira só sentimento e também foi lendo Adélia que vi a palavra cu impressa pela primeira vez.
Esse texto foi escrito como parte de um roteiro de um vídeo que gravei para homenagear a autora no meu Instagram após ela ganhar, com menos de uma semana de diferença, os prêmios Machado de Assis e Camões.Assista aqui!
Sobre Adélia Prado e o cotidiano na poesia leia também esse meu ensaio publicado originalmente no portal Fazia Poesia.
É difícil escrever o que nos comove sem recair em clichês ou mesmo numa linguagem cafona, especialmente se você for um cínico. E todo mundo foi obrigado a aprender a ser um nos últimos anos. A comoção foi praticamente proibida como tema, especialmente se ela se apresenta entrelaçada na complexidade de um cotidiano de pequenas coisas a serem contempladas.
Tratada como um luxo numa sociedade que busca a produtividade acima de tudo e ataca até mesmo o sono, o sonho e o descanso, a comoção se encontra em extinção. Se propor a se comover virou quase um ato de rebeldia em meio a um mundo de estímulos que, sendo praticamente ininterruptos, transformam qualquer emoção em uma sensação estranha e passageira.
É preciso digerir e ninguém tem tido tempo para digerir qualquer coisa. Estamos na era do utilitário e até a leitura de poesia pode ser transformada em mais um item de uma checklist de afazeres. Alguma poesia na rotina é melhor do que nenhuma, eu diria justificando meus atos. E talvez você concordasse comigo até você também se deparar com os poemas do livro Da costela do impossível de Marcela Alves e entender que poesia na rotina significa algo mais do que a simples leitura de uma página.
Com uma obra focada em detalhes que tornam visíveis a cumplicidade dos laços e a beleza das pequenas coisas, a poeta constrói versos que também possibilitam contemplar e perceber a própria dor. O tempo corre diferente quando você conversa com o eu-lírico construído por ela. Não tem agenda e planejamento que dê conta. É impossível ler tudo de uma vez, ler de qualquer jeito, deixar pra ler correndo no intervalo do almoço. A poesia de Marcela é oráculo, sua leitura pede uma pausa ritualística no meio da rotina. E essa pausa pode durar apenas alguns minutos, o lapso exato de um poema, desde que você esteja presente ali, sem pensar na próxima tarefa.
Ler Da costela do impossível é buscar compreender melhor o alcance de um instante e essa reflexão surge impondo que a gente abrace o não-entendimento racional daquilo que chamamos de vida, calendário, entendimento, prazo, fim. Não basta partir de uma razão cartesiana para ler poesia, para pensar na percepção da experiência é preciso espanto, comoção, assombro, alguma magia.
“provamos a carne crua da ignorância até entender que entender leva tempo o agora é imenso, não há fronteiras a possibilidade se avizinha de outra possibilidade que é irmã de mais uma e em nada se assemelha a tantas outras”
página 37, poema “quando ainda”
A poeta escreve para dentro, construindo uma concha misteriosa em torno das palavras. Só que essa concha não está absorta em si mesma, ela é também uma concha acústica, que, inspirada no ouvido humano, é feita para fazer reverberar melhor o som para a plateia que se permite entrar, ficar e permanecer.
Dentro da poesia de Marcela, o íntimo nos atinge. Nossa intimidade se entrelaça com a do eu-lírico e nos lembra do que somos feitos: ternura, medo, beleza, dúvida, perda e um pouco do que pode parecer nada para alguns, mas é a matéria-prima que nos faz gente, como a cena de uma avó plantando rosas, de uma casa que é casa por causa das amoras roxas de sua calçada, de um pai fritando peixe e servindo cerveja para ele e a filha numa sexta-feira santa, de uma mãe que cozinha couve com devoção, de um amigo recém retornado de uma grande viagem.
Da costela do impossível se constrói pela via da luz, da sombra e da imagem refletida por essa combinação ser possível como parte da natureza. Mesmo buscando iluminar as miudezas que tornam a existência algo muito além da mera sobrevivência, a autora nunca esquece que na luz se encontra também a escuridão. Marcela escreve para honrar o mais bonito de suas origens, trazendo à tona Adélia Prado como epígrafe e referência de sacro e sacrilégio, luz e sombra, vida e poesia. E, nesse estranho lugar, tradição e modernidade se encontram com todas as suas contradições.
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re.gis.tro substantivo masculino no dicionário domínio patriarcal e branco na história prática feminina no planeta
1. certidões civis.
de nascimento, casamento, união estável, óbito, com nome ou não retificado. de antecedentes criminais, regularidade fiscal, imóveis e inscrição na junta comercial.
no mundo jurídico-burocrático-cartorário tudo que existe precisa ser documentado conforme algumas regras.
e pra onde vai o que não cabe nessas regras? a gente que lute para não deixar o registro jurídico sobrepor a todas as outras formas de registro.
2. o mesmo que diário, seja o pessoal e intransferível, seja o livro contábil.
o registro pode ser uma elaboração do eu e também uma análise das contas.
3. peça utilizada para regular o funcionamento de chuveiros;
é importante anotar: quando essa peça queima, quando o gás acaba, quando se precisa dar um jeito, porque tudo isso custa dinheiro.
todo registro também é uma forma de calibragem do que se quer e o que se precisa fazer.
4. item essencial em todas as prestações de contas.
5. o registro é uma espécie de coleta, seja ela provocada, metódica ou involuntária.
é possível registrar sem querer querendo.
6. pode ser uma tentativa de captar ou destacar nuances.
por fotografia, gravação em vídeo, arquivo de som, grafite, pintura, bordado, decoupage, escultura, pixo, maquete de escola, biscuit, print de tela, contação de história, fofoca, escrita acadêmica, jornalística, memoralista, de blog ou ficcional.
dizem que poetas e cronistas se dão bem nesse aspecto.
7. ajuste das lentes utilizadas para captar as nuances citadas no item 6.
às vezes a gente precisa limpar bem os óculos para conseguir perceber o que, como e quando se deve documentar o que nos cerca.
o que está faltando? por que está faltando? por que pareço um turista na minha própria cidade? quem se faz presente no meu lugar?
nem todas as histórias foram contadas disse Dalva Soares citando Carola Saavedra
e é verdade.
8. todo registro também demanda acertar as arestas da percepção.
9. é o resultado da observação e seus desdobramentos.
10. o que faz um instante de atenção durar tempo o suficiente para se fixar no cérebro
é um momento com uma existência menos temporária que sua duração fática.
o registro é a tentativa de manter nossas sinapses funcionando
11. o registro pode tomar forma
e entre tantas formas possíveis pode vir a ser notas de celular feitas para ajudar a memória a funcionar melhor.
as notas podem ser qualquer recurso inclusive um post it pregado na geladeira que diga o que se precisa fazer e também “ela esteve aqui” ou “ela pode estar aqui” ou “por que ela já não está mais conosco?”.
o registro pode ser um epitáfio, mas costuma ser ainda mais físico do que isso.
12. é o que fica de uma história que marca o registrante. uma evidência de ocupação de tempo, espaço, lugar no álbum de família.
13. o registro é uma prova de vida.
Esse texto foi produzido durante a residência artístico-literária do projeto Jurema na Cidade e por isso foi originalmente publicado em seu blog.O projeto também foi responsável pelo lançamento da coletânea “Jurema: mulheres (re)escrevem a cidade”. Você pode lê-la na íntegra em pdf ou ouvi-la no Spotify. Faço parte do livro como autora, organizadora, editora e bordadeira.
Um livro chamado “Coisa amor” combina com a palavra afeto, porque lembra ternura, carinho, estima, conexão e todas essas coisas que a gente deseja, mesmo quando fingimos de cínicos ou nos consideramos incapazes de sentir, vivenciar ou despertar esse sentimento no outro. Só que afeto não é uma palavra simples. A gente usa, na maioria das vezes, como um sinônimo de amor, mas seu significado pode ir além: para a psicologia, por exemplo, é um agente modificador de comportamento, podendo ser positivo ou negativo. E essa definição não surgiu do nada. As palavras latinas que deram origem ao afeto que guia esse texto eram usadas como sinônimo de estar inclinado a, influir sobre, fazer algo a alguém. Afeto então é sobre afetar e ser afetado. “Coisa amor” também, porque Pedro Jucá escreve para causar alguma coisa dentro da gente, testando a forma que o leitor interage com personagens e situações, enquanto, de certa forma, brinca com o feio, o clandestino, com tudo aquilo que, direta ou indiretamente, ajuda a compor a matéria dos tabus, dos desejos e dos segredos.
A partir de quinze contos, o autor aborda temas como solidão, morte, memória, sexualidade, inconsciente, loucura e quereres e coloca quem lê frente a frente ao desconfortável limiar do dito e não dito da experiência humana. A cada narrativa, Pedro Jucá nos apresenta um pouco mais dessa substância viscosa, densa e cor de carne que nos faz gente. E, para isso, usa diferentes formas de narrar, explorando a vulnerabilidade humana a cada cena, reflexão, circunstância, partindo principalmente de relações familiares, como a maternidade. Assim, consegue amarrar todos esses temas e perspectivas ao que podemos chamar de busca humana por conexão, companhia, entendimento.
Em “Coisa amor”, o encontro com o Outro é sempre desafiador. Ainda que essa demanda por compreensão e afeto guie os sujeitos dessas histórias, o Outro é sempre Outro. Nesse encontro de identidades há momentos em que o laço entre os personagens se amplifica, tornando aquela ligação um instante de entendimento, mas, na maioria das vezes, o medo de ser visto completamente, como se isso fosse possível, impede qualquer vestígio de conexão. Só que essa conexão, sempre tão desejada e praticamente impossível, acaba acontecendo com a gente, que a partir do ato da leitura, tentamos decifrar comportamentos, personalidades, situações.
Nesse caso, estamos numa posição de poder. A cadeira de quem lê é a de quem espera uma trama se desenrolar. Somos espectadores, na maioria das vezes invisíveis, da história alheia e queremos entretenimento. Só que Pedro Jucá cria suas narrativas para nos lembrar do poder da linguagem de nos afetar e, dessa forma, aproxima seus personagens de quem lê, obrigando a gente a lidar com esse lugar de uma outra forma. Lemos essas histórias, então, como quem se dirige para um parque de diversões, e acaba entrando numa enorme sala de espelhos cheia de sombras e truques que são capazes de transformar 149 páginas de texto em 3450 minutos em um labirinto de sensações.
O entendimento desejado por essas personas fictícias acontece, porque aquilo que esses personagens se esforçam tanto para esconder até deles mesmos, escapa. O trabalho estético do autor ajuda nesse efeito: Pedro escreve para gente decifrar, exige atenção. O texto flui, mas tem voltas, alguns estranhamentos, qualquer coisa que te obriga a frear, com medo de atropelar algo importante. E essa conexão se completa, porque ao entender alguma coisa, quem lê se sente cúmplice. Leitor e personagens se encontram na clandestinidade do ato de levantar o tapete que cobria o elefante no meio da sala.
Mesmo incomodados, continuamos lendo e, por escolhermos continuar, nos associamos ao que está sendo compartilhado por esses Outros. Somos gente, afinal, e por isso inevitavelmente comparsas de tudo aquilo que é demasiadamente humano, como a literatura é. Ao sermos afetados, ficamos mancomunados aos personagens e assim nos tornamos coautores de tudo que a humanidade é capaz de sentir, e por isso, fazer. Podemos até ler como detetives, fiscais ou juízes, mas ainda assim, nos vinculamos ao que foi dito, feito, produzido, porque em algum momento aceitamos fazer parte disso tudo, em especial quando tentamos nos fantasiar com essas figuras de poder que simbolizam a proibição de qualquer demonstração de vulnerabilidade.
Ler “Coisa amor” então é se permitir investigar a composição da matéria oculta que nos forma e nos permite ser capaz de produzir e consumir arte. Jamais entenderemos completamente o que nos leva, por exemplo, a amar alguém e o que de fato significa isso pra nós mesmos. Como no conto que dá nome ao livro, mesmo com o mapeamento da química da paixão e a descrição técnica do funcionamento do corpo nessas horas, ainda há espaço para uma certa poética, logo uma certa dose de pensamento mágico. Jamais haverá compreensão completa do Outro e nem de nós mesmos. E a gente sabe disso, mas ainda assim continuamos tentando decifrar o indecifrável, porque é isso que precisamos fazer para vez ou outra conseguir vivenciar instantes em que não nos sentimos sós.
“Mas não, nada disso aconteceu. As histórias mais tristes são também as mais prosaicas, as que sequer alcançam o status de tragédia. Desprovidas de potência ficcional, nem à catarse servem […]” – Passo a Passo (pág. 22)
Acervo pessoal
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Não sou uma leitora imparcial. Escolho as minhas prioridades de leitura guiada, principalmente, pelo afeto. Sei que afeto é uma dessas palavras gastas — até as lojas de dermocosméticos a utilizam pra vender shampoo anticaspa e protetor solar quando querem falar sobre autocuidado e amor próprio — mas foi inevitável não usá-la enquanto escrevia sobre o livro de contos “Coisa amor”, de Pedro Jucá, que, por acaso, se tornou especialista em Escrita e Criação junto comigo, após uma imersão que envolveu escrita, leitura e compartilhamento durante 19 meses.
Algumas das prosas que constroem essa obra, como a penúltima história, vi nascer. Oficina já era uma conhecida minha das aulas, ainda que numa versão ainda pouco trabalhada. Outros simplesmente me surpreenderam: como Cerimonial, Nutriz e até mesmo o Coisa amor, que empresta seu título ao livro. Mas foram os contos Ela, Passo a passoe Years of Solitude que me fizeram pensar que Pedro sabe muito bem onde quer chegar.
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“Apague a luz se for chorar”, romance da escritora Fabiane Guimarães, me aguardava na biblioteca do Kindle fazia quase um ano. Prestes a embarcar em uma via sacra celeste com destino final em Brasília, me veio a lembrança de que tinha lido em algum lugar, provavelmente nas redes sociais da autora, que ela tinha nascido no interior de Goiás e agora morava na capital federal, a cidade que mais uma vez eu ia visitar. Buscando algum cenário ou passagem ficcional que me levasse até o Centro-Oeste mais rápido que qualquer avião, abri o arquivo do livro decidida a começar a leitura. Logo, junto de Cecília, estava no ar, pousando no aeroporto com água até dentro dos meus olhos, mesmo com o mundo real seco como eu já esperava encontrar indo para lá no inverno.
Fui fisgada pela história já nas primeiras páginas.
Se um luto é sempre um processo de conhecimento, onde o enlutado, na busca por alguma resposta, precisa produzir provas, ouvir testemunhas e captar todas as informações possíveis daquele fato para elaborar perante o juiz, que, nesse caso, também é ele mesmo, Fabiane Guimarães soube levar isso além, transformando em algo mais uma narração em que a lógica enlutada e ansiosa de uma personagem nos conduz vertiginosamente a partir da dúvida.
Cecília vivencia seu luto por inteiro, mesmo quando tem certeza que deixou quase todo seu corpo coberto e protegido. Ela perdeu seus pais no mesmo dia, na mesma hora. Morreram juntos, de causas naturais, alguém explica a ela que segue sem absorver a frase como se esperava. “Sua mãe era tão boa”, diz outra pessoa que ela nunca viu na vida. Tudo é estranho, a morte é estranha. E por isso a gente se abre para essa personagem na hora, como se tentar entendê-la fosse preparar a gente para lidar com nossos mortos, com a certeza da nossa própria morte. Assim como Cecília, a gente tem dúvidas e nos expomos a elas a cada página lida, porque sabemos que não conhecemos ninguém tão bem assim, porque também temos medo da morte e dos segredos de família, porque desconhecemos qual é o sentido da vida, se há um ou dois ou nada. A gente simplesmente entende Cecília, porque conhecemos o poder do “e se”, então abraçamos sua desconfiança, tememos por ela, nos perguntamos porque ela falou alguma coisa e deixou de falar outra.
Com João é diferente. A história dele simplesmente vai se desenhando, acontecendo, sem a gente entender bem o porquê dela estar ali, sendo contada junto da vida de Cecília. A gente só acompanha ele e seu filho Adam, enquanto espera o momento em que tudo fará sentido. Agimos exatamente como o personagem, que parece, ao menos inicialmente, simplesmente seguir seu caminho trabalhando na zoonoses fazendo eutanásia em animais, fingindo não pensar tanto no que isso significa para ele, seu filho com uma grave deficiência e todos os cães e gatos que lhe são entregues. Só que um dos fios condutores desse livro se revela rapidamente, ainda que a gente demore um pouco para perceber: João também está lidando com a morte, com a sombra dela se aproximando do filho, e sua história é a de quem também busca respostas, mas tem medo até das perguntas que cogita fazer. João tem medo do seu futuro com e sem o filho.
Pirenópolis é um destino estranho para enlutados, mas me parece um lugar perfeito para dois idosos viverem juntos seus últimos dias. Não importa se os mortos gostavam ou não do último lugar em que moraram, porque aqueles que ficam e sofrem se sentirão pisando em um terreno insólito e perigoso independente de onde estejam. No fim das contas, qualquer lugar é um destino estranho para quem sofre uma perda. Ou acha que pode perder alguém a qualquer momento. Ou perde alguéns e ainda descobre um segredo de família que pode mudar a maneira como você encarava até então seu pai, sua mãe, sua vida.
“Apague a luz se for chorar” é uma história sobre as descobertas que fazemos quando somos obrigados a tatear essa escuridão. Lidar com a morte, aquela que ameaça ou já aconteceu, é estar em um não-lugar, um espaço suspenso, em que o mundo dos vivos se esbarra no dos mortos o tempo todo. Cecília e João vivem de maneiras bem diferentes a angústia de não conseguir mais pisar no solo e senti-lo firme e por essas e outras se encontram nesse livro que fala de morte, luto, medo, família, escolhas e segredos.
cacareco foi uma rinoceronte fêmea que comia sem frescura caules raízes ervas folhas se era mato ia pra dentro
até que um dia cacareco recebeu 100 mil votos para vereadora da maior cidade de um país que nem era o seu
cacareco nunca assumiu cargo político algum nem ficou sabendo das 100 mil pessoas que escreveram em uma cédula em branco seu nome
cacareco simplesmente continuou comendo as plantas lenhosas que nasciam na sua jaula do zoológico se era mato ia pra dentro até que um dia cacareco virou memória
todo poema é feito de cacarecos rinocerontes ou não
nem todo poema é feito do que se encontra nos anais da história mas esse é
As memórias do angustiante verão francês que Annie Ernaux viveu em 1963 ganharam novas camadas ao serem transformadas em obra cinematográfica pelas mãos da diretora Audrey Diwan, da roteirista Marcia Romano e de toda uma equipe repleta de mulheres.
Quando Annie Ernaux escreve sobre o aborto clandestino que viveu mais de três décadas depois, tempo e memória se misturam ao fato vivido. O que torna seu livro uma busca pelo registro daquilo experimentado em segredo, como outras tantas fizeram, francesas ou não. Quando ela decide escrever essa história da forma que fez, crua e quase documental, ela coloca em evidência que a escrita de si é também uma tentativa de adaptação: como fazer das lembranças palavras? É possível capturar os sentimentos dissolvidos nas cenas que conseguimos recordar mesmo tanto tempo depois? Qual é o papel de ler e reler o diário daquele ano nisso tudo? Como as palavras escritas quando tudo acontecia afetam quem se é agora? Falar de si é falar de uma época? Escrever sobre a própria solidão é uma forma de se sentir acompanhada nela? E esquecer é também uma forma de morrer? Se sim, escrever o que lembra é tentar viver além da própria experiência?
Se no livro a solidão, a angústia e o desamparo da personagem durante os três meses de 1963 chamam atenção, enquanto se misturam com o efeito do tempo e a ânsia da tentativa de tornar aquela vivência algo tangível pela escrita, o filme se propõe a tratar apenas do tempo da gravidez indesejada como fato incontornável, concentrando todo o desespero silencioso da personagem só naquilo, sem a reflexão temporal que envolve a recordação.
“O acontecimento” cinematográfico consegue então tornar a escrita memorialística de Annie Ernaux um recorte situacional que se aproxima ainda mais da construção dessa verdade pretendida na tentativa do relato, ainda que as cenas do filme tenham tido modificações pontuais no processo de adaptação e essas mudanças mostrem a presença de autoras, atrizes, cenários e a transformação daquilo que foi escrito e criado como memória em ficção.
No filme, acompanhamos a história de Anne Duchesne (Anamaria Vartolomei) como quem persegue uma personagem por ângulos intrusos. Nos transformamos em olhos vigilantes pela câmera curiosa, como se fôssemos parte do que torna o aborto buscado pela personagem um crime, uma vergonha, algo a ser acompanhado como fofoca por quem se delicia por saber que conseguiu escapar de estar nesse lugar, que pode ser “só” o de vagabunda que transa antes do casamento ou o de mãe solteira.
Conhecemos a intimidade dessa protagonista como parte do que torna a sua vivência um tabu e uma ilegalidade e isso, junto da atuação de Anamaria Vartolomei, ajuda a construir para o espectador uma agonia silente que mescla uma espera ansiosa por uma possível solução para aquilo que seria o fim de um futuro brilhante, enquanto esse mesmo futuro brilhante parece prestes a desmoronar pelo efeito dessa espera que não se realiza, e o medo dessa solução, se ou quando alcançada, se tornar o fim de qualquer futuro ou quase isso, com a morte, a mutilação ou a prisão.
O interdito é trabalhado também com a tensão sexual que insiste em se manifestar o tempo todo no universo da personagem, mesmo aquilo sendo visto como proibido. O estigma do exercício da sexualidade feminina paira sobre as jovens que falam o tempo todo de sexo, enquanto julgam as que ousam fazer, junto do medo da gravidez, que, além de ser uma manifestação da maternidade indesejada para aquele momento, representa também um atestado público de que aquela mulher não é mais virgem e pura, logo não merece mais respeito.
O universo da personagem é bem apresentado: temos ali as visitas aos pais trabalhadores no interior que precisam se manter como sempre foram para ninguém desconfiar de nada, as disputas internas entre os diversos grupos de jovens mulheres que dividem o dormitório e o espaço universitário, as fofocas durante as aulas, as festinhas regadas por Coca-Cola, a solidão mesmo quando acompanhada, a insônia de quem tem um problema a resolver e as mesmas três ou quatro roupas repetidas que evocam tanto a origem da protagonista, quanto o cotidiano como ele é.
O aborto clandestino se desenha nas duas linguagens como um desalento construído por uma disputa de riscos que pesa principalmente para aquelas sem os contatos e informações certas, essas que precisam apelar para métodos caseiros no escuro do quarto ou cirurgias em um cômodo de uma casa qualquer ou os dois. Sendo as consequências de uma gravidez indesejada ainda mais pesadas para uma mulher pobre buscando alguma ascensão social pelos estudos, como a personagem, ou uma operária ou atendente de supermercado. Só que até para as mais ricas, a clandestinidade recai de forma ameaçadora, porque mesmo com um contato do médico certo e seguro em mãos e a garantia de que não irá presa por escolher, ainda existe solidão, proibição de falar e praticar e estigma. Tudo isso cria um cenário perigoso que poderia não existir se a responsabilidade da gravidez não fosse imposta às mulheres somente, o aborto fosse legal, seguro e gratuito e uma informativa e acolhedora educação sexual fizesse parte do currículo das escolas.
Ainda que o aborto por escolha da mulher seja legal na França desde 1975, tendo sido Annie Ernaux uma ativista por esse direito, no Brasil nunca foi e ainda não é. O que torna a aflição da personagem Anne e os riscos corridos por ela para fazer valer seu desejo pelo, ainda que inexistente legalmente na época, direito à escolha muito próximos da realidade das mulheres brasileiras hoje, com suas vítimas fatais aqui e agora, entre mutiladas, presas e sortudas aliviadas. O interdito presente nas obras segue firme no Brasil, não só pelo tabu, mas também pela força da lei e das ameaças e práticas conservadoras que tentam tornar o aborto uma ilegalidade mesmo nos raros casos liberados pela nossa legislação: risco de vida para a gestante, gravidez fruto de estupro e gravidez de feto anencéfalo.
As cenas do filme “O acontecimento” parecem ainda mais gráficas e desoladoras para quem divide comigo a nacionalidade e o domicílio brasileiro e acompanha, além das histórias veladas de familiares, amigas e conhecidas, as notícias de meninas que sofreram pressão judicial, governamental e social para não usufruir do seu direito ao aborto legal previsto como exceção na lei penal.
Mesmo a filmagem fugindo do sangue, da agulha, dos instrumentos da enfermeira e focando no rosto e atuação da atriz, a gente sabe o que a clandestinidade causa direta e indiretamente e isso basta para nosso estômago revirar de tensão.
Poderia ser eu, poderia ser minha mãe, poderia ser uma amiga, poderia ser a vizinha do 103 ou a moça da bilheteria do cinema, mas foi Annie Ernaux em 1963 e muitas outras que não tiveram a sorte de sobreviver para contar ou nunca puderam elaborar o momento. Para quem tem um útero que se revira em cólica e sangue menstrual periodicamente, não precisa ser gore para ser quase um filme de terror, emular a realidade como ela é basta para nos lembrar que nosso corpo ainda está no controle do Estado e da sociedade e o que tudo isso significa.
Acervo Pessoal – Foto postada originalmente em meu Instagram
A primeira vez que li Ana Cristina César, eu consultava o livro “26 poetas hoje” procurando nomes de mulheres. Fui com a cara dela, mas não sabia se tinha gostado.
Mesmo sem saber se tinha gostado, eu continuei procurando seu nome e suas palavras onde quer que eu fosse: bibliotecas, livrarias, estantes novas ou conhecidas e, pela falta, acabava desembocando com esperança no Google Estou Com Sorte.
Ana Cristina César se transformou em uma espécie de oráculo distante, uma voz que eu queria e precisava decifrar. Ana Cristina César me desafiou a pensar em desejo, mistério, morte, língua, comunicação e entendimento. Ana Cristina César se tornou a pergunta que me levou a descobrir a poeta que eu sou, mesmo eu ainda não sabendo dizer se gosto gostando do que ela diz ou se fui apenas seduzida pelo abismo da dúvida e da vontade e a relação disso tudo com a minha descoberta do poder do prosaico.
Agora, nesses seus 70 anos que me parecem tão fictícios por sua partida tão precoce, eu me volto novamente para suas palavras. É um alívio saber que eu ainda olho para cada um dos seus poemas buscando o que eu não sei dizer, acompanhada dessa pulga atrás da orelha que nunca parou de me atormentar.
É muito estranho se eu disser que nunca deixei de escovar meus dentes sem pensar nas minhas escovas com cerdas mordidas e na força que o eu-lírico da Ana emprega nesse ato tão primordial?
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