Acervo pessoal – “Paraquedas” – colagem analógica feita por mim
elas são trepidantes vibram com o movimento nada retilíneo nem uniforme do ar e da saliva nas cordas vocais
em um estalo da língua elas se espatifam no bafo produzindo um barulho baixo médio alto altíssimo dependendo da vizinhança nem os cães com seus ouvidos biônicos sensíveis a qualquer mini-estrondo conseguem escutar
elas saem da boca como se fossem cogumelos cuspidos pulando de finquete numa piscina metade cheia metade vazia
depois do pulo quem manda é atmosfera ela pode destroçar um bom paraquedas derramando pedaços pela casa inteira ou fazer planar uma maçã contra a gravidade
a palavra é sempre um risco
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esse post foi feito em comemoração ao Dia Mundial da Poesia.no Instagram você pode acessar uma versão mais visual desse trabalho.
Colagem analógica triplicada e editada no Canva por Thaís Campolina – Acervo Pessoal
à toa e preocupada exploro minha casa como se fossem vivos os móveis e as paredes
um demônio me provoca ⠀ ⠀ ⠀ ⠀ ⠀⠀⠀ ⠀ ⠀ e eu respondo oi entregando que estou perto da janela da cozinha cinco segundos depois curiosa e ávida por um pão olho direto para o inferno esperando a vertigem desse sumidouro
a oxigenação do cérebro continua a mesma a pulsação também meus cotovelos dobrados esbarram na toalha de mesa me fazendo sentir na pele o carinho de um mundo de farelos esquecidos
nessa voragem não há tontura nem taquicardia eu sei que estou onde deveria estar
usando bons binóculos frente ao espelho do banheiro consigo olhar de volta e me ver a qualquer tempo caçando no escuro mais alimento
o abismo sou eu e ai de mim se não continuar a nadar
Colagem analógica por Thaís Campolina – Acervo Pessoal
ninguém queimou livro nenhum rasgaram alguns poucos eram sobre direitos humanos e foi na surdina no silêncio no conforto de uma biblioteca
os livros ocupavam sua morada prateleira de direito provavelmente em ordem alfabética para serem desordenados pelo leitor que não respeita as regras e devolve para prateleira o que lê na mesa
dessa vez a desordem que veio não foi um grifo ansioso feito por uma lapiseira foram páginas e mais páginas rasgadas inclusive a que tinha uma foto que dizia
Monique Malcher escreve como quem conhece bem a água. Suas primeiras frases funcionam como o toque inicial dela no corpo. Aquele momento de arrepio que vem da consciência de que a partir de agora dizemos adeus à terra firme. Nesse instante, a água nos convida a entrar de vez e você simplesmente vai, guiada pela promessa de que é assim que se acostuma com ela. Mas, justamente por conhecer tão bem o curso dos rios, Monique nunca nos deixa acostumar inteiramente com essa imersão.
Entrar na água é um risco. O mar impõe suas ondas aos olhos e ao corpo e os rios e lagoas não são muito confiáveis. A força da água doce é menos conhecida, pode não parecer, mas dali vai vir um nocaute em forma de história. É fácil se enganar e achar que nadar ali vai ser como estar numa piscina de hotel lotada de cloro. Às vezes pode até ser, mas vai saber. Talvez dê para nadar tranquila, talvez não. Talvez o único problema que você encontre seja simples de resolver, como uma alergia ao cloro. Talvez você simplesmente afunde.
As águas de Monique são mornas, turvas e podem ser perigosas. É fácil se deixar inundar por elas lembrando de alguém, pensando numa mãe, numa avó ou numa menina, todas perdidas nessa terra afundada cheia de vida. Tem quem se veja ali, inclusive. Então, no meio de um conto, um objeto há muito tempo perdido evoca uma figura-fantasma de mais uma mulher-menina-lembrança. Estar na água é uma ruptura com o mundo fora dela. As sereias e as rusalkas que o digam.
“Não é exclusividade das casas serem assombradas, mulheres são também. Isso conheço bem”, a autora elabora a partir de uma personagem, nos ajudando a encontrar o que nos assombra em terra firme, mas a gente só consegue ver mesmo quem esses monstros são quando mergulhamos e nos permitimos olhar para o mundo sem definição, sem os contornos que somos acostumadas a lidar.
“Flor de gume” é um livro imagético, que constrói seu ritmo e sua atmosfera a partir das forças da natureza. Água, vento, perna, muralha, asfalto, memória, arte, luto, morte, tudo se mistura para contar essas histórias que tem como tema em comum a filiação, a memória, o eu e a resistência histórica do enfrentamento desses corpos perante e a partir de tanto poder. O que pode acontecer desse encontro?
Ler Monique Malcher é se permitir navegar pelas águas barrosas dos rios e das travessias que partem de lugares desconhecidos interiores e úmidos até chegar a vários outros. Quem guia esse barco são as mulheres que conhecem esse caminho desde muito cedo por terem sido obrigadas a conhecê-lo, mas, por algum motivo, quem ainda está no barco como passageira tende a achar que continua sozinha, mesmo não estando.
Se mulheres são como águas e ficam mais fortes quando se encontram isso acontece, porque as histórias vão se alinhavando e quando são finalmente contadas juntas formam um fio condutor que também funciona como uma possível rede de proteção.
Uma hora as piloteiras e passageiras desses barcos vão se encontrar e se entender, ô se vão. Exatamente como o fogão ganhado pela menina numa rifa encontrou sua avó após dias navegando e serviu de conexão entre elas.
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Esse é um livro para quem gosta de textos híbridos, que conseguem respirar dentro e fora d’água. Se você quer ler algo que atravesse gêneros textuais a partir da construção de contos bem unidos e de uma poética, se permita conhecer “Flor de gume”. Com essa leitura, somos capazes de pensar a condição feminina e as lutas e heranças, individuais e coletivas, que acontecem como resistência a toda violência que cerca a vida das mulheres. E, mais do que isso, a partir dessa obra, nos tornamos capazes de lembrar melhor o que nos afeta e nos constrói. É importante conhecer melhor essas águas que nos cercam, deixar que elas nos mostrem o verdadeiro rosto de muitos homens.
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Monique Malcher foi a 2ª paraense a concorrer e ganhar o Jabuti. Sua vitória veio na categoria Contos pelo seu livro “Flor de Gume” na 63ª edição do prêmio. Além de escritora, é colagista, zineira e tem uma carreira acadêmica em construção.
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Reli “Flor de gume” agora em janeiro de 2022 junto ao Clube Cidade Solitária e adorei, sendo que minha 1ª vez com ele foi diferente. Eu gostei desde o início, e gostei muito, mas tinha rolado um trem meio seilá antes. Na releitura e também na conversa com outros leitores junto da autora, elaborei melhor essa minha primeira impressão perdida. Foi coisa de momento, acho, porque tem livro que tem hora, frequência e companhia certa para fazer a gente conseguir lidar com certos abalos de estrutura. Pensando então no tamanho do desconhecido das águas, na hibridez da escrita da autora e também no próprio ato de gostar, resolvi escrever sobre essa obra desse jeito meio misterioso, híbrido e quase ficcional, como se assim eu pudesse ficar mais próxima dessas personagens.
*alguns trechos dessa quase-resenha foram retirados do post que escrevi para o Leia Mulheres Divinópolis sobre o #DesafioLeiaMulheres2021 de fevereiro.
Colagem digital por Thaís Campolina — Foto de David Veksler (Unsplash) sugerida pelo meu amigo Guímel Bilac.
sempre gostei muito de chocolate podia ser aquele de moedinha bola de futebol ou guarda-chuva podia ser bombom sonho de valsa milkbar, sensação, prestígio kinder ovo, mundy e ferrero rocher podia ser chocolate da turma da mônica podia ser, sem sorte, até brigadeiro só não dava para comer bombom caribe caribe sempre foi um pouco demais até para mim
por mais que eu gostasse de chocolate e você pode ter certeza que era muito meus hobbies iam além do açúcar e os marketeiros sabiam disso nenhuma bobeirinha de criança comer jamais encontrou fim em si mesma since 1989
o mundo era cheio de surpresinhas e toda gostosura ganhava continuidade no uso dessa nova descoberta que vinha lambuzada de doce ou gordura trans fedendo excursão de escola para a fábrica da coca-cola
tinham tazos nos chips adesivos das spice girls nos pirulitos figurinha na balinha que tirava bafo tatuagem temporária no chiclete pelúcia no leite parmalat e brinde de kinder ovo
o kinder ovo tinha um gostinho de leite de vacas premiadas mas eu amava mesmo eram as cápsulas de plástico que envolviam minha diversão futura
não tinha separação de gênero no kinder ovo nessa época a surpresa se fingia ingênua
se podia brincar com quase tudo que as mães deixassem desde que a criança tivesse quem pagasse por ela os olhos da cara
de todas as coleções de brinquedinho kinder ovo que pude conhecer pelas minhas mãos ou pela propaganda que passava no intervalo dos desenhos na tevê nenhuma me agradou mais que aquelas lanterninhas esquisitinhas em formatos cotidianos
eu trocava qualquer coisa por esses brinquedos caga-fogo
quando meus pais me mandavam para cama e eu precisava continuar lendo ou queria continuar brincando acendia minhas luzinhas em formato de animais e eletrodomésticos debaixo do lençol
amava o telefone de discar com o dedo porque a luz dele era bem vermelha e me ajudava a ler as letrinhas miúdas de qualquer livro da biblioteca
amava também o cisne elegante de luz verde fraquinha tão fraca que foi o que me ensinou a deixar o sono chegar na hora certa
agora posso simplesmente ligar a luz do quarto varar madrugada lendo ferrante se quiser
agora também posso simplesmente deitar e dormir
aprendi a sonhar sem ajuda dos meus vagalumes que foram queimando com o tempo no fundo da gaveta da casa que não moro mais
hoje ninguém manda mais em mim mas também não tenho quem me compre kinder ovo com ou sem separação de gênero preciso fazer meu próprio brigadeiro de colher
todo mundo agora se diz muito preocupado com minha glicose acham que eu deveria viver de comer só meus bichinhos luminosos
Na foto, tenho como minha extensão meu livro aberto. Levei um exemplar pra passear na praça antes de qualquer um poder fazer isso. O que é óbvio, porque coloquei meu livro em movimento desde meu 1º momento com ele, quando nem desejo ele era. Meu livro circulou muito sendo feito, quando cada cenário, testemunha, autoras, tempo e ação se apresentava pra mim. Nem sei dizer quantos animais estranhos leram esses poemas no Google Drive antes deles formarem o que tenho em mãos. O mundo virtual é pouco tangível ainda que eu consiga saber quantos clicaram nas publicações que fiz de alguns deles no meu blog. Ainda que eu saiba que tenho clique de Portugal, da Holanda e da Irlanda nos meus poemas belo-horizontinos e nos meus poemas insólitos e nos meus poemas sem nomeação e publicação conjunta. Não sei dizer quantos vão ler meus poemas no arquivo zoado disponível na Amazon. E nunca vou conseguir saber até onde esse livro vai chegar quando seus PDFs, epubs e mobis começarem a voar.
Sei mais dos exemplares físicos. Sei que eles nasceram numa gráfica, foram para editora e depois se espalharam a partir das minhas mãos, dos Correios, dos entregadores, dos divulgadores literários que eu escolhi a dedo junto da editora e da minha assessora e amiga pessoal Marcela Güther. Sei que logo estarão nas mãos de bibliotecários, professores e, espero, leitores da cidade que escolhi como minha. Sei que eles chegam semana que vem no Ceará, em Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Pernambuco. E sei que a maioria permanecerá na sua cidade-origem, se espalhando em bairros, ruas e praças que nunca pisei, porque morar em uma grande cidade não significa conhecê-la completamente. Elas são inesgotáveis.
Já estive com esses livros em mente, andei com eles na bolsa, tive que protegê-los da chuva, da cerveja e da oleosidade de mãos. Já vi um exemplar manchado de gordura e vários dos meus poemas desformatados. Já encontrei foto de poema meu em redes sociais de gente que ainda nem conheço. Já descobri o poema preferido de algumas pessoas. Nem sempre o que gostam mais coincide com a minha opinião. Ainda bem.
Quero saber um pouco do caminho que o livro vai trilhar sozinho, só o suficiente para eu eu possa imaginar onde ele pode chegar. Peço que não me contem os versos que vocês não gostaram. Deixem para falar isso quando eu não estiver olhando. Não deixem de me dizer que leram meus poemas esperando ônibus no ponto ou curtindo uma tarde numa praça. Isso é o que eu realmente quero saber.
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Nem o nosso lado leitor é um personagem plano. Ler é movimento, é processo, uma atividade que envolve pela sua própria natureza a dúvida e a busca. A leitura é cheia das interrogações, mesmo em um texto tomado por frases curtas e secas sempre terminadas com um ponto final. A gente nunca sabe qual livro, trecho ou palavra vai nos arrebatar e nem que horas esse arrebatamento virá. Às vezes chega de uma vez, nos tira as palavras, impossibilitando até a escrita de resenhas. Simplesmente subimos aos céus, como se o impacto do que foi dito fosse combustível de um foguete pronto para viajar por toda Via Láctea, e depois ficamos tateando nosso interior tentando entender o que nos fez voar tão longe, tão rápido. Outras vezes, o assombro surge nas brechinhas das nossas vidas, como um matinho que insiste em enfrentar o concreto para crescer. As frases vão expandindo dentro da gente até tomar todo nosso corpo, simplesmente brotam lentamente onde cabem, até tornar impossível diferenciar o que é mato, o que é pele, o que é concreto e o que é sangue.
Escrevo, busco metáforas toscas, adio a publicação desse texto por mais um dia, faço tudo para me justificar por não saber simplesmente citar três livros e dizer que eles foram os melhores do ano. Se no ato de lembrar os melhores surgiu um nome, eu dificilmente o abandonarei. Me parece injusto ignorar o trabalho de algumas sinapses para trazer aquele título com tanta convicção.
2021 foi um ano muito rico em leituras por aqui. Fazer curadoria e mediação de dois projetos literários (Leia Mulheres Divinópolis e Clube Cidade Solitária), acompanhar vários outros e fazer uma especialização em Escrita e Criação tem me ajudado a entender cada vez melhor o meu gosto, tanto no sentido estético, quanto no que se refere a temas, personagens e debates que me interessam. Esse é um processo estranho, porque é nessa hora que a gente percebe que nossa subjetividade não é tão linear quanto a gente imagina e descobre que gosta muito de ler o que nem tem tanto interesse assim em escrever e vice-versa, percebe que é uma curiosa inveterada que se perde nas leituras começadas, porque sempre existem muitas outras possíveis, ou mesmo constata a possibilidade de mudar de ideia sobre um livro, porque alguém, em um clube do livro ou resenha, disse algo que te convenceu. Para o bem ou para o mal.
Segundo o Goodreads, eu li 65 livros. Conforme minha agenda, que inclui as leituras críticas/beta que fiz e ainda não foram publicadas e livros que não encontrei no aplicativo, foram 71. Não tenho certeza desses números, confesso. Minhas anotações são apenas uma tentativa descompromissada de fazer um registro do que eu estou lendo, pensando, investigando nesse meio tempo. Os livros não terminados, alguns teoricamente sendo lidos desde janeiro de 2020, também contam algo de mim. Minhas 16 leituras que ainda estão em andamento segundo o app são compostas por um possível abandonado, duas preguicinhas, alguns esquecidos na casa dos meus pais e muitos perdidos na minha desorganização. O que significa que podemos ter muitos outros além dos 16 que o Goodreads conhece. Como eu raramente documento os títulos e autores enquanto eu ainda estou lendo, vai saber.
Gosto da ideia de documentar meus interesses, mas não sou organizada o suficiente para isso. Gosto da ideia de fazer listas de leituras preferidas, mas não sei se consigo colocar ordem no meu gosto. Sou caótica demais. Gosto de muita coisa, entre elas, tentar, porque é nas tentativas, dúvidas e busca por uma resposta que a gente encontra as melhores perguntas e cria as mais imprevisíveis categorias. Vamos pra listinha então?
Colagem digital feita por mim a partir de elementos disponíveis no Canva
cabelo trançado já foi pecado trança em escamas é penteado mulher peixe cavalo
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como produzir sua própria criatura
providencie papel machê e imaginação faça aulas de biscuit cerâmica bordado bruxaria e se der tempo aprenda a lidar com lã, poções e amigurumis consulte mary shelley pense na ovelha dolly não cometa os mesmos erros que albieri veja filmes de ficção científica leia histórias de horror e algumas de amor também modele essa massa amorfa até que ela faça sentido e após terminar proteja sua criação
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oh my god
o mercado financeiro é uma partida de pingue-pongue profissional uma ficção contada como biografia séria de um homem branco qualquer uma seita que promete a reabilitação de pessoas jurídicas desesperadas um jogo de espelhos de um parque caindo aos pedaços cuidado pra não ir para o lado errado cair no conto do vigário acreditar em compliance e maquiagem contábil
há tantos caídos na base da pirâmide um mar de gente sem deus a falência é o maior dos pecados
Escrever é uma atividade considerada solitária. É preciso concentração, silêncio, tempo para colocar as palavras no papel, transformá-las em alguma coisa com sentido e depois trabalhar o texto, polir frases, reconstruir parágrafos. Só que escrever é muito mais do que isso. Quem escreve não escreve do nada, dialoga com o que veio antes e com o que está por vir. Um livro puxa o outro, que puxa mais um e esse faz nascer um blog, uma newsletter, um instagram literário, uma ideia, uma vontade de contar uma história ou duas, um desejo de compartilhar cada detalhe. Quem escreve está povoado de vozes e todo o processo de silêncio, concentração e tempo vem da necessidade de encontrar a maneira certa de construir cada texto.
O parágrafo acima é uma especulação, talvez até uma idealização. Foi construído amparado ao que eu acredito como escritora e o A que fecha essa palavra-identidade-desejo significa. Ao meu redor, vejo muitas mulheres que escrevem construindo um universo que as caiba. O apetite pelas letras de uma alimenta a coragem da outra de se colocar no mundo e assim vai. É uma tentativa de construção de potencial e oportunidade que surge a partir da troca, uma rede de aprimoramento que se cria do encontro da identidade com a alteridade e também um desafio de convivência.
Carla Guerson escreve desse lugar. Eu gosto de pensar que eu também. Por isso, em algum momento, a gente se esbarrou. Nesse nosso meio, encontros são desejados. A gente se constrói como escritora assim. A descoberta da Outra é a nossa chance de pescar algo novo no mar de histórias que nos cercam. Quem escreve precisa estar atento, uma boa história pode estar bem ao nosso lado e ai de nós se não tivermos com o olhar afiado o suficiente para captá-la. Quem escreve se coloca no mundo como uma antena parabólica. “O som do tapa” é o resultado dessa perspectiva de escrita e leitura do mundo.
A partir de 28 contos curtos, a autora constrói um livro coeso todo protagonizado por mulheres desabando, mulheres que se sentem deslocadas no mundo que vivem, destituídas da própria vida, fora daquilo que esperavam delas ou de si mesmas. Mesmo com experiências, idades, situações financeiras e sociais diferentes entre si, as vidas dessas personagens se entrelaçam no livro pelo que elas têm em comum: o impacto na subjetividade que o machismo e outras questões pessoais ou sociais que atingem algumas mulheres específicas podem trazer.
Em poucas páginas, Carla dá vida a um mundo de personagens complexas que mesclam questões individuais e atravessamentos sociais, sem jamais reduzi-las somente a seus sofrimentos, tornando cada uma dessas mulheres um alguém diferente, apesar do que o mundo quer de cada uma delas ser mais ou menos igual: a anulação de si. Mesmo abordando temas difíceis e necessários na maioria das histórias e por isso mexer com o leitor a partir do incômodo, há também contos um pouco mais leves, apesar de também críticos, como o incrível “As louças”.
Vale destacar que a autora explora muito do universo íntimo, tratando relações familiares e amorosas de uma maneira que surpreende, mas também é capaz de criar identificação e/ou empatia. “O som do tapa” mescla cotidiano, crítica ao machismo e muita vontade e habilidade de nos surpreender com finais fechados com chave de ouro. Carla Guerson estreia com contos bem escritos, bem conduzidos e de estrutura variada, histórias que se constroem baseadas em detalhes banais e privados que aproximam e afastam quem lê de cada personagem, de cada relação, porque o comum nos lembra o que mais existe com o disfarce de dia a dia, o que mais a gente finge não ver com a desculpa de que é tudo ordinário demais ou particular demais.
“O som do tapa” é um exercício de observação que denuncia o que muitos de nós não têm percebido ao redor de si ou, em muitos casos, até em si mesmas e escrever sobre isso é algo muito menos solitário do que pode parecer. Um livro puxa outro, que puxa mais um conto e esse conto servirá pra puxar mais uma língua e essa língua agora falante puxa outras línguas falantes e assim acontece a descoberta de que todas essas histórias também importam.
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Aos 31 anos, 11 meses e 1 dia, eu posso dizer que já me senti um caco várias vezes. Me vi caco por estar muito cansada, fiquei um caquinho por causa de uma virose que peguei na praia, me senti um pedaço de uma garrafa de cerveja quebrada depois de algumas brigas, episódios de bullying, pesadelos, ressacas e noites de insônia. E nem comento de como me dividi em pedacinhos minúsculos de vidro temperado nas incontáveis vezes que fracassei, nos lutos que me cercaram e naquela vez que peguei dengue e fiquei com o corpo todo dolorido, inchado e coçando.
Estar um caco ou dividida em muitos caquinhos é um estado quase permanente para todo mundo, ainda que se varie os motivos, a frequência e a força dos desastres que afetam cada um. Viver é se dividir em pedaços cada vez menores, se quebrar toda, aprender a cair pra lascar menos as arestas e depois, lentamente ou não, colar tudo ou tentar fazer isso da melhor maneira possível. Na hora de pregar as peças, a gente percebe que nada mais tem lugar certo e que não tem super bonder que resolva algumas coisas. Alguns pedaços, talvez a maioria deles, ficam expostos mesmo quando a gente termina de montar esse mosaico que somos. De pertinho, alguém sempre consegue ver os remendos, mas de longe não. De longe, as pessoas às vezes não veem nada disso, ou veem, mas fingem que não tem nada demais no que parece estar prestes a cair criando milhares de novos pedaços. De longe, a maioria pensa que tudo está funcionando nos conformes, porque não sabe que essa resenha demorou tanto a sair, porque alguém, em meio ao seu caos particular de sempre, sumiu com as anotações que fez para se preparar para mediar o encontro do Clube Cidade Solitária sobre a obra que tenta introduzir agora e por isso teve que recomeçar a escrita desse ensaio/resenha do zero. O que, vamos combinar, é quase uma piada, como é também nosso hábito de fingir que esse processo de recolhimento e colagem de pedaços não acontece o tempo todo e como esse ciclo ganha características especiais quando se é adolescente e pertencer se torna um desejo, um desafio, uma necessidade e quase uma impossibilidade.
Eu odeio o Ivan Lins, eu me odeio e me amo e não me suporto. Não sei qual fundamento me fez vir ao mundo, já que não contribuo pra nada, nem para o meu próprio benefício. Sou imatura e tenho um coração de um tupperware malcheiroso e vazio. (pg.82)
“Os tais caquinhos”, livro de Natércia Pontes, é sobre os fragmentos, pensamentos, sentimentos, sonhos, pesadelos e lacunas que quando empilhados formam Abigail. A própria estrutura da obra evoca esses pedaços unidos pela cola do diário da narradora e protagonista que acompanhamos, um diário que parece fazer pouco sentido até que faz algum, porque esta história só poderia ser contada assim, totalmente despedaçada e cheia de durepox. Temos então uma adolescente que vive paixões avassaladoras, o tédio e a escola, como a maioria das meninas de sua idade. Só que a vida de Abigail não é como a delas e as paixões avassaladoras, o tédio e a escola acontecem no apartamento 402. O que significa um lugar de falta, de caos, de sujeira, de nojo, de infestação de insetos e, por incrível que pareça, um lar.
Fiz questão de dormir enrolada nele, como se estivesse encapsulada num casulo de algodão, forte o suficiente para me proteger do impacto de mais um chute. (pg 87)
Natércia Pontes escreveu uma obra que evoca a adolescência em tudo, inclusive na invenção do mundo, da família, da falta, da intensidade, da sexualidade e do significado do eu, sem esquecer dos odores fortes desses corpos tão hormonais e ainda não totalmente compreensíveis a seus donos. Odores comuns que se misturam a um apartamento que parece estar em decomposição e a um pai pouco afeito ao mundo prático e cotidiano.
Lúcio — sempre hipervigilante, sobretudo em situações cotidianas, que não suscitavam perigo — me ouviu. (pg 124)
Esse é um livro que fede. Depois de terminar essas páginas, a frase “o requeijão está estragado” nunca mais será lida ou ouvida sem que esse odor não venha até às narinas pronto para derrubar qualquer um em um nocaute. As descrições incomodam, ensinam o cérebro a fazer o caminho direto para o nojo, nos lembram que algo deve estar podre no reino da Dinamarca — ou da Nova Zelândia — e talvez até dentro de nós mesmos.
Essa é uma obra capaz de nos fazer voltar para cada um dos caquinhos que acumulamos na nossa formação, olhar de novo para aquilo que a gente costuma chamar de passado, mas faz parte de cada um mesmo quando a gente tem o hábito de jogar fora as coisas na hora certa. E também faz mais do que isso, porque Natércia descreve o que ninguém gosta de olhar, cria cenas úmidas que misturam elementos que poucas vezes vemos juntos e que por isso tornam essa história ainda mais próxima, interessante e, talvez, poética. E, desse mesmo modo, ela incomoda o leitor por mostrar a complexidade das coisas. Nada nesse livro é limpinho. Ou simples. Ou mesmo fácil de lidar. Igual crescer.
Lúcio, pai de Abigail, não sabe cuidar nem de si mesmo. É acumulador, neurótico, diz que quer morrer e que é muito bom sentir fome, mas também é amoroso e compreensivo com suas filhas. Confia nelas, inclusive. Conversa, apoia, dá autonomia, junto a uma perigosa passividade de sua parte. Lúcio não é um homem que abandona, é um negligente negligenciado, um cara que simplesmente não está bem. Juntos, os três sobrevivem.
De repente os dias pareciam mais leves, como se uma camada grossa de poeira espalhada sobre todas as coisas e sobre cada pensamento entulhado na minha cabeça tivesse sido sugada por um imenso aspirador de pó. (pg. xx)
O apartamento 402, em todo o seu caos, é uma extensão de Lúcio, a materialização de seus caquinhos se acumulam ali, juntando poeira, sebo e bicho. Ele tenta guardar todos os aspectos de sua vida ali, como se dessa forma, com tudo perto e (quase) visível, ele conseguisse encontrar algum sentido nessa sucessão de acontecimentos que nós não conhecemos bem, mas formam sua existência (logo, também a de suas filhas). E por serem partes essenciais da vida dele, elas também moldam seus quartos cada uma à sua maneira, com suas marcas de pés na parede, suas roupas sujas guardadas, um edredom sonhado ou mesmo com roupas emprestadas das amigas, um certo asseio e um maior nível de organização. Cada caos, uma tentativa de ordenação e registro dos caquinhos que surge como uma necessidade imediata de Lúcio e reverbera nelas.
Fiquei absorta por essa visão por um tempo indeterminado. O velho silêncio que nos unia, confirmando nossa proximidade, nossa vida cúmplice, mesmo que na maior parte do tempo nos comportássemos como frios inimigos debaixo de um teto recoberto de bolor” (pg.96)
“Os tais caquinhos” não é um livro fácil, sua fluidez angustiante e suja não funciona para quem tem estômago fraco. E eu nem falo isso por causa das descrições difíceis de digerir. Natércia construiu uma história que explora a feiura da adolescência, a naturalização da violência machista, a descoberta do eu e a espiral de autodestruição de um homem que sem querer leva sua amada filha mais velha junto a essa mesma lógica. E que, mesmo diante desse contexto, nos faz pensar que Abigail, Berta e Lúcio são uma família unida e em transformação, apesar dos pesares. Eles se amam e podem contar um com o outro. Eles se amam e querem ser melhores juntos. Eles se amam e por isso sobrevivem. Eles se amam… e acho que posso simplesmente dizer: “e ponto”.
Eu não tinha dito que o apartamento 402 era, apesar de tudo, um lar?
A casa dos outros, com seus cheiros adstringentes, lava-roupas trabalhando e geladeiras abarrotadas de produtos, não nos chamava mais. Queríamos o nosso escuro, o nosso casulo comum. (pg 129)
Observação: Cuidado! Ler esse livro pode te dar ânsia de vômito, fazer você pensar em gafanhotos como Clarice Lispector pensava em baratas e te levar a terminar o dia buscando no Spotify Marina Lima para ouvir em pleno anos 20!
Observação 2: Esse livro pode ter o efeito adverso de obrigar resenhistas sedentos por likes a passar minutos olhando fotos de gafanhotos para assim conseguir desenhar um só para fazer uma foto única para acompanhar a resenha/ensaio ainda a ser escrita. Foi o que aconteceu comigo. Espero não acabar sonhando com versões gigantescas desses bichos que Abigail “gosta” tanto.