“Flor de gume”: as mulheres, águas e as travessias

Acervo Pessoal – Compre seu “Flor de gume” aqui.

Monique Malcher escreve como quem conhece bem a água. Suas primeiras frases funcionam como o toque inicial dela no corpo. Aquele momento de arrepio que vem da consciência de que a partir de agora dizemos adeus à terra firme. Nesse instante, a água nos convida a entrar de vez e você simplesmente vai, guiada pela promessa de que é assim que se acostuma com ela. Mas, justamente por conhecer tão bem o curso dos rios, Monique nunca nos deixa acostumar inteiramente com essa imersão.

Entrar na água é um risco. O mar impõe suas ondas aos olhos e ao corpo e os rios e lagoas não são muito confiáveis. A força da água doce é menos conhecida, pode não parecer, mas dali vai vir um nocaute em forma de história. É fácil se enganar e achar que nadar ali vai ser como estar numa piscina de hotel lotada de cloro. Às vezes pode até ser, mas vai saber. Talvez dê para nadar tranquila, talvez não. Talvez o único problema que você encontre seja simples de resolver, como uma alergia ao cloro. Talvez você simplesmente afunde.

As águas de Monique são mornas, turvas e podem ser perigosas. É fácil se deixar inundar por elas lembrando de alguém, pensando numa mãe, numa avó ou numa menina, todas perdidas nessa terra afundada cheia de vida. Tem quem se veja ali, inclusive. Então, no meio de um conto, um objeto há muito tempo perdido evoca uma figura-fantasma de mais uma mulher-menina-lembrança. Estar na água é uma ruptura com o mundo fora dela. As sereias e as rusalkas que o digam.

“Não é exclusividade das casas serem assombradas, mulheres são também. Isso conheço bem”, a autora elabora a partir de uma personagem, nos ajudando a encontrar o que nos assombra em terra firme, mas a gente só consegue ver mesmo quem esses monstros são quando mergulhamos e nos permitimos olhar para o mundo sem definição, sem os contornos que somos acostumadas a lidar.

“Flor de gume” é um livro imagético, que constrói seu ritmo e sua atmosfera a partir das forças da natureza. Água, vento, perna, muralha, asfalto, memória, arte, luto, morte, tudo se mistura para contar essas histórias que tem como tema em comum a filiação, a memória, o eu e a resistência histórica do enfrentamento desses corpos perante e a partir de tanto poder. O que pode acontecer desse encontro?

Ler Monique Malcher é se permitir navegar pelas águas barrosas dos rios e das travessias que partem de lugares desconhecidos interiores e úmidos até chegar a vários outros. Quem guia esse barco são as mulheres que conhecem esse caminho desde muito cedo por terem sido obrigadas a conhecê-lo, mas, por algum motivo, quem ainda está no barco como passageira tende a achar que continua sozinha, mesmo não estando.

Se mulheres são como águas e ficam mais fortes quando se encontram isso acontece, porque as histórias vão se alinhavando e quando são finalmente contadas juntas formam um fio condutor que também funciona como uma possível rede de proteção.

Uma hora as piloteiras e passageiras desses barcos vão se encontrar e se entender, ô se vão. Exatamente como o fogão ganhado pela menina numa rifa encontrou sua avó após dias navegando e serviu de conexão entre elas.

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Esse é um livro para quem gosta de textos híbridos, que conseguem respirar dentro e fora d’água. Se você quer ler algo que atravesse gêneros textuais a partir da construção de contos bem unidos e de uma poética, se permita conhecer “Flor de gume”. Com essa leitura, somos capazes de pensar a condição feminina e as lutas e heranças, individuais e coletivas, que acontecem como resistência a toda violência que cerca a vida das mulheres. E, mais do que isso, a partir dessa obra, nos tornamos capazes de lembrar melhor o que nos afeta e nos constrói. É importante conhecer melhor essas águas que nos cercam, deixar que elas nos mostrem o verdadeiro rosto de muitos homens.

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Monique Malcher foi a 2ª paraense a concorrer e ganhar o Jabuti. Sua vitória veio na categoria Contos pelo seu livro “Flor de Gume” na 63ª edição do prêmio. Além de escritora, é colagista, zineira e tem uma carreira acadêmica em construção.

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Reli “Flor de gume” agora em janeiro de 2022 junto ao Clube Cidade Solitária e adorei, sendo que minha 1ª vez com ele foi diferente. Eu gostei desde o início, e gostei muito, mas tinha rolado um trem meio seilá antes. Na releitura e também na conversa com outros leitores junto da autora, elaborei melhor essa minha primeira impressão perdida. Foi coisa de momento, acho, porque tem livro que tem hora, frequência e companhia certa para fazer a gente conseguir lidar com certos abalos de estrutura. Pensando então no tamanho do desconhecido das águas, na hibridez da escrita da autora e também no próprio ato de gostar, resolvi escrever sobre essa obra desse jeito meio misterioso, híbrido e quase ficcional, como se assim eu pudesse ficar mais próxima dessas personagens.

*alguns trechos dessa quase-resenha foram retirados do post que escrevi para o Leia Mulheres Divinópolis sobre o #DesafioLeiaMulheres2021 de fevereiro.

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notícia de um 1 milhão de euros

três figuras sem rosto encaram um homem em seu primeiro dia de trabalho

o homem tem rosto e parece entediado

nunca sabe para onde as três figuras olham

parte do trabalho de um profissional da segurança da arte envolve medir a distância das mãos das bolsas e dos olhos dos planos, ele diria se quisesse se justificar para o fantasma de Anna Leporskaya

mas ele não diz nada

mesmo demitido e ameaçado de ter que quitar uma multa e ainda pegar três meses de cadeia na Rússia

ele apenas não diz nada

exatamente como as três figuras sem rosto que ganharam temporariamente olhos continuam fazendo mesmo ostentando essas novíssimas bolinhas de gude transparentes na cara.

essas bolinhas discretas feitas sob medida por um estranho homem de 60 anos.

esses olhos-bolinha desenhados pelas mãos criativas de um homem que se recusa a se explicar.

esse homem que andou por todo um museu empunhando uma perigosa caneta esferográfica.

esse criminoso que está sempre pronto para rabiscar olhinhos e carinhas felizes onde conseguir chegar com sua BIC ou semelhante russa

um homem que jura não ter nada a dizer

talvez porque no lugar de rabiscar bocas
ele escolheu abrir olhos

olhos com data marcada para se apagar

isso se o fantasma de Anna Leporskaya deixar

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Crateras de verão

Colagem digital – Thaís Campolina

Tudo começou com um “Você sabe o que aconteceu?” impaciente e sem interlocutor definido. “Aposto que é cratera”, comentou uma jovem negra de tranças coloridas. “Mas a cratera que abriu foi em outro lugar do Floresta, moça”, respondeu um homem grisalho, de pele rosa e terno. Uma voz feminina no meio do ônibus fez questão de opinar: “Uai, pode ter aparecido mais outra aqui também, não?”. “Não seria a primeira vez”, manifestou a loira ao lado do homem engravatado.

Um menino vestido de uniforme, em pé ao lado das cadeiras altas, começou a dizer: “Mas nem choveu essa tarde…” e a frase “Não tem mais aonde ir água, filho” surgiu no ar, como se tivesse sido dita pelo calor úmido que infernizava todos os passageiros do 8102.

Fora do ônibus, um homem que carregava uma bíblia toda gasta bradou: “É o fim do mundo se aproximando!”, enquanto, dentro do coletivo, um sujeito sem qualquer característica marcante reclamou: “Que cratera o quê? É buraco. Cratera tem é em Marte!”

Alguém sacou o celular e mostrou uma notícia sobre o engarrafamento e o seu motivo para todos os curiosos ao alcance de um braço. O asfalto se rompeu no fim da tarde, minutos antes de o ônibus chegar à Assis Chateaubriand, e especialistas culpavam a chuva da noite anterior pela nova cratera.

“Chove e fura buraco na cidade inteira! Tem mais jeito não”, concluiu alguém, enquanto outro dizia: “Assim não dá mais! O prefeito tem que meter uma ponte ligando essa rua aqui com a Jacuí e depois com a Cristiano Machado”. Em resposta, uma mulher comentou: “Chuva faz buraco em ponte também, hein?” e risadas abafadas surgiram.

“Nesse calorão, sem ar condicionado, todo mundo espremido dando volta pelo bairro. Assim não dá”, desabafou aos gritos um senhor próximo ao trocador. Perto dele, sentados nos assentos preferenciais, dois idosos resmungavam sobre o azar de terem perdido o ônibus anterior, aquele que passou minutos antes de a fenda se abrir.

Além deles, havia também uma mulher que não parava de escrever em um caderninho vermelho e um vasto grupo de silenciosos que ora observava a conversa coletiva, ora encarava a tela do celular.

O papo continuou até o ônibus se esvaziar e o blá-blá-blá desceu junto com cada um dos passageiros. Uns dividiram a conversa que tiveram em casa, outros não, mas todo mundo dormiu pensando que um dia vai chover tanto, mas tanto, que um buraco maior do que a própria cidade vai se abrir e Belo Horizonte vai deixar de existir. Uma única mulher, aquela que não parava de escrever, lembrou-se de Marte e suas crateras e se levantou da cama para escrever um conto sobre o fim da vida na Terra.

*“Crateras de verão” faz parte da publicação independente & coletiva nomeada Jurema, obra que reúne textos que surgiram numa oficina sobre cotidiano ministrada pela Carina Gonçalves no ateliê de escrita Estratégias Narrativas em março (ou maio, não lembro mais) de 2018. O livreto foi lançado em fevereiro de 2019 numa Feira Textura e conta também com trabalhos de Beth Andrade, Glau Nascimento, Isabelle Chagas, Olivia Gutierrez, Viviane Moreira e da professora já citada acima. “Jurema” ainda pode ser adquirida no site do Impressões de Minas.

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Igual à narina

A linguagem nasce como um bocejo. Quando uma boca se abre e o cenho se franze, o rosto ao lado reage fazendo o mesmo. De repente, nosso jeito de falar, estruturar pensamentos e agir começa a mudar: uma palavra nova é adicionada ao vocabulário, uma pausa que não existia antes aparece, um novo jeito de mexer as mãos e balançar as pernas é imposto pelo corpo, o ritmo da respiração muda, um fonema fica mais chiado, a voz agora soa fanha, a risada ganha ou perde fôlego, você passa a dar três beijinhos ou fazer um toque de cotovelos para cumprimentar alguém e se surpreende com os músculos do rosto se contraindo numa careta inédita. E esses novos hábitos podem ou não se manter. Depende da sua abertura para o mundo, da quantidade de contato e conexão que você tem com quem interage com você e com tudo que vem a acontecer nos domínios próximos ou distantes do universo desconhecido que vive bem debaixo do seu nariz. É por isso que algumas pessoas dizem que uma separação, qualquer que seja ela, é sempre o fim de uma língua, aquela que foi desenvolvida pouco a pouco pelos envolvidos e que agora permanecerá interrompida, um idioma fóssil geolocalizado na memória, sem falantes fora do mundo das recordações.

A linguagem surge da observação. Cada palavra, frase e gesto vem de um exercício de atenção que, sem a gente perceber, se transforma em uma outra coisa. A linguagem então também é memória, mas o que não é memória? Não importa. Ela é cada um de nós, mesmo nascendo do encontro com outras pessoas. O que é humano e não vem desse paradoxo entre o eu e nós? A linguagem é o que temos. É o que nos permite formular sozinhos ou acompanhados aquilo que é aprendido ou percebido. O que passa pelos sentidos e fica, provoca os neurônios-espelhos e dura além de um espasmo. Para cada povo ou indivíduo, a linguagem é uma identidade que vem de algo anterior, algo que só existe a partir do outro, algo único e em constante mutação. O encontro do eu com o nós, da rotina com o novo, do espontâneo com o que já foi pensando antes, do corpo com qualquer coisa.

A linguagem é absurda. O que eu chamo de amarelo não é o mesmo amarelo que você vê. O que se conhece como cor da pele não é a cor de todas as peles. Os gregos antigos não conheciam a cor azul, porque o mar e o céu assumem muitas tonalidades além. O nome das coisas nos situa no mundo, nos dá palavras para contar o que só a gente pode contar, mas não se bastam. Uma língua pode até ser criada com um fim específico, como o ficcional právico de Os Despossuídos da Ursula Le Guin ou o esperanto do mundo que conhecemos, mas somente no uso as palavras encontram a vida, se transformam e ganham os contornos das idiossincrasias. Nem precisa ser poeta para fazer uma metáfora, nem Guimarães Rosa para ousar um neologismo. Muito menos atuar como personagem italiano de novela brasileira para gesticular até torcer o que dizem as palavras pronunciadas com um sotaque que só existe no mundo da ficção.

A linguagem é um vírus. Ela muda, ela circula, ela precisa de contato para continuar. Ela pode ser transmitida. Ela tem que ser transmitida. Talvez nem o isolamento total consiga parar essa contaminação. Algo fica, eu sei que fica.

A linguagem é um erro. Ninguém consegue dizer o que quer ou precisa. Emissor, receptor, mensagem, tudo, absolutamente tudo, que envolve nossa vontade de se fazer entender é feito por caquinhos que se unem apenas pela liga da saliva. Sem cola escolar ou super bonder, apenas saliva. O papel pode se rasgar se a gente umedecer demais a mensagem, virar uma bola de cuspe que pode ser moldada até atingir qualquer forma, esculturas do que se quis dizer ou se quis entender. Ou pode vir seca, sem sentido, e ainda assim chegar rasgando a pele fina das mãos ou a garganta originária. 

A linguagem é bestial. O cachorro late, o gato ronrona, os grandes felinos rugem, os pássaros cantam, os lobos uivam, o ser humano canta e o português cria palavras para referenciar a comunicação e os coletivos desses e outros animais. E tem as interjeições, os feromônios, as garras, a peçonha, as multidões e, de novo, o diferente. E do diferente origina-se também tudo aquilo que alguns chamam de monstros, esses bichos que a gente aprende a imaginar a partir desse medo do Outro que nos une e nos separa. E tem também a comunicação interespécies, que me faz entender as piscadas carinhosas dos meus gatos e também seus rabinhos que em um único movimento me avisam que eles querem continuar brincando. E assim surge mais um dialeto, esse centrado no aqui e agora da minha casa. E isso acontece também via tweets, emails, posts, mensagens instantâneas, chamadas de vídeos e áudios de cinco minutos. As amizades e as línguas surgem na fricção dos interesses comuns com tudo aquilo que a gente inventa.

A linguagem é neurociência, linguística, gramática, programação, biologia, antropologia, esporte, ABNT e arte, ela é língua, boca, dentes, bochechas, mãos, postura, músculos, corpo, careta, máscara. É indomável, capaz de invadir territórios, criar espaços, transformar o meu, o nosso, modo de dizer. É meme, é incômodo, é risada, é troca, é terror, é guerra, é você, nós, eles… sou eu. 

A linguagem é uma brincadeira, são as peças de lego que a gente usa para montar e desmontar cenários e narrativas, tentando desesperadamente contar para alguém um pouco sobre a convergência dos universos que somos com o que percebemos em contato com os outros. É o que eu tenho para satisfazer minha vontade de tentar explicar porque escrevo, tagarelo, gesticulo, observo, crio, sonho, mexo as pernas, batuco mesas e explico o cotidiano. É o que me faz sentir parte, buscar sentidos, fazer perguntas, formular resposta, ligar o computador e escrever uma mensagem para um destinatário desconhecido, elaborar experiências, abrir um caderno e rabiscar com uma caneta rosa um monstro com cabeça de mulher, rabo de cavalo, grandes caninos e tentáculos abissais. É o que me leva a amar conversar de todas as formas e com todos os animais, inclusive com uma gata preto e branca que tem as narinas rosadas como os meus mamilos e eu só conheço pela internet. 

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“O som do tapa” e o fio quase invisível que une as escritoras

Escrever é uma atividade considerada solitária. É preciso concentração, silêncio, tempo para colocar as palavras no papel, transformá-las em alguma coisa com sentido e depois trabalhar o texto, polir frases, reconstruir parágrafos. Só que escrever é muito mais do que isso. Quem escreve não escreve do nada, dialoga com o que veio antes e com o que está por vir. Um livro puxa o outro, que puxa mais um e esse faz nascer um blog, uma newsletter, um instagram literário, uma ideia, uma vontade de contar uma história ou duas, um desejo de compartilhar cada detalhe. Quem escreve está povoado de vozes e todo o processo de silêncio, concentração e tempo vem da necessidade de encontrar a maneira certa de construir cada texto.

O parágrafo acima é uma especulação, talvez até uma idealização. Foi construído amparado ao que eu acredito como escritora e o A que fecha essa palavra-identidade-desejo significa. Ao meu redor, vejo muitas mulheres que escrevem construindo um universo que as caiba. O apetite pelas letras de uma alimenta a coragem da outra de se colocar no mundo e assim vai. É uma tentativa de construção de potencial e oportunidade que surge a partir da troca, uma rede de aprimoramento que se cria do encontro da identidade com a alteridade e também um desafio de convivência.

Carla Guerson escreve desse lugar. Eu gosto de pensar que eu também. Por isso, em algum momento, a gente se esbarrou. Nesse nosso meio, encontros são desejados. A gente se constrói como escritora assim. A descoberta da Outra é a nossa chance de pescar algo novo no mar de histórias que nos cercam. Quem escreve precisa estar atento, uma boa história pode estar bem ao nosso lado e ai de nós se não tivermos com o olhar afiado o suficiente para captá-la. Quem escreve se coloca no mundo como uma antena parabólica. “O som do tapa” é o resultado dessa perspectiva de escrita e leitura do mundo.

A partir de 28 contos curtos, a autora constrói um livro coeso todo protagonizado por mulheres desabando, mulheres que se sentem deslocadas no mundo que vivem, destituídas da própria vida, fora daquilo que esperavam delas ou de si mesmas. Mesmo com experiências, idades, situações financeiras e sociais diferentes entre si, as vidas dessas personagens se entrelaçam no livro pelo que elas têm em comum: o impacto na subjetividade que o machismo e outras questões pessoais ou sociais que atingem algumas mulheres específicas podem trazer.

Em poucas páginas, Carla dá vida a um mundo de personagens complexas que mesclam questões individuais e atravessamentos sociais, sem jamais reduzi-las somente a seus sofrimentos, tornando cada uma dessas mulheres um alguém diferente, apesar do que o mundo quer de cada uma delas ser mais ou menos igual: a anulação de si. Mesmo abordando temas difíceis e necessários na maioria das histórias e por isso mexer com o leitor a partir do incômodo, há também contos um pouco mais leves, apesar de também críticos, como o incrível “As louças”.

Vale destacar que a autora explora muito do universo íntimo, tratando relações familiares e amorosas de uma maneira que surpreende, mas também é capaz de criar identificação e/ou empatia. “O som do tapa” mescla cotidiano, crítica ao machismo e muita vontade e habilidade de nos surpreender com finais fechados com chave de ouro. Carla Guerson estreia com contos bem escritos, bem conduzidos e de estrutura variada, histórias que se constroem baseadas em detalhes banais e privados que aproximam e afastam quem lê de cada personagem, de cada relação, porque o comum nos lembra o que mais existe com o disfarce de dia a dia, o que mais a gente finge não ver com a desculpa de que é tudo ordinário demais ou particular demais.

“O som do tapa” é um exercício de observação que denuncia o que muitos de nós não têm percebido ao redor de si ou, em muitos casos, até em si mesmas e escrever sobre isso é algo muito menos solitário do que pode parecer. Um livro puxa outro, que puxa mais um conto e esse conto servirá pra puxar mais uma língua e essa língua agora falante puxa outras línguas falantes e assim acontece a descoberta de que todas essas histórias também importam.

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Os tais caquinhos que formam Abigail, eu e você

Virar mais mãe de mim mesma; era o que me restava. Ou nascer de mim como salvação. (pg 130)

Acervo Pessoal – Adquira seu exemplar aqui!

Aos 31 anos, 11 meses e 1 dia, eu posso dizer que já me senti um caco várias vezes. Me vi caco por estar muito cansada, fiquei um caquinho por causa de uma virose que peguei na praia, me senti um pedaço de uma garrafa de cerveja quebrada depois de algumas brigas, episódios de bullying, pesadelos, ressacas e noites de insônia. E nem comento de como me dividi em pedacinhos minúsculos de vidro temperado nas incontáveis vezes que fracassei, nos lutos que me cercaram e naquela vez que peguei dengue e fiquei com o corpo todo dolorido, inchado e coçando.

Estar um caco ou dividida em muitos caquinhos é um estado quase permanente para todo mundo, ainda que se varie os motivos, a frequência e a força dos desastres que afetam cada um. Viver é se dividir em pedaços cada vez menores, se quebrar toda, aprender a cair pra lascar menos as arestas e depois, lentamente ou não, colar tudo ou tentar fazer isso da melhor maneira possível. Na hora de pregar as peças, a gente percebe que nada mais tem lugar certo e que não tem super bonder que resolva algumas coisas. Alguns pedaços, talvez a maioria deles, ficam expostos mesmo quando a gente termina de montar esse mosaico que somos. De pertinho, alguém sempre consegue ver os remendos, mas de longe não. De longe, as pessoas às vezes não veem nada disso, ou veem, mas fingem que não tem nada demais no que parece estar prestes a cair criando milhares de novos pedaços. De longe, a maioria pensa que tudo está funcionando nos conformes, porque não sabe que essa resenha demorou tanto a sair, porque alguém, em meio ao seu caos particular de sempre, sumiu com as anotações que fez para se preparar para mediar o encontro do Clube Cidade Solitária sobre a obra que tenta introduzir agora e por isso teve que recomeçar a escrita desse ensaio/resenha do zero. O que, vamos combinar, é quase uma piada, como é também nosso hábito de fingir que esse processo de recolhimento e colagem de pedaços não acontece o tempo todo e como esse ciclo ganha características especiais quando se é adolescente e pertencer se torna um desejo, um desafio, uma necessidade e quase uma impossibilidade.

Eu odeio o Ivan Lins, eu me odeio e me amo e não me suporto. Não sei qual fundamento me fez vir ao mundo, já que não contribuo pra nada, nem para o meu próprio benefício. Sou imatura e tenho um coração de um tupperware malcheiroso e vazio. (pg.82)

Os tais caquinhos”, livro de Natércia Pontes, é sobre os fragmentos, pensamentos, sentimentos, sonhos, pesadelos e lacunas que quando empilhados formam Abigail. A própria estrutura da obra evoca esses pedaços unidos pela cola do diário da narradora e protagonista que acompanhamos, um diário que parece fazer pouco sentido até que faz algum, porque esta história só poderia ser contada assim, totalmente despedaçada e cheia de durepox. Temos então uma adolescente que vive paixões avassaladoras, o tédio e a escola, como a maioria das meninas de sua idade. Só que a vida de Abigail não é como a delas e as paixões avassaladoras, o tédio e a escola acontecem no apartamento 402. O que significa um lugar de falta, de caos, de sujeira, de nojo, de infestação de insetos e, por incrível que pareça, um lar.

Fiz questão de dormir enrolada nele, como se estivesse encapsulada num casulo de algodão, forte o suficiente para me proteger do impacto de mais um chute. (pg 87)

Natércia Pontes escreveu uma obra que evoca a adolescência em tudo, inclusive na invenção do mundo, da família, da falta, da intensidade, da sexualidade e do significado do eu, sem esquecer dos odores fortes desses corpos tão hormonais e ainda não totalmente compreensíveis a seus donos. Odores comuns que se misturam a um apartamento que parece estar em decomposição e a um pai pouco afeito ao mundo prático e cotidiano.

Lúcio — sempre hipervigilante, sobretudo em situações cotidianas, que não suscitavam perigo — me ouviu. (pg 124)

Esse é um livro que fede. Depois de terminar essas páginas, a frase “o requeijão está estragado” nunca mais será lida ou ouvida sem que esse odor não venha até às narinas pronto para derrubar qualquer um em um nocaute. As descrições incomodam, ensinam o cérebro a fazer o caminho direto para o nojo, nos lembram que algo deve estar podre no reino da Dinamarca — ou da Nova Zelândia — e talvez até dentro de nós mesmos.

Essa é uma obra capaz de nos fazer voltar para cada um dos caquinhos que acumulamos na nossa formação, olhar de novo para aquilo que a gente costuma chamar de passado, mas faz parte de cada um mesmo quando a gente tem o hábito de jogar fora as coisas na hora certa. E também faz mais do que isso, porque Natércia descreve o que ninguém gosta de olhar, cria cenas úmidas que misturam elementos que poucas vezes vemos juntos e que por isso tornam essa história ainda mais próxima, interessante e, talvez, poética. E, desse mesmo modo, ela incomoda o leitor por mostrar a complexidade das coisas. Nada nesse livro é limpinho. Ou simples. Ou mesmo fácil de lidar. Igual crescer.

Lúcio, pai de Abigail, não sabe cuidar nem de si mesmo. É acumulador, neurótico, diz que quer morrer e que é muito bom sentir fome, mas também é amoroso e compreensivo com suas filhas. Confia nelas, inclusive. Conversa, apoia, dá autonomia, junto a uma perigosa passividade de sua parte. Lúcio não é um homem que abandona, é um negligente negligenciado, um cara que simplesmente não está bem. Juntos, os três sobrevivem.

De repente os dias pareciam mais leves, como se uma camada grossa de poeira espalhada sobre todas as coisas e sobre cada pensamento entulhado na minha cabeça tivesse sido sugada por um imenso aspirador de pó. (pg. xx)

O apartamento 402, em todo o seu caos, é uma extensão de Lúcio, a materialização de seus caquinhos se acumulam ali, juntando poeira, sebo e bicho. Ele tenta guardar todos os aspectos de sua vida ali, como se dessa forma, com tudo perto e (quase) visível, ele conseguisse encontrar algum sentido nessa sucessão de acontecimentos que nós não conhecemos bem, mas formam sua existência (logo, também a de suas filhas). E por serem partes essenciais da vida dele, elas também moldam seus quartos cada uma à sua maneira, com suas marcas de pés na parede, suas roupas sujas guardadas, um edredom sonhado ou mesmo com roupas emprestadas das amigas, um certo asseio e um maior nível de organização. Cada caos, uma tentativa de ordenação e registro dos caquinhos que surge como uma necessidade imediata de Lúcio e reverbera nelas.

Fiquei absorta por essa visão por um tempo indeterminado. O velho silêncio que nos unia, confirmando nossa proximidade, nossa vida cúmplice, mesmo que na maior parte do tempo nos comportássemos como frios inimigos debaixo de um teto recoberto de bolor” (pg.96)

“Os tais caquinhos” não é um livro fácil, sua fluidez angustiante e suja não funciona para quem tem estômago fraco. E eu nem falo isso por causa das descrições difíceis de digerir. Natércia construiu uma história que explora a feiura da adolescência, a naturalização da violência machista, a descoberta do eu e a espiral de autodestruição de um homem que sem querer leva sua amada filha mais velha junto a essa mesma lógica. E que, mesmo diante desse contexto, nos faz pensar que Abigail, Berta e Lúcio são uma família unida e em transformação, apesar dos pesares. Eles se amam e podem contar um com o outro. Eles se amam e querem ser melhores juntos. Eles se amam e por isso sobrevivem. Eles se amam… e acho que posso simplesmente dizer: “e ponto”.

Eu não tinha dito que o apartamento 402 era, apesar de tudo, um lar?

A casa dos outros, com seus cheiros adstringentes, lava-roupas trabalhando e geladeiras abarrotadas de produtos, não nos chamava mais. Queríamos o nosso escuro, o nosso casulo comum. (pg 129)

Observação: Cuidado! Ler esse livro pode te dar ânsia de vômito, fazer você pensar em gafanhotos como Clarice Lispector pensava em baratas e te levar a terminar o dia buscando no Spotify Marina Lima para ouvir em pleno anos 20!

Observação 2: Esse livro pode ter o efeito adverso de obrigar resenhistas sedentos por likes a passar minutos olhando fotos de gafanhotos para assim conseguir desenhar um só para fazer uma foto única para acompanhar a resenha/ensaio ainda a ser escrita. Foi o que aconteceu comigo. Espero não acabar sonhando com versões gigantescas desses bichos que Abigail “gosta” tanto.

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Ponciá Vicêncio: a memória é um vaivém de tempos e heranças

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Antônio Candido disse uma vez que o tempo é o tecido da nossa vida. Com essa frase, ele defendia o direito à literatura por considerá-la uma força humanizadora, uma forma de resistência ao capitalismo que se apossou daquilo que nos molda. A partir dessa perspectiva, penso que a memória é o nome que o tempo ganha quando é marcado pelas vivências, nossas ou dos nossos. Se tempo é uma palavra abstrata, de difícil apreensão, a memória talvez seja diferente. Enquanto palavra, sem qualquer outro complemento, a memória já evoca algo dentro da gente: uma história que alguém nos contou, uma cena, um momento, um fragmento daquilo que somos, do tempo que pertencemos.

Tempo também pode ser questão de segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses, anos, décadas, séculos e milênios, uma definição que tenta nos iludir sobre o grau de controle e conhecimento que temos de tudo isso enquanto humanos. Ou mesmo clima. O tempo pode estar ou não bom pra se sair de casa, fazer uma caminhada ou render uma boa colheita. O tempo assim parece mais simples, mais simples até que a memória. Parece definitivo, certeiro, algo que pode existir em forma de calendário. É um terreno perfeito para planos. O tempo é para nós também todas essas convenções, mas a memória é o nome que o tempo, em qualquer uma de suas concepções, ganha quando encontra um eu.

Ponciá Vicêncio, romance de estreia de Conceição Evaristo, existe, porque existe um tempo e ele é o tecido de nossas vidas. E as vidas se constituem e se constroem a partir da memória. E é seguindo essa lógica que a história da protagonista que dá nome ao livro se desdobra, mostrando que memória é o que nos forma enquanto indivíduos, ou personagens, mas é também o que nos liga aos outros, ao mundo. Somos o que nos é contado e também o que é silenciado, somos fruto de narrativas que envolvem muitas gentes, memórias e heranças, somos essa mistura entre eu e nós. Enquanto romance, essa história é sobre o tempo que circunda a existência dessa personagem que vive uma vida negra anos após a abolição da escravatura, mas sente em seu corpo, sua mente e em seu entorno o que restou da época anterior. E restou muita coisa e todas elas permanecem como uma herança dolorosa de um passado que não foi completamente embora.

Conceição Evaristo constrói essa narrativa e sua protagonista a partir de pedaços: costura retalhos — ou cola caquinhos — de quem foi Ponciá com a Ponciá do presente, enquanto, a partir dos laços familiares, monta um cenário mais amplo que o próprio tempo da protagonista. Ponciá se vê responsável por ser guardiã da memória dos seus e lembra, lembra e lembra, vivendo de lembrar. Estando longe e vivendo o que seu tempo reserva, é isso que resta. A memória se manifesta no enredo a partir dos fragmentos, das idas e vindas entre tempos, da trajetória que se conta nessa linearidade própria das lembranças, e, estruturalmente, vem também a partir da repetição de nomes, de cenas, de imagens, das percepções e sensações. Os nomes tão ditos são uma reafirmação de vínculo, de existência e um lembrete da negação da humanidade de muitos. Vicêncio é um nome que não é tão nome, é marca de um passado que insiste em continuar à maneira da branquitude.

A memória é para a protagonista um chamado, o que resta de uma subjetividade esmagada pelas faltas, pelas perdas, pela violência da vida, que é marcada por seu gênero, classe e cor. Nesse sentido, entre tantas coisas, chama atenção a saudade que ela sente de moldar o barro. A mão coça, ela diz. Ela precisa estar perto do rio, usando as mãos pra moldar essas memórias que são seu destino. Nisso me vem uma dúvida: memória também pode ser desejo? Se é possível ser assombrado pela falta, também existe o fantasma do querer. Volto então ao barro: as peças que Ponciá fez com sua mãe são reconhecidas em um passeio que seu irmão faz em um museu. Os nomes delas estão ali como criadoras, mas as peças pertencem a um nome desconhecido, o do proprietário. Parte da memória daquela família ainda está nas mãos de um outro alguém e é assim que é apresentada no espaço que se coloca como guardião da história, da memória.

O tempo é o tecido da vida, múltiplas linhas se cruzam e entrecruzam, formando uma malha que serve de cenário-personagem-enredo, que formam passado, presente e futuro, formam eus e nós. E talvez também eles. O tempo forma a memória e a memória é algo que não pode ser completamente destituído de uma pessoa, mas que ainda assim acaba no terreno da investigação e recuperação dependendo da sua origem, etnia, cor de pele. Conceição Evaristo então escreve essa história, porque lembrar, lembrar e lembrar, e depois contar, seja pela via da ficção ou não, é resistência, é força humanizadora, e também uma espécie de destino, porque essa história não é só a de Ponciá.

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Nas minhas andanças literárias, conheci Eisejuaz

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Pensar nos caminhos misteriosos que trilhamos para chegar a cada livro às vezes nos leva a descobrir que estamos investigando temas sem tomar consciência disso. Encontrei Sara Gallardo numa busca pessoal que envolve conhecer mais autoras argentinas, ou melhor, mais autoras latino-americanas, mas lendo “Eisejuaz”, único livro da autora traduzido para o português, percebi que fui parar em um outro lugar, um espaço muito mais amplo que envolve mais do que autor(a), territórios nomeados e personagens. Essa impressão, assim como essa procura, não veio do nada: caminhei para ela sem gps ou bússola, seguindo apenas pistas aleatórias que os livros que li foram me deixando.

Eu não sabia, mas “O mundo se despedaça” de Chinua Achebe e “Os rios profundos” do José María Arguedas me levaram até “Eisejuaz” e a investigação do que foi e é poder e na concorrência desleal de um com o outro. Eu poderia ter seguido uma linha reta, como a rota de uma viagem de avião típica, e chegado outra até essa obra da Sara Gallardo, mas minha leitura foi a partir desse lugar mais sinuoso, porque eu fiz essa viagem por terra nesse ano de 2021, levando um outro ritmo e um outro mundo de referências que incluem esses que nomeio e muitos outros, entre eles Ailton Krenak, Sônia Guajajara e Joênia Wapichana.

“Não tem lugar pra nós nem lá e nem cá. Lá o barulho dos brancos acaba com nosso alimento. Cá, nós se alimenta de peste e de miséria.”

Recém chegado no Brasil com tradução de Mariana Sanchez e edição da Relicário, mas publicado originalmente em 1971, essa narrativa, construída por Sara Gallardo a partir da entrevista que ela fez com um indígena wichí em 1968, continua necessária e, infelizmente, bastante atual e indo muito além do Chaco Argentino. Vide o Brasil e a grilagem, o Brasil e a Damares, o Brasil e o Bolsonaro, a pandemia e o genocídio indígena.

Mais do que um livro riquíssimo que nos faz pensar nos efeitos gerais do colonialismo e do racismo anti-indígena, essa é uma obra sobre o esforço de um homem para encontrar algum sentido em meio a dois mundos colidindo. “Eisejuaz” é sobre a insistência em tentar se encontrar e encontrar algo maior que a própria humanidade quando os parâmetros que o seu povo sempre seguiu não existem mais e as novas diretrizes te excluem e te exploram. O personagem que dá nome ao livro vive uma trajetória religiosa que surge em meio a isso e, a partir da sensação constante de deslocamento, falta de sentido e exclusão, se desenha. Essa é uma obra sobre ser estrangeiro em todos os espaços, inclusive às vezes até dentro de si mesmo.

“Um animal demasiado solitário devora a si mesmo.”

Com uma escrita poética, misteriosa e construída a partir de uma disputa de línguas e visões de mundo, Sara Gallardo nos coloca para pensar, também a partir das palavras torcidas de seu protagonista, no ensinamento da subordinação que está intricado no colonialismo e na dominação no todo e em como esses conflitos atravessam, de maneira violenta, todo um território. E mesmo com um protagonista homem, a autora explora como, em meio a imposição de uma sujeição geral, o jugo feminino se desdobra, misturando velho e novo, gênero, classe e raça.

Eisejuaz é Lisandro Vega, Este Também e Água que Corre. Suas várias vozes, angústias e seu espírito buscante interagem com um mundo que se despedaça e um outro que se impõe já com a desigualdade como base. Ler essa obra dói, porque nos faz pensar em solidão, desejo, tempo pertencimento, levando em conta também esse entorse social que parece estar sempre a um passo de romper contra o lado mais fraco.

“Nosso tempo terminou e o de todos os paisanos. Agora cada qual deve viver como puder.”

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Sobre o que liga garotas, mulheres e outras

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Ousado e bem pensado em todos os aspectos, “Garota, mulher, outras” da Bernardine Evaristo é uma obra relevante que mescla ousadia estética – com uma estrutura narrativa sem pontos finais, cheia de quebras e sem marcação de diálogos – com uma construção de personagens impecável e uma história fragmentada, mas bem coesa.

A partir de doze perspectivas, Bernardine constrói uma colcha de retalhos com histórias que, perpassando principalmente pelo tema da filiação, contam um pouco sobre a diáspora africana e a vida das mulheres negras na Inglaterra.

O livro questiona a ideia de que as experiências e características femininas ou negras são sempre as mesmas, mostrando personagens complexas, de diferentes idades e ideologias políticas e suas vivências, inclusive em relação umas às outras. Nesse sentido, chama atenção principalmente a professora homofóbica que tem como amiga mais antiga uma mulher lésbica com histórico militante e a idosa de 93 anos a favor do Brexit que acolhe e ama sue nete Morgan ainda que não compreenda seu gênero.

Essa relação entre identidades, relações humanas e dinâmicas sociais é construída a partir de uma narração que nos permite conhecer como cada uma das personagens fala, sente, se relaciona, pensa e vê o mundo. Com referências abundantes e uso variado da linguagem, a autora e sua tradutora Camila von Holdefer recriam a sensação da oralidade aproximando o leitor de cada uma das personagens. Toda essa intimidade assim exposta produz a sensação de uma conversa íntima e nos instiga como uma bela fofoca. Essa capacidade da autora em produzir proximidade pode chegar até mesmo a ser incômoda, mas é o que ajuda a afastar esse livro de ser lido somente na chave de um caprichado estudo de personagens para uma peça de teatro.

A sensação da leitura é de às vezes nos fazer sentir no meio de um tumulto de vozes e talvez por isso mesmo, vez ou outra e dependendo do personagem, o texto até lembre o Twitter. Bernardine explora como a linguagem diz muito sobre cada falante para construir as personas dessa história, optando por não descrever diretamente as particularidades de cada uma, mas mostrar as personalidades a partir de situações, reações e pensamentos, levando em conta como a escolha das palavras diz muito sobre origens, referências, gerações, amizades e até mesmo sobre como as pessoas querem se apresentar para o mundo. A importância desse critério ganha contornos especiais na história de Morgan/Megan, mas também se faz presente na construção das diferenças entre mães e filhas.

Como essa é uma narrativa focada nas experiências de mulheres diversas e uma personagem não-binária, todas relacionadas, ao menos indiretamente, com a imigração, a violência masculina, racista, lgbtqiafóbica e xenófoba faz parte da trama, sem, no entanto, definir suas personagens somente a partir desses fatos em comum.

Chama atenção também como a autora conseguiu conduzir tantas personagens a um evento em comum, evidenciando assim seus conflitos, contradições e diferenças, mas também suas semelhanças e o mosaico que compõe, de certa forma, a Inglaterra contemporânea e sua história.

“Garota, mulher, outras” é um livro recomendadíssimo, desses que mostram que a literatura é sempre política, seja a feita por Bernardine Evaristo ou por um homem branco aleatório falando sobre escrever, e isso não diminui seu poder, alcance e impacto, inclusive estético. Se literatura serve pra gente elaborar a vida e a condição humana, ela será marcada sempre por essa batalha entre identidade e alteridade que envolve a leitura mesmo entre os mais semelhantes.

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As tantas mulheres que passaram na cabeça de Maria Luiza Machado

Acervo pessoal – Foto publicada originalmente no meu Instagram

“Tantas que aqui passaram”, livro de poemas da Maria Luiza Machado é um catálogo poético de personagens femininas. Formado por 29 mulheres-poemas, essa é uma obra que nos coloca em contato com a condição humana das mulheres, enquanto também evidencia, de forma sutil, aspectos sociais e culturais que influenciam na construção dessas subjetividades muitas vezes marcadas por diversas angústias. Solidão, maternidade, trabalho, fé e relacionamentos amorosos e familiares são alguns dos temas abordados pela autora a partir de uma perspectiva íntima, que nos coloca em contato com os pensamentos secretos de cada uma dessas personagens.

Os poemas de Maria Luiza soam narrativos para os fãs de prosa e bons personagens e exploram repetições, pausas e alguns aspectos da oralidade, lembrando muitas vezes fluxos de consciência. A construção poética dos detalhes cotidianos expostos em alguns dos versos também chama atenção e ajuda a formar cenários e sensações, fornecendo uma espécie de lupa para quem lê. Lupa essa que nos ajuda a investigar um pouco mais de cada uma dessas personas que nos são apresentadas.

Como diz o posfácio de Monique Malcher, terminamos de ler esses poemas nos sentindo povoadas. Não sendo e sendo cada uma dessas mulheres que sempre nos lembram alguém, às vezes até a gente mesma.

“Tantas que aqui passaram” é sobre o universo que cabe em cada pessoa, uma obra que nos faz pensar no quanto semelhança e diferença constroem o universo da pluralidade e isso tem uma importância especial em um universo que insiste em impor padronizações.

O livro é uma publicação da Mormaço Editorial, editora independente fundada em 2020 e coordenada por Maria Luiza Machado e seu sócio Daniel Pasini. Ele foi diagramado e ilustrado por Isabela Sancho e viabilizado através de um financiamento coletivo. Esse é o terceiro livro da autora, que nasceu em 1995 em Feira de Santana na Bahia e mora em Salvador desde 2014. Os livros anteriores dessa jovem escritora foram: “Algumas histórias sobre a falta” (2018) e “Todos os nós” (2019).

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