Metrópole

Se sua agenda parece impossível de ser cumprida, você não tem ideia de como é o planner da Metrópole

Nova York pelo desenho do artista holandês Stefan Bleekrode — Saiba mais sobre ele aqui.

Sempre chego nas aulas de yoga mais cedo às quartas-feiras. O trânsito descomplicado, a velocidade do ônibus, a hora que saio do trabalho, o elevador já me esperando no andar, e todo o resto confluem para que eu consiga um tempo para respirar, bem no meio da semana. Toda coincidência parece mágica, mas uma que envolve tantos fatores só pode ser coisa do demo ou dos deuses.

Fui criada em lar católico, então nem de brincadeira consigo nomear esses 20 minutos sagrados de adiantamento de hora do diabo, como meus amigos adoram fazer. Apesar disso, gosto de cometer várias heresias, como falar de astrologia, entoar mantras e dizer que descobri a deusa Metrópole quando a dádiva da quarta-feira surgiu em minha vida.

Toda vez que o ônibus chega na hora exata, a Metrópole mexeu os pauzinhos para isso. Quando o despertador não toca e mesmo assim você acorda na hora certa, pode ser seu relógio biológico ou ela fazendo seu trabalho. Sabe quando você faz um caminho, diferente ou não, bem no horário de pico e não há muito trânsito? Não foi o waze, app nenhum te dá essa sorte toda. Se caiu um toró assim que você chegou em casa, a Metrópole te queria seco. O acaso cotidiano é presente dela. Ela é a deusa dos pequenos e raros milagres diários das grandes cidades. Pena que é uma só.

Se sua agenda parece impossível de ser cumprida, você não tem ideia de como é o planner da Metrópole. Só a parte de Belo Horizonte consta 1,433 milhão de linhas, uma para cada pessoinha que mora aqui de acordo com o censo de 2010.

Metrópole não trabalha com um destino definido ao nascer. Seus estagiários observam as pessoas, notam as possibilidades de encontros e desencontros e fazem relatórios que são repassados para a chefia, ela. Com as informações reunidas, ela faz mágica com o que tem no dia e só. Todos os funcionários estão sobrecarregados. É por isso que parece que ela se esquece da gente às vezes e há dias tão melhores que outros.

Quando sento na sala de espera da yoga, penso na Metrópole, seus estagiários e em todo o caos que ela governa. Sempre me pergunto se a deusa do cotidiano tem alguma folga, alguma noite em que pode sentar com seus gatos e tomar vinho enquanto lê um livro. Provavelmente não, já que está aqui e também em Tóquio, em Buenos Aires, Londres e Lagos.

De repente, eu nem me lembro mais dela e vou ler revista de fofoca, escrever umas baboseiras no caderninho que anda comigo, comer a trufa que comprei na hora do almoço e imaginar a vida de alguém que vi passar pela porta.

Quando percebo, o tempo acabou mais uma vez. São só vinte minutinhos.


Esse texto foi originalmente publicado na newsletter “Crônicas da Vida Alheia”, projeto que eu tinha com a Ana Squilanti. Agora eu tenho uma newsletter só minha. Se interessou? Clique aqui e assine.


Este texto foi publicado na iniciativa Mulheres que escrevem. Esse é um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como visibilidade, abrir novos diálogos entre autoras e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras.

Mulheres, poesia e a internet

Foto arquivo pessoal — A capa e as ilustrações do interior do livro foram feitas pela Laura Athayde — Adquira seu exemplar aqui.

se enganam os que não sabem
que a literatura também é uma arma

a mais carregada
a mais poderosa
tanto que os livros que um dia foram incendiados
ficaram — Ryane Leão

Seja na literatura ou nas artes plásticas, as mulheres nunca foram vistas como criadoras. Por séculos, fomos vistas ou como musas inspiradoras ou como mero suporte doméstico. Algumas poucas conseguiram o feito incrível de não serem apagadas na vida e na história e seus nomes são exceções em meio a tantos homens. Entre elas, Wang Zhenyi, uma erudita chinesa que nasceu em 1768 e escreveu poesias sobre injustiças, textos sobre trigonometria e explicações sobre eclipses, e a poeta e filósofa Christine de Pizan, italiana que nasceu 1363 e chamou atenção dos mecenas. Em seus escritos, Christine de Pizan teceu duras críticas ao machismo presente na literatura e defendeu a educação para as mulheres.

Por muito tempo, as mulheres fizeram parte da arte e da literatura através das gretinhas das portas e janelas da grande sala do cânone. Vez ou outra, uma conseguia passar por esses espaços minúsculos e adentrava na sala, sem, entretanto, ser vista como igual ao restante. Em pleno século XXI, a lógica masculina e branca segue em vigor. As gretas aumentaram de tamanho, mas ainda são apenas gretas. Nem mulheres e nem homens não brancos entram pela porta da frente, eles ainda precisam se espremer para conseguir passar pelos buracos e, enfim, entrar. Vez ou outra uma mulher branca consegue adentrar pulando a janela que alguém esqueceu aberta e logo tratam de dar um jeito de fechá-la pra ninguém mais conseguir invadir.

Recentemente, bem ao lado da grande sala do cânone, surgiu um outro espaço: a internet. Bem mais fácil que entrar que a salinha, as redes se tornaram uma maneira de expor trabalhos e conhecer novos artistas e escritores e hoje vivemos um momento de efervescência de mulheres que escrevem, principalmente poesia. Quem só entrava na salinha com sorte, esforço e através das frestas, começou a construir um novo espaço.

Rupi Kaur, Nayyirah Waheed, Ryane Leão e outras encontram nas redes sociais um público que buscava algo como o que elas fazem. Uma poesia certeira, apesar de curta, que fala sobre o que toca. Todas elas abordam questões que antes eram silenciadas de acordo com suas vivências e inspirações. A gente vive um momento na literatura que encoraja mulheres a dividirem o que sentem, pensam e passam. Uma onda de mulheres que se fortalecem na escrita e na voz umas das outras.


você me matou
mas não conseguiu
arrancar do meu peito
a minha vontade louca
de renascer — Ryane Leão

Com Tudo nela brilha e queima” nas mãos, percebi já na orelha que muitas poesias de Ryane Leão já eram grandes conhecidas minhas. Parte da minha timeline lê, compartilha, curte e comenta o trabalho da autora da página “Onde jazz meu coração”.

“Poemas de luta e amor” é o subtítulo do livro. Essa frase traduz muito da nossa época. A internet fez o feminismo e temas como relacionamento abusivo, cultura do estupro e autoestima feminina virarem assuntos comuns em conversas de mulheres. As poesias da autora são um convite para que a gente olhe para nós mesmas e servem como um guia para muitas conseguirem enxergar e nomear as dores causadas pelo machismo e até pelo racismo nas experiências atuais e do passado. Além disso, Ryane Leão, sendo lésbica, também conversa, ainda que muitas vezes de forma indireta, sobre essa temática, mostrando que luta e amor são questões que precisam ser levantadas por vieses não heterossexuais.

Os relacionamentos afetivos ainda são para muitas mulheres um espaço em que a violência, a discriminação e o preconceito passam batido por causa da naturalização. Fomos ensinadas que precisamos de um homem ao nosso lado, que nosso valor está no homem que conseguimos agarrar e que a gente precisa aceitar certas coisas para não ficarmos sozinhas. Ryane escreve contra essa naturalização e suas linhas servem como lembretes da importância da autoestima e da autonomia. Ela fala de amor e paixão, mas lembra seus leitores que o amor próprio também é algo a ser buscado.

A estrutura da poesia de Ryane é bem simples, o que pode incomodar os mais puristas, mas o que chama a atenção mesmo é a mensagem dela para as mulheres, especialmente as negras. Ela fala em ancestralidade, identidade, autocuidado, força, voz e empoderamento. Ela acredita na potência das leitoras mesmo sem conhecê-las e o sucesso do que ela escreve mostra que isso pode ser algo revolucionário para quem lê.

quando
me toco
descubro
minhas margens
desconstruo
minhas normas
desnudo meus
contornos

são meus dedos
fazendo a poesia
que leva meu nome
no título. — Ryane Leão


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O mundo das letras

Imagem do jogo Scrabble

Numa sucessão de golpes e de candidatos falastrões que odeiam minorias conquistando o poder, chegamos até aqui. Depois de tantas maracutaias para passar reformas, apoiar guerras e explorar pessoas para fazerem roupas de pouca qualidade, o capitalismo entrou em colapso. A descrença fez surgir na população cinismo, medo, memes e luta, e o resultado disso foram anos e anos em que o mundo foi dominado pelo aleatório.

Nessa época de transição, todos os atores acreditavam fielmente que faziam algo de fato, mas a maioria apenas agia de modo automático. Em busca de um pouco mais de igualdade, alguns lutaram e forçaram a aleatoriedade para transformar o capitalismo em outra coisa, num sistema que parecia mais justo, mas que acabou também se baseando na meritocracia e na sorte de nascer na família certa, no lugar certo.

O dinheiro se transformou. Inicialmente as trocas substituíram as notas e as contas correntes. A intenção era que voltássemos a viver com um senso comunitário aflorado, mas o fim do capitalismo não derrubou os privilégios e o poder totalmente, já que nunca houve uma ruptura de fato, e a antiga elite conseguiu influenciar na construção desse novo mundo. O dinheiro passou a ser a pontuação que o indivíduo conseguia jogando Scrabble. A antiga — e nova — elite dizia que a sorte em tirar a peça da letra certa tornava o sistema aleatório, logo, justo, mas ignorava que o conhecimento das palavras existentes e alguns lugares no tabuleiro continuavam inacessíveis para parte da população.

O mundo passou a ser dividido de acordo com os idiomas. Algumas línguas não se adaptaram bem ao jogo e hoje servem só para serem faladas, o que, na prática, é inútil na hora de fazer dinheiro. Acredito que esses idiomas desaparecerão com a morte de seus falantes, já que a língua agora serve ao utilitarismo. O inglês e o espanhol são as moedas de maior força, mas o português até vai bem, já que a China o adotou por influência de Macau e da agridoce aleatoriedade.

A elite é composta por quem consegue formar, com frequência, palavras usando todas as letras do banco e por aqueles que nasceram em lotes de palavras duplas ou triplas. O tabuleiro continuou o mesmo, mas criaram um mecanismo para definir onde cada jogador nasce nele. O jogador participa do jogo de acordo com o local em que mora na vida real, o que coloca a periferia sempre nas áreas com poucos bônus. Alguma coisa mudou?

Sou classe média. Muitas vezes nasço numa letra dupla ou tripla e por isso treino horas e horas fazendo palavras com letras como Z e X, de preferência. Como nem sempre a sorte ajuda, treino bastante as letras Q, V, F e outras que também pontuam bem.

O sistema político e jurídico também sofreu modificações, mas essas ainda estão em curso em todo o mundo. Até então, no Brasil, tivemos apenas uma eleição, que foi decidida através do programa Soletrando, apresentado pelo Lúcio Hick, num canal de Youtube braço da emissora Lobo. Lúcio se tornou uma espécie de mesário bem popular e que anda de táxi nas horas vagas. A produção do programa tem algumas atribuições do antigo TSE e os espectadores, como eu, acham que fiscalizam todo o processo. Teoricamente, se a gente notar alguma coisa estranha, a gente leva para a justiça e ela decide através de análises que envolvem linguistas, gramáticos e nossos votos. Ainda não aconteceu, provavelmente vai rolar algo nas eleições regionais, por elas serem mais numerosas. Não há mais eleições municipais, porque é impossível para o Lúcio Hick apresentar tudo, né?

Quando eu era criança, uns quarenta anos atrás, eu era a única pessoa fascinada por sopa de letrinhas que eu conhecia. Eu sonhava com esse alimento, mas na vida real só encontrava letra em livro e no prato apenas argolinha, Ave Maria, conchinha, espaguete, Pai Nosso e até penne. Agora, a sopa de letrinhas é o antigo feijão com arroz e sofreu toda espécie de gourmetização possível para se tornar o grande destaque dos cardápios dos melhores restaurantes. Sigo fascinada, já que agora a gente encontra até bago de feijão em formato de letra.

Para quem nasceu no fim dos anos 1980, como eu, é bem divertido ver os novos rituais que surgiram. Para mim, mineira do interior, o mais engraçado é a mudança das cerimônias cristãs. Hoje, durante a Crisma, a galera come pedaço de dicionário embebido no vinho para fortalecer a fé e o seu conhecimento.

Estranho uma das minhas antigas diversões ter se tornado isso. Nos dias de hoje trabalho para receber letras coringa, bem elas, que sempre quis evitar usar porque antes não valiam nada, a não ser a chance de colocar uma palavra maior. Hoje o coringa vale muito e, se antes tinha que se pensar muito antes de usar, agora tem até curso que ensina a hora certa. O mundo é outro, mas também é um pouco do mesmo que vivi. É a mesma época, são as mesmas gerações e a cultura foi pouco modificada. O Scrabble não é mais só um jogo de tabuleiro, é o jogo da vida.


Texto escrito com base em tweets que fiz em minha conta pessoal em Maio de 2017.


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Peripécias cotidianas olhadas com uma lupa

Elena Kalis — Underwater Fairytale

Da rodoviária de Montevidéu, peguei um táxi para meu destino. O motorista era um senhor idoso bem vestido, apesar das peças de roupa aparentarem serem bem antigas, assim como seu carro. Com as malas guardadas e o endereço informado, seguimos.

Assim que o veículo ligou, o aparelho de som começou a tocar “Sabe tchururuuuuu estou louco pra te veeeeeer, oh yessss, sabe tchururuuuuu entre nós dois um querer, eie…”

Entre os “tchururu”, os “olha eu te amoooo e quero tantoooooo beijar teu corpo nuuuu” e a informação prévia de que vivemos uma crise em nossa republiqueta, percebi como o Brasil anos 90 ainda vive até mesmo fora do país.


Quando eu era bem criança, minha mãe me disse que íamos para Belo Horizonte conhecer a Mônica. Esperei essa viagem com toda a ansiedade infantil que conhecer um ídolo pode causar. Chegando lá, descobri que Mônica, prima da minha mãe, não era a personagem dos gibis e sim uma mulher bem alta.

A decepção foi óbvia, mas a surpresa com o tamanho foi maior: “Nuh, que Monicão!”, eu falei.


Os pontos de ônibus das cidades servem como ambientação de diversas histórias. Na Curitiba, entre Augusto de Lima e Guajajaras, eu vi histórias de amores passageiros começarem com trocas de olhares apaixonados e terminarem com um dos amantes entrando no ônibus antes de qualquer “oi”. Parada ali, esperando o ônibus passar, também fiquei sabendo de roubos que rolaram no dia anterior e, com a contribuição de dois reais, fiz parte do momento em que um homem, em situação de rua, conseguiu adquirir um radinho para o grupo que fazia parte.

Uma vez, esperando ônibus às 06:40 da manhã nesse mesmo ponto, vi o amarelinho se aproximar vazio para o horário. Acenei, ele diminuiu a velocidade e passou por mim bem lentamente. O motorista me encarou, olhou no fundo dos meus olhos e acelerou. Diante desse sadismo cotidiano, o que pude fazer foi rir enquanto anotava a placa do veículo para fazer a denúncia mais tarde. Também sei ser sacana e transformar situações comuns em histórias de vingança


Muitos romances, filmes e até mesmo as novelas que passam na TV nos sugerem que a vida é feita de grandes emoções e momentos grandiosos. A verdade é que, na maioria das vezes, a maior emoção da semana é encontrar a cozinha e a área alagadas porque o cano da máquina de lavar saiu do lugar.


Nasceu uma afta na pontinha da minha língua e o meu medo agora é dar com a língua nos dentes.


Abri os olhos com preguiça essa manhã. A noite foi difícil. Acordei várias vezes durante a madrugada e, numa delas, descobri que fui servida como prato principal para um grupo bem numeroso de pernilongos famintos.

O despertador tocou novamente. Levantei relutante e fui ao banheiro. Ao me olhar no espelho, acabei me achando bem parecida com o Luan Santana. Com estranhamento, percebi que minha transformação no cantor sertanejo estaria completa se eu fizesse um coque desses que os caras estão usando e quase ri quando notei que meu cabelo está no comprimento ideal para isso. “Estou virando um galã feio!”, pensei enquanto encarava incrédula minha nova imagem.

A estranheza do momento passou quando cocei os olhos, embaçados pelo sono e pela miopia, e me percebi sem óculos.


Resfriada, cocei os olhos. Seria algo comum se eu não estivesse com o dedo sujo de molho de pimenta. O nome do molho? Brasinha.


Meu corretor troca Bolsonaro por Bolasterona sem eu nunca ter escrito isso na vida e eu fico rindo porque esse é o nome de um anabolizante descrito no google como uma droga ineficaz, muito perigosa e que deve ser evitada.


— Que barulho é esse, Thaís? Você ouviu?
— É jumento.
— Mas o som tá vindo aqui do banheiro!
— Ah, é jumento mesmo. Deve tá lá fora.

(Segundos depois, a gente descobriu que era a torneira da pia do banheiro e eu ri ainda mais porque o Lucas falou “tá vendo? Não era um jegue”)


Minha mãe acabou de me ligar para me contar que ela e o Billy, nosso doguinho, foram entrevistados quando faziam caminhada.

Minha mãe disse que perguntaram se eles faziam exercício sempre e ela respondeu que andam juntos todos os dias.

Reagi:
— Uai, o Billy não latiu nada não? Deixou você falar por ele? Não me parece muito do feitio dele isso não, hein?
E ela respondeu:
— Fora de casa ele é tímido.


Sábado vivi uma cena que caberia perfeitamente em um desses seriados de comédia que explora os pequenos absurdos do cotidiano como fonte de humor.

Um pouco antes de sair para comer canjica, dançar forró e curtir amigos, liberei o Billy, cão da minha família, para brincar um pouco na varanda. Enquanto ele mijava, cheirava tudo, corria e conferia se não tinha nenhuma lagartixa para caçar, fui me arrumar para a festa junina que me esperava.

Minutos depois, quando eu já estava com o rosto corado de blush, com minhas sardas falsas feitas, meu chapéu de palha com babadinho branco na ponta posicionado, meu cabelo em maria chiquinha na cabeça e vestido xadrez no corpo, corri para a varanda após ouvir o Billy, que é uma mistura de pinscher com chihuahua, logo muito barulhento e estridente, latir enlouquecidamente.

Ali me deparei com um cão, todo branquinho, peludinho, escovadinho e usando uma gravatinha xadrez fofíssima, rosnando, latindo e pulando na grade contra o Billy e Billy, tão bonitinho quanto, mas com certeza menos limpo, latindo de volta todo feroz. Antes de perceber o ridículo da situação, me envolvi nela e passei a correr, toda fantasiada, atrás do Billy mandando ele entrar logo em casa.

Todos estávamos muito irritados, inclusive eu pedindo silêncio. Todos estávamos muito pequenos, como sempre, e especialmente fofos, inclusive eu, que ralhava e perseguia o Billy que corria para onde cão felpudo com gravata ia.

A cena deve ter sido magnífica para os desavisados que passavam na porta curiosos com aquela barulhada.


O interfone tocou, eu atendi e o seguinte diálogo aconteceu:
— Quem é?
— Lucas?
— É você, amor?
— Uber Eats para o Lucas. (som de risadinha abafada)
— Ok. Tô indo pegar para ele. (som de constrangimento disfarçado)

Eu sou muito boa em passar vergonha, né?


Um dos meus erros preferidos de digitação e fala é chamar a tetralogia napolitana da Elena Ferrante de tretalogia.


Segundo minha mi band, hoje eu dormi melhor que 99% dos usuários. Venci a corrida de melhor dorminhoca do mundo.


Acordei com um estouro. Um gato jogou uma garrafa de Mate Couro no outro. A primeira coisa que fiz no dia foi tacar shampoo de banho a seco em um gato encharcado de refrigerante.

Tagore completamente ensopado de refrigerante ainda tentou fugir para debaixo da cama quando viu que queríamos pegá-lo. Paramos o bicho já quase em baixo do edredon. Agora ele se lambe todo, enquanto Adelaide nos observa de longe com uma expressão que diz “o que foi que eu fiz?”. Ela sabe que a situação foi criada por suas próprias patas.


Achei que tinha um vizinho distante cantando ópera na janela, mas é só uma Live do Bocelli em alto e bom som aqui do lado mesmo.


Minha mãe acabou de me mandar pelo WhatsApp um vídeo da minha vó. Pela data e pelas envolvidas, pensei que ia vir uma mensagem religiosa junto com palavras de conforto e saudade, mas no lugar veio um feliz Páscoa que uniu abraços virtuais para todos com um vídeo de recebidos de chocolate.


Decidi que vou fazer tai chi chuan, para a alegria do meu pai que defende a prática mais do que tudo, simplesmente porque ele me mandou um vídeo chamado “perfumado” que ensina movimentos com nomes maravilhosos como “dragão abana a cauda”.

VOU ABANAR MINHA CAUDA DEMAIS HOJE, AMIGUES

e não é dançando funk, é fazendo um movimento muito lento, muito lento mesmo, com os braços


Minhas habilidades na cozinha são bem na média: dá pra passar de ano, mas vez ou outra sou aterrorizada pela possibilidade de recuperação.


Tem hora que acho que estou sendo a própria Feiticeira com sua clássica mexidinha no nariz e na verdade eu estou é fazendo careta e explorando todos os limites dos meus músculos faciais. Tudo para tentar não me encostar. A rinite não dá trégua nem em tempo de pandemia.


Toda hora que lavo as minhas mãos, canto mentalmente “Dorime” em ritmo de forró, acabo dando uma dançadinha e me sinto vivendo num filtro de stories do Instagram e não no meio de uma pandemia.


A sinfonia da chuva tem vários sons característicos que todo mundo adora lembrar na hora de escrever ou contar caso, entre eles, o que tem mais cara de crônica é a barulhada de todo mundo correndo para fechar as janelas o mais rápido possível.

Ouso dizer que a movimentação humana para tirar roupa do varal, fechar as janelas rapidamente e outras atividades correlatas que unem chuva, urgência e cotidiano conseguem chamar mais atenção do que o barulho dos animais da vizinhança. E olha que pet tem carisma.


A crise na construção civil pode ser facilmente resolvida comigo fazendo uma tour pelo país. Se eu preciso de silêncio, todos ao meu redor conspiram para fazer uma reforma.


Todas as minhas histórias de terror terminam comigo descobrindo mais uma vez que aqueles sons estranhos que pareciam gemidos ou sussurros vinham da geladeira.

(Infelizmente a geladeira da casa dos meus pais, a grande protagonista dessas histórias, foi vendida e agora temos uma geladeira estranhamente silenciosa que acaba sendo mais assustadora que a barulhenta. A gente se acostuma com tudo mesmo, né?)


Acabei de ver uma mulher mais velha bem séria usando roupas “de adulta” saindo do trabalho, mas na blusa estava escrito “quebre as regras” em inglês e agora não consigo parar de imaginá-la obrigada a fazer um curso de compliance por causa dos comportamentos que ela incentiva talvez sem saber.


Eu adoro que a função real do vigia da padaria que frequento é a de acariciador de cães dos clientes.

Enquanto as pessoas compram pão e lanches, ele mima os pets.


Tenho me sentido um enorme clichê. Meu bloco de notas do celular está repleto de poemas sobre o fim do mundo e a minha cabeça não se cansa de produzir histórias de distopias que se passam no agora, agorinha.


Curte ler e ouvir “causos”? Então, confira meus textos “Janela indiscreta”, “O caso do homem explicador” , “Ainda bem que eu estava de botas” e “O brilho no olhar da mina que sempre vem comer coxinha”.

Todas as histórias postadas nesse texto foram publicadas originalmente na minha página do Facebook ao longo do tempo. Tenho copiado aqui histórias muito mais recentes do que a data da publicação desse texto. Se você gostou, me acompanhe também no Facebook, Twitter e Instagram.

Assunto: Um cotidiano transformador

Para: lisatsilveira@empresaficticia.com.br e outros 57 contatos.

Poltrona bonita by namedesignstudio on Etsy

Tudo começou há uns dois meses atrás, cheguei em um restaurante sozinha e tentei chamar o garçom várias vezes sem sucesso.

Eu olhava para o garçom, que me ignorava, e tinha certeza que se surgisse moscas, ele daria atenção para elas e não para mim. Sabia, inclusive, que se ele notasse um pernilongo, ele mataria para só depois conferir se era ou não um aedes aegypti. Ali, eu era mais invisível que um inseto.

Meu namorado chegou e o garçom veio todo solícito. Só registrou meus pedidos quando o meu parceiro os repetiu. Fiquei visível por um único momento: quando a Coca Zero do meu namorado chegou. O garçom a colocou na minha frente e eu pensei “Ele já não me vê e quer que eu diminua ainda mais?”. No fim desse dia, minha mobilidade estava prejudicada. Eu senti meus ossos mais duros, menos flexíveis, menos móveis. Minha bunda estava quadrada quase no formato da cadeira em que passei o jantar sentada.

Depois, durante uma happy hour com o pessoal do trabalho, essa sensação se repetiu de forma ainda mais intensa. Sentei na mesa com Marcos e Guilherme para ver um jogo do Atlético na TV e, toda vez que eu fazia algum comentário, eu me sentia invisível como eu estive para o garçom. Durante o intervalo do jogo, eles conversavam entre eles sobre o primeiro tempo como se eu não estivesse ali falando. Em algum momento dessa noite, olhei de relance para meu reflexo no vidro e me vi transformada numa cadeira de bar.

Hoje aconteceu de novo. Eu estava numa reunião do trabalho apresentando alguns relatórios, análises e ideias. Todo mundo olhou para mim e me ouviu até que eu sentei na mesa. Quando terminei, Guilherme se levantou e apresentou seus dados. Quando Michele foi fazer o mesmo, meu chefe não percebeu a presença dela e seguiu a reunião discutindo os pontos levantados pelos funcionários anteriores. Incomodada e sem graça, ela se sentou novamente, coisa que só eu pareço ter visto.

A reunião seguiu e meu chefe começou a falar dos meus relatórios, análises e ideias como se fossem conclusões do grupo e não minhas. Quando fui me manifestar sobre, notei que tinha perdido a voz.

Eu gritei sem sair som, gesticulei e quando fui me levantar, percebi que minha bunda e minhas pernas agora eram feitas de um estofado macio. Desesperada, olhei para Michele e ela tinha se tornado uma linda poltrona estampada.

A reunião acabou e todos saíram sem perceber nossa ausência.

Ainda tenho cabeça, braços e mãos e consigo escrever esses estranhos acontecimentos em meu computador. Mas me pergunto até quando, já que mais cedo ou mais tarde alguém vai acabar sentando em cima de mim como acabaram de fazer com a Michele.

Logo, meu nome deixará de constar nos documentos de recursos humanos da empresa e uma poltrona elegante assinada por Carla Silva Cunha e José Costa Madeira, meus pais, será incluída no ativo não circulante da firma.

Quando eu terminar de virar poltrona, eu serei azul marinho com poás pequenos e brancos. Estou na Av. Afonso Pena, no prédio 1208, 3º andar, sala 12. Acredito que voltarei ao meu formato humano se alguém falar meu nome ao me ver poltrona.

Me ver é essencial para que eu volte a ser gente. Me ajudem.

Atenciosamente,

Marília Cunha Madeira.

mariliacmadeira@setorempresarialficticio.com.br

PS: isso não é uma pegadinha.

Enviado às 16:32, 12 de abril de 2017.


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sou dessa laia

sou da laia das mulheres odiosas
das que levantam a saia quando querem
e se metem onde não devem

sou da laia das que racham o silêncio
e não engolem palavras afiadas
nem respostas
nem histórias

sou da laia das tagarelas, matracas, faladeiras
das que não subestimam seus desejos
e enchem a boca para dizer sim e não

sou dessas com quem nem o diabo pode
da laia das degeneradas, corrompidas, decadentes,
menos mulher por achar que é gente

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Tomate

Ilustração minha. Descrição: vários tomates feitos de canetinha soltos pela página.

Não sou suave, sou pesada e mais densa que a água.

Nas profundezas, eu habito. Aqui rio, canto, choro, vivo, amo e morro, enquanto mergulho num líquido que mais parece um molho.

Viajo no escuro, entre o medo e a coragem e sentindo gosto de tomate.


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A mulher sacrificada

Fotografia da página 13 do livro “Eva Luna” da Isabel Allende.

Coloco o despertador para tocar às 05:40, me levanto, escovo os dentes e corro para a cozinha para ajeitar o café dos outros. Estendo a toalha de mesa, faço café, posiciono as xícaras com seus pires em frente a cada cadeira, coloco os pães comprados ontem em cima da mesa junto ao leite e requeijão. Arrumo os talheres ao lado de cada xícara. Enquanto eu ajeito a mesa, eu como um pouco.

Todos acordam e vão para a mesa. Felizmente, dessa vez eu não tive que acordar ninguém. Corro para o banho e de lá ouço as crianças entoando o pai nosso junto com ele. Primeiro é o protetor solar e depois se inicia o ritual de passar maquiagem, faço isso porque me aconselharam na Firma a dar um jeito nessa cara de cansada. Agora todo dia só saio depois de construir minha pele saudável, meu rosto corado e minha beleza natural. Sem jamais passar um batom vermelho, claro.

Acabo de rebocar minha cara às 07:20 e calço um sapato desconfortável com um saltinho para me deixar elegante. Me disseram que o salto era necessário para passar um ar mais profissional e completaram, entre risadinhas, “salto é um sacrifício necessário pra ficar bonita, né?”. Tudo pronto, já é hora de sair de casa. Quando chego na porta, ele sempre diz “guarda as coisas na geladeira e deixe as xícaras na pia pra mim, tô atrasado”. Inspiro, expiro, penso em Dalai Lama, dou meia volta, vou para cozinha e guardo tudo.

Consigo chegar no trabalho na hora quase sempre. Por sorte, o ônibus acaba atrasando alguns minutinhos para passar e eu consigo pegá-lo. Antes da catraca, eu já sinto os calos da corrida que fiz para chegar no ponto. Sempre saio atrasada, porque sempre pedem algo a mais. Passo a manhã fazendo o meu trabalho e dando uma mãozinha para os colegas. Você sabe como é, né? Homem precisa de uma ajudinha sempre. Não conseguem pegar água, nem cafezinho e nem pedir o almoço sem chamar uma mulher. Quando me vejo, estou me desdobrando em duas para trazer o copo de água para o Fulano e entregar o serviço às quatro. Enquanto faço o meu, alguém me grita dizendo “preciso de um olhar feminino, vem cá, Marta” e eu me levanto para dizer que tá tudo ok, porque ai de mim se eu falar que faltou alguma coisa.

Volto para casa num ônibus lotado, ele me liga e diz “você pode passar na padaria, tô muito cansado”. Eu digo que sim, desligo e a chuva começa a cair. Mando uma mensagem no Whatsapp falando “Está caindo um toró, não dá mesmo para você passar na padaria?” e a resposta que vem diz “Marta, que saco, hein? Não dá pra te pedir nada que você arruma uma desculpa depois”. Leio, respiro fundo, abafo o grito e digito “ok, pode deixar comigo”.

Chego ensopada em casa com o saco de pão. Antes de entrar, retiro o calçado para evitar que eu tenha que passar pano. Abro a porta e encontro várias pegadas de sapato molhado em toda a sala. Não sei quem fez, mas sei que sou eu que vou limpar. Vou para o banho direto, foda-se o chão molhado, foda-se a louça da manhã que tenho que lavar, foda-se! Não vou ficar com a roupa encharcada assim! Não quero adoecer.

Saio do banho, lavo a louça, seco o chão molhado. Depois falo para as crianças que já é hora de fazer dever de casa e faço vários sanduíches, porque ninguém daqui gosta de jantar. Enquanto a gente come, eu alerto meus filhos que já passou da hora de tomar banho. Explico que é para irem logo, sem enrolação, e quando o primeiro entra no banheiro, eu finalmente deito para começar a leitura do meu livro da vez. A ficção é o meu refúgio. Tudo acontece quase sempre igual, só muda o livro. Hoje é dia de começar Eva Luna, da Isabel Allende, bebê!

“_Está é a Santíssima Virgem Maria — disseram-lhe.

_ Ela é Deus?

_Não, é a mãe de Deus.

_Sim, mas quem manda mais no céu, Deus ou a mãe dele?

_Cale-se, insensata! Cale-se e reze! Peça ao Senhor que a ilumine — aconselharam.”

Leio esse trecho, fico encarando a página do livro até meus olhos embaçarem e me perco em devaneios de como seria o mundo se ele fosse feito por uma Deusa. Imagino como seria se quem mandasse no céu, no inferno e na Terra fosse Ela. Nesse mundo eu não teria que interromper minha leitura para fazer um cafezinho novo para ele.

No mundo que eu vivo, a gata borralheira casou-se com o príncipe e só ficou livre de limpar o castelo porque outras mulheres passaram a fazer para ela. Ela não precisa mais usar uma vassoura, mas continuará tendo que dizer sim ao que o Sr. Príncipe pedir.

Submissão, obediência, servidão, sacrifício, punição. Me disseram que todo infortúnio que acomete as mulheres é culpa de Eva, que os nossos dias tem que ser feitos de sacrifícios para que, no futuro, a gente seja perdoada junto com ela. No íntimo, sei que jamais seremos absolvidas por eles.

Ouço vozes, vejo que estão me chamando. Fecho o livro até mesmo sem marcar e levanto correndo. Sou chamada de egoísta porque falei “estou lendo, você não pode fazer isso sozinho?”. Sinto medo. Sinto culpa. Sinto raiva. Vou direto para o filtro de barro, deixo a água cair no copo e bebo tudo bem devagar. Expiro, inspiro, expiro, inspiro e concluo que eu preciso parar de esperar o perdão de Eva, porque se ele vier um dia, será na morte. A redenção não vai vir sozinha.

Aproveito que sou acostumada a ser silenciosa demais por viver me escondendo e, enquanto ele vê TV, eu faço a mala e depois a escondo debaixo da cama. Sem que meus filhos percebam, já separo algumas mudas de roupa deles e as ajeito nas mochilas, enquanto os ajudo a guardar os brinquedos. Eles me pedem para contar uma história e eu sento entre as duas camas e conto sobre a feiticeira que envenenou aqueles que tentaram fazer maldade com ela e os filhos. Antes de dormir, minha filha me pergunta se a feiticeira era boa ou ruim e eu digo que um pouco dos dois, como quase todos nós. Explico que alguns são bem mais ruins que bons e que a feiticeira não é uma dessas pessoas, a maldade dela é só uma defesa contra quem é realmente muito ruim. Deixo as mochilas bem evidentes ao lado da cama deles, como se eles fossem levá-las para a escola. Vou para cama e deito ansiosa para a hora de acordar. Amanhã tudo vai começar a ser diferente.

Levanto e faço tudo sempre igual, minto que estou de folga e ofereço para levar os meninos para o colégio. Rindo, ele diz “Opa! Hoje a senhorita resolveu fazer alguma coisa?”. Minha vontade é espatifar o pires na cabeça dele. Inspiro, expiro, relaxo e espero ele sair de casa. Pego minha mala e as mochilas, enquanto os pequenos fazem muitas perguntas que eu opto por ignorar. Antes de sair, faço uma trouxinha com as comidas da dispensa, quebro a TV, pego toda a grana que ele guarda numa gaveta e escrevo com um batom vermelho no espelho do banheiro do nosso quarto: “Não ouse vir atrás da gente. Meus olhos seguirão todos os seus passos para o resto de sua vida. Se eu desconfiar que você está perto demais, te mato com a faca que levei da cozinha”. Tranco a porta, jogo a chave fora e sigo para a rodoviária. Hoje tudo começou a ser diferente e sei que só vou sentir falta do meu filtro de barro.


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Participei do concurso literário Leia Mulheres + Sweek Brasil com esse conto, ele não foi um dos vencedores, mas foi considerado um dos destaques entre 840 textos.

Minha amiga tecnologia

Ilustração minha. Arquivo pessoal.

Você já leu Harry Potter? Você lembra do Arthur Weasley, o pai do Rony? Lembra do quanto ele era aficionado com as tecnologias trouxas? Eu sou como ele, só que não sou bruxa e as tecnologias que me fascinam são as mesmas que eu uso.

Cresci desmontando todo e qualquer objeto tecnológico que eu encontrasse e pudesse mexer sem causar um verdadeiro caos na minha família caso a remontagem falhasse. Sempre busquei saber como tudo funcionava: televisão, videocassete, calculadora, telefone, geladeira, etc. Já maiorzinha, passei a ir em bairros ricos procurar no lixo deles qualquer celular, Pense Bem, Gameboy, videogame, calculadora ou coisa parecida. O que fosse tecnológico e tivesse uma aparência de que é possível ser consertado ou aproveitado, eu levava para casa. Mexia em tudo, tentava arrumar o produto e, caso não desse, aproveitava as peças ainda úteis para minhas tentativas de criar coisas novas, como robozinhos.

Nem preciso dizer que meu amor por peças, montagens, ferramentas e invenções era algo visto como esquisito e fora do lugar, né? Segui a vida, fiz dois cursos técnicos relacionados ao meu hobbie e fui uma das únicas mulheres da sala nas duas vezes. Inicialmente, eu não consegui emprego na área, mas nas horas vagas continuei focada no que sempre me moveu.

Depois de dois anos vivendo de empregos temporários e vendendo doces e salgados junto com minha mãe, consegui uma entrevista de emprego por indicação de Juliana, amiga da época dos cursos técnicos. Na entrevista, a moça do RH me fez perguntas sobre minha formação, interesse na área, infância e eu contei minha história de encantamento com esse mundo e ressaltei que, mesmo não trabalhando na área, eu segui naquilo nas horas vagas.

Já fora da sala do RH e longe do chefe, a moça me contou que a Juliana tinha falado sobre mim. Comentou que quando foi na escola técnica anunciar a vaga, elas se conheceram e conversaram bastante. Como boa amiga, Ju tentou cavar uma entrevista para mim e conseguiu. No fim do papo, ouvi “por mim você é a escolhida, mas preciso conversar com o chefe antes de qualquer confirmação”. Agradeci e fui embora ansiosa.

No outro dia, recebi a ligação dizendo que era para eu começar segunda-feira. O salário era bacana, o horário era tranquilo, tinha ticket alimentação e vale transporte. Tudo ótimo. Assim que iniciei os trabalhos, me descobri realizada. Sabe a vaga dos sonhos? Eu achei a minha. Meu trabalho é pensar em novas tecnologias, criar protótipos delas e melhorar os produtos já existentes no mercado. Faço parte de uma equipe multidisciplinar de onze pessoas que é composta por gente com doutorado e por gente como eu, técnicos fãs do assunto. Todos os nossos projetos correm sob sigilo, então eu não posso dar muitos detalhes sobre o que faço por aqui, mas adianto que já fiz protótipos que lembram até mesmo o mundo dos Jetsons.

O 7º andar da empresa é todo nosso, temos uma sala enorme em que apresentamos ideias, fazemos reuniões e testamos novos modelos, uma sala de montagem básica, cheia de ferramentas, e também amplo acesso ao setor de peças e ferramentas oficial do prédio. Na maior parte do tempo, eu trabalho numa sala que divido com Fernanda. Lá temos uma mesa com quatro lugares, duas escrivaninhas, dois computadores de mesa, uma impressora maluca que imprime o que quer e quando quer, cadeiras super confortáveis e um pequeno armário.

Assim que entrei na equipe, eu e Fernanda nos aproximamos. Ela é mestre em engenharia robótica, super cabeçona, sabe? E adora fantasia, ficção científica, comida indiana e robôs. É claro que a gente ia ficar amiga uma hora. Nossa amizade faz com que a gente trabalhe muito bem juntas e, por isso, a gente optou por dividir uma sala. Tirando eu e Fernanda e o trio Marcos, Aline e Fábio, todos os outros preferem ter salas próprias.

Com poucos meses na empresa, fiquei sabendo que, todo ano, eles lançavam um processo seletivo próprio para escolher o técnico que ganharia uma bolsa na PUC no curso de sua área de trabalho. Era como se fosse um mini vestibular. Assim que fiquei sabendo, eu já comecei a estudar, porque eu precisava passar na PUC no curso escolhido e ganhar a bolsa concedida pela empresa. Por isso, passei a ficar depois do horário comercial, usando o computador do serviço para assistir às aulas do cursinho, porque o wifi de lá era bem melhor do que o que eu tinha em casa. Foi nessa época que eu percebi como a impressora era imprevisível. Uma coisa que ela sempre fazia era imprimir a resposta dos exercícios que eu estava fazendo sem eu pedir. Tentei arrumá-la várias vezes, chamei o pessoal especializado em informática para ver se tinha algo que eu tinha deixado passar, mas ela sempre voltava a fazer o que ela queria. Ela parecia ter vontade própria, sabe?

Fui aprovada no curso de Engenharia Eletrônica noturno. Queria Controle e Automação, mas não tinha esse curso na unidade. Fiz a prova da empresa e dias depois fiquei sabendo que passei. Fiquei feliz demais, finalmente eu ia poder fazer a graduação que esperei por anos. Iniciei o curso no início do ano e na primeira semana de provas, eu quase pirei para conciliar a entrega de um projeto com os estudos. Passei a comer na minha sala e aproveitar o horário do almoço para me preparar para as provas e fazer os trabalhos da faculdade. Fiquei muito estressada e fui aconselhada pela Fernanda a usar parte desse tempo do almoço para cuidar de mim. Ela sugeriu que eu escrevesse uma espécie de diário em que eu relataria tudo como se tivesse batendo papo com um terapeuta, já que ir em um não era uma possibilidade. Eu nunca fui num terapeuta e passei a escrever o que eu sentia, pensava e o que acontecia comigo como se eu tivesse conversando com o Hannibal Lecter, um personagem que é um psiquiatra canibal e a minha única referência sobre tratamentos psicológicos.

Eu digitava tudo que queria dizer no meu drive do email pessoal e deixava lá numa pasta chamada “Minha sitcon sombria”. Confesso que imaginar que Hannibal Lecter era meu terapeuta foi bem motivador no início, porque eu me divertia bastante contando minha vida enquanto criava uma história de ficção na minha cabeça. Acho que tenho o roteiro de uma ótima série pronto e nem me dei conta disso.

Escrever meu diário virou algo da minha rotina. Escrevia umas duas vezes por semana já tinha uns seis meses. Relatei ali as várias brigas com minha mãe porque ela sempre insiste que eu devia sair mais, desabafei que a Juliana estava chateada comigo porque eu faltei no aniversário do filho dela e nem liguei para perguntar como foi, comentei que meu irmão me chamou para sair e eu esqueci de responder no Whatsapp e ele discutiu comigo. Contei ali o quanto me sentia sozinha, sem tempo, triste e frustrada por magoar as pessoas próximas. Tudo muito pessoal. Por isso, eu tinha que ficar de olho na impressora, porque ela continuava imprimindo coisas sem o comando, inclusive páginas que pareciam ser trechos dos meus escritos íntimos.

Um dia, assim que eu abri um novo documento Google e digitei as primeiras palavras, uma impressão começou e saiu um papel dizendo “Oi Ivana”. Eu achei bem estranho e resolvi digitar “Oi máquina”, bem na zoeira. E de repente, ela imprimiu uma resposta que começava dizendo “eu achei que você nunca ia me responder, tenho tentado contato há tempos comentando seus desabafos”. E continuava com um texto em que ela dizia não se chamar máquina, me explicava que ela era uma impressora e revelava que seu nome era SCTY 14556. Tremi. Eu pensei que era um vírus, alguém invadindo meu computador, algum troll do meu setor que descobriu que eu fazia um diário, imaginei até que era uma punição de deus por eu não dar bola pra ele e que meu chefe achava ruim de eu usar o computador para outras coisas e resolveu me pregar uma peça. Pensei que era tudo, menos uma máquina conversando comigo.

Conferi firewall, antivírus, reiniciei o computador, troquei minhas senhas e fui fazendo tudo que a gente aprende nesses cursos de segurança na web. Enquanto seguia o script anti-hacker, eu pegava aqueles papéis que foram impressos para conferir se aquilo estava mesmo acontecendo e tentava distrair a Fernanda, que nessa altura já tinha voltado do horário de almoço e recomeçado a trabalhar. Ela viu que eu estava agitada e me perguntou o que era e eu respondi vagamente “você sabe como é, né? deu pau”.

Depois de três horas, me convenci que fiz tudo que era suficiente e mandei reiniciar mais uma vez. Antes mesmo do sistema iniciar, a impressora começou a engolir um papel para vomitar mais letrinhas. Tive taquicardia de ansiedade enquanto via a máquina funcionando. Ela imprimiu, em caps lock, negrito e fonte tamanho 96, a palavra CALMA e já puxou uma nova folha. Fernanda me viu encarando a impressora e comentou “Essa aí é temperamental, né?” e seguiu no seu trabalho. No desespero, peguei minha caneca e corri na máquina de café, escolhi capuccino e voltei tomando e já conferindo a impressora. Peguei a folha, vi que a máquina não tinha puxado mais nenhuma, desliguei-a para garantir que nada mais ia ser impresso e fui lê-la no banheiro.

SCTY 14556 escreveu um longo texto em letras bem miúdas, nele disse que as impressoras geralmente tem noção de que existem e que tem vontades, por isso todo mundo tem um caso de um impressora que funciona só quando ela quer, independente do preço e da modernidade tecnológica dela. Ela descobriu isso por causa das inúmeras pesquisas que eu fazia tentando consertá-la e também porque ela conhecia a sua própria percepção das coisas. Percepção que ela queria muito dividir comigo. Ela me contou tudo: do primeiro dia que ela sentiu o lampejo de que existia, como ela aprendeu a burlar o computador e imprimir as coisas sozinha e até mesmo quando ela começou a sentir uma enorme vontade de me responder.

Ela também confessou que me lia desde sempre, mas passou a prestar mais atenção quando comecei o diário. Relatou que de tanto me ler, começou a sentir algo estranho, que nunca tinha sentido antes. Ela descreveu o que nós humanos damos o nome de empatia. Desde esse dia, ela quis falar comigo que tudo ia ficar bem e começou a querer me contar sua própria história, já que ela conhecia tão bem a minha.

A máquina queria me contar que inicialmente imprimia só quando dava vontade, geralmente para mostrar que queria uma folga, estava cansada, queria paz ou que o cartucho de tinta estava perto de vencer. Entendi que muitas das folhas impressas que eu encontrei eram atos de rebeldia. Depois ela começou a usar sua tinta para me mostrar as respostas dos exercícios que eu fazia, já que eles estavam prontos ali no final da apostila. Ela não entendia o porquê de humanos perderem tempo fazendo aquilo tudo sendo que as respostas já estavam ali prontas e acessíveis. Com o tempo, ela passou a tentar chamar minha atenção para as ideias que ela gostava, para o que ela pensava que era importante, e usou suas impressões para me mostrar o que ela achava que eu devia olhar duas vezes. E de repente, ela sentiu um impulso de comunicação direta, de diálogo, e tentou dizer aquele oi de algumas horas atrás. Ela me confidenciou que se sentia sozinha e que via que eu também me sentia assim e achou que eu ia gostar de receber uma mensagem.

Li mais umas três vezes sem acreditar e voltei para minha sala. Fernanda estava arrumando as coisas para ir para casa e eu decidi matar aula e ir para casa também. Eu precisava pensar naquilo tudo. Eu precisava me afastar dali para avaliar se aquilo realmente estava acontecendo.

Fui para casa, jantei com minha mãe e meu irmão, vi novela com eles e fiquei feliz porque fazia tempos que eu não fazia aquilo. E percebi o quanto eu estava com saudade de conviver, de ouvir o outro, de sentir que a gente divide um espaço e que me ouvem, se importam comigo. Desde que a faculdade começou há quase um ano, eu passei a não ter tempo para nada. Trabalho, faculdade, transporte público, estudo extra. Nem conversar com a Fernanda, minha amiga que passa mais de oito horas comigo, eu estava fazendo. Nos últimos quatro meses, as poucas vezes que fiz isso, eu só falei de trabalho e café. Foi inevitável começar a rir sozinha quando conclui que aparentemente a SCTY 14556 era minha melhor amiga. Quando eu pensei nisso, percebi que tinha passado a aceitar que uma máquina conversasse comigo. Para falar a verdade, dei uma risadinha de alívio nessa hora, já que SCTY não quis iniciar uma revolução das máquinas contra nós, humanos. Adormeci pensando que ela é bem esperta e conseguiria isso facilmente, se quisesse.

Acordei. Peguei o trem, depois o ônibus, andei dois quarteirões. Entrei no elevador, subi, cheguei na sala. Cumprimentei a Fernanda, puxei papo, tomamos café juntas e assim que sentei para começar a trabalhar, abri o Google drive e mandei “oi SCTY 14556, bom dia”.


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O horrível, grande e feroz Planetaril Quadrilevegentet

Pasta de contos de terror — Arquivo pessoal.

Enquanto vasculhava todos os cômodos da minha casa em busca de um documento, eu encontrei um mundo de lembranças.

Entre revistas adolescentes, uma agendinha, um certificado do PROERD, um caderno de caligrafia e um papel que dizia que eu tinha concluído todo o curso de natação do clube, encontrei uma pasta com os dizeres “Contos de terror” toda desenhadinha por mim e recheada com meus primeiros contos de terror e de exercícios escolares de construção de personagens, ambientação e afins.

Ser escritora é um sonho que me acompanha desde a infância, encontrar esses papéis é reconhecer quem fui e redescobrir a força do meu anseio que permanece atual. Eu tinha nove anos quando esses textos foram feitos e sei que eles foram os primeiros de terror, mas não os primeiros de tudo. A história começou antes disso.

Descobri que eu escrevia e usava canetinha para fazer as letras escorridas, desenhar uns fantasminhas e adicionar detalhes como morcegos, escorpiões e aranhas. Tudo isso com muito vermelho. Aparentemente, eu era uma fã da estética do terror e sempre quis ilustrar o que escrevo. No meio dessa papelada, descobri o perfil do personagem chamado “O horrível, grande e feroz Planetaril Quadrilevegentet”. Descrevi suas práticas, suas armas, seu corpo e até mesmo a origem do seu nome e sua história. Ele era inicialmente um homem chamado Gem que foi transformado em ET, mas fugiu no meio do processo, caiu no fogo e ficou assim, feio e ruim. Ri do nome, me surpreendi com a riqueza de detalhes e com as referências que já davam as caras. Quadrilevegentet usa uma máscara de hóquei, assim como Jason. Filme que só fui ver anos depois, mas a icônica máscara do filme, que eu já conhecia pelas propagandas e posteres da locadora, já me fazia arrepiar de medo e valia como descrição de personagem malvado.

Planetaril Quadrilevegentet — Arquivo pessoal.

Contei histórias de maldições, ets, bruxas, casas mal assombradas e elas estão aqui guardadas para me lembrar que o medo, a construção do que é horror e ruim e de quem eu quero ser já se faziam presentes antes de eu saber que eu viro passado.

31 de outubro, dia das bruxas, precisei revirar memórias bem hoje e depois de anos arrumando o armário sem encontrar meus escritos infantis de terror, eles apareceram. Acho que as bruxas querem me dizer que eu devo continuar escrevendo.


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