técnica legislativa

Colagem de autoria de Thaís Campolina — Acervo Pessoal

PRÊAMBULO

esse poema entra em vigor na data de sua publicação
ele não diz nada que você não saiba
mas estabelece prazos novos
procedimentos especiais
e tira o conforto criminoso
de um ou outro homem
que vê essas palavras reunidas
e só se assusta quando nota
um nome feminino
que ousa publicar 
poemas-lei

CAPÍTULO I

saiu um poema no diário oficial
ele mesmo se chama de porcaria

CAPÍTULO II

daqui para trás
somente leis 
que criam direitos 
para o povo 
são permitidas

de hoje em diante
tudo será diferente
depois não diga
que não leu as letras 
miúdas

CAPÍTULO III

morrer será proibido
viver mais ainda
eu não faço ideia 
de onde você vai 
enterrar seu pai

talvez no seu quintal 
ou no lote da esquina

aqui não
aqui não pode
já tem morto demais
o cemitério está lotado
todo dia morre vinte trinta cinquenta e cinco
e nosso espaço comporta nem dez

CAPÍTULO IV

já notou 
como a estrutura 
de uma lei pode 
ser subvertida

pode virar até arte
um poema moderno ruim
um papo sobre escrita não criativa
uma colagem de palavras 
muito consultadas 
em qualquer 
dicionário

um poema-lei
todo dividido em artigos longos 
que não dizem nada demais
e incisos que fingem trazer 
[concretude] 
ao que é feito para ser 
~abstrato~

DISPOSIÇÕES GERAIS

a lei é metafísica
o poema também
o concreto e o real dependem 
de um encaixe especulativo
nada perfeito

o que dizem
estrofes & versos
parágrafos & incisos
e muitas alíneas
sobre fatos & verdades
que são só suas?

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notícia de um 1 milhão de euros

três figuras sem rosto encaram um homem em seu primeiro dia de trabalho

o homem tem rosto e parece entediado

nunca sabe para onde as três figuras olham

parte do trabalho de um profissional da segurança da arte envolve medir a distância das mãos das bolsas e dos olhos dos planos, ele diria se quisesse se justificar para o fantasma de Anna Leporskaya

mas ele não diz nada

mesmo demitido e ameaçado de ter que quitar uma multa e ainda pegar três meses de cadeia na Rússia

ele apenas não diz nada

exatamente como as três figuras sem rosto que ganharam temporariamente olhos continuam fazendo mesmo ostentando essas novíssimas bolinhas de gude transparentes na cara.

essas bolinhas discretas feitas sob medida por um estranho homem de 60 anos.

esses olhos-bolinha desenhados pelas mãos criativas de um homem que se recusa a se explicar.

esse homem que andou por todo um museu empunhando uma perigosa caneta esferográfica.

esse criminoso que está sempre pronto para rabiscar olhinhos e carinhas felizes onde conseguir chegar com sua BIC ou semelhante russa

um homem que jura não ter nada a dizer

talvez porque no lugar de rabiscar bocas
ele escolheu abrir olhos

olhos com data marcada para se apagar

isso se o fantasma de Anna Leporskaya deixar

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qual é a gôndola dos pirilampos?

Colagem digital  por  Thaís Campolina — Foto de David Veksler (Unsplash) sugerida pelo meu amigo Guímel Bilac.

sempre gostei muito de chocolate
podia ser aquele de moedinha
bola de futebol ou guarda-chuva
podia ser bombom sonho de valsa
milkbar, sensação, prestígio
kinder ovo, mundy e ferrero rocher
podia ser chocolate da turma da mônica
podia ser, sem sorte, até brigadeiro
só não dava para comer bombom caribe
caribe sempre foi um pouco demais até para mim

por mais que eu gostasse de chocolate
e você pode ter certeza que era muito
meus hobbies iam além do açúcar
e os marketeiros sabiam disso
nenhuma bobeirinha de criança comer
jamais encontrou fim em si mesma
since 1989

o mundo era cheio de surpresinhas
e toda gostosura ganhava continuidade
no uso dessa nova descoberta
que vinha lambuzada
de doce ou gordura trans
fedendo excursão de escola
para a fábrica da coca-cola

tinham tazos nos chips
adesivos das spice girls nos pirulitos
figurinha na balinha que tirava bafo
tatuagem temporária no chiclete
pelúcia no leite parmalat
e brinde de kinder ovo

o kinder ovo tinha um gostinho
de leite de vacas premiadas
mas eu amava mesmo
eram as cápsulas de plástico
que envolviam minha diversão futura

não tinha separação de gênero
no kinder ovo nessa época
a surpresa se fingia ingênua

se podia brincar com quase tudo
que as mães deixassem
desde que a criança tivesse
quem pagasse por ela
os olhos da cara

de todas as coleções
de brinquedinho kinder ovo
que pude conhecer
pelas minhas mãos
ou pela propaganda que
passava no intervalo dos
desenhos na tevê
nenhuma me agradou
mais que aquelas
lanterninhas esquisitinhas
em formatos cotidianos

eu trocava qualquer coisa
por esses brinquedos
caga-fogo

quando meus pais me mandavam para cama
e eu precisava continuar lendo
ou queria continuar brincando
acendia minhas luzinhas
em formato de animais
e eletrodomésticos
debaixo do lençol

amava o telefone de discar com o dedo
porque a luz dele era bem vermelha
e me ajudava a ler
as letrinhas miúdas
de qualquer livro
da biblioteca

amava também o cisne elegante
de luz verde fraquinha
tão fraca que foi o que
me ensinou a deixar
o sono chegar
na hora certa

agora posso
simplesmente ligar
a luz do quarto
varar madrugada
lendo ferrante
se quiser

agora também posso
simplesmente deitar
e dormir

aprendi a sonhar
sem ajuda dos meus vagalumes
que foram queimando com o tempo
no fundo da gaveta da casa
que não moro mais

hoje ninguém manda mais em mim
mas também não tenho quem me compre
kinder ovo com ou sem separação de gênero
preciso fazer meu próprio brigadeiro de colher

todo mundo agora se diz muito
preocupado com minha glicose
acham que eu deveria viver de comer
só meus bichinhos luminosos

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três poemas insólitos

Colagem digital feita por mim a partir de elementos disponíveis no Canva

cabelo trançado já foi pecado
trança em escamas é penteado
mulher peixe cavalo

***

como produzir sua própria criatura

providencie papel machê e imaginação
faça aulas de biscuit cerâmica bordado bruxaria
e se der tempo aprenda a lidar com lã, poções e amigurumis
consulte mary shelley
pense na ovelha dolly
não cometa os mesmos erros que albieri
veja filmes de ficção científica
leia histórias de horror
e algumas de amor também
modele essa massa amorfa
até que ela faça sentido
e após terminar
proteja sua criação

***

oh my god

o mercado financeiro é
uma partida de pingue-pongue profissional
uma ficção contada como biografia séria
de um homem branco qualquer
uma seita que promete a reabilitação
de pessoas jurídicas desesperadas
um jogo de espelhos
de um parque caindo aos pedaços
cuidado pra não ir para o lado errado
cair no conto do vigário
acreditar em compliance
e maquiagem contábil

há tantos caídos
na base da pirâmide
um mar de gente sem deus
a falência é o maior dos pecados

esses poemas fazem parte do meu livro “eu investigo qualquer coisa sem registro”, obra que foi selecionada para publicação no concurso Poesia InCrível de 2021. se você gostou desses poemas, deixe um comentário, compartilhe com seus amigos e me acompanhe também pelo Medium,  Facebook,  Twitter,  Tinyletter  e  Instagram para não perder a data do lançamento que vem aí.

A proclamação da vulgaridade é uma defesa pela risada largada

Acervo PessoalTodas as fotos desse post foram originalmente publicadas em meu Instagram.

Não me lembro direito da primeira vez que li a frase “Sexy sem ser vulgar”, mas de quando comecei a ironizar e responder, ao menos mentalmente, a tudo com um simples “Vulgar sem ser sexy”, eu me recordo muito bem.

“Vulgar sem ser sexy” se tornou uma espécie de grito de guerra interno meu, a frase conforto que eu pensava toda vez que sentia um incômodo com o que me era empurrado como obrigação feminina e sonhava com as ideias de liberdade e intimidade.

O que chamam de vulgaridade sempre me pareceu muito mais humano do que o elegante, o culto, o feminino ideal. Mais verdadeiro, algo da essência humana, o segredo que todos realmente dividem, o de sermos bichos (ou que a Sandy também caga).

“A proclamação da vulgaridade ou quantos furos uma calcinha pode ter?”, livro de estreia da Mila Teixeira, foi uma leitura que me lembrou do meu apego adolescente a essa expressão e me divertiu horrores com as boas doses de realidade e identificação que, junto a um mundo de boas referências, tornam a voz da autora única.

Eu amei, porque esse é um livro que mostra e explora a beleza e o horror de sermos o que somos, de não nos levarmos tão a sério e da intimidade das portas abertas. Mila é uma mulher que tem como poética o humor, o comum, a banalidade, a risada rasgada e a boa e velha cachorrada.

Terminei a leitura lembrando que as primeiras mensagens que eu troquei com a poeta na rede social Instagram foram sobre candidíase e me senti ainda mais próxima desse livro que conforta e faz rir todo mundo que usa calcinhas furadas, já tomou dipirona vencida, pensa na decomposição da barata que mata e mija demais por prezar sempre por boa hidratação (e Coca-Cola).

Tudo a ver com o #domingodabanalidade, né?

Esse texto foi publicado originalmente em meu perfil do Instagram durante um especial chamado #domingodabanalidadeSe você gostou, deixe um comentário, compartilhe com seus amigos e me acompanhe também pelo Medium,  Facebook,  Twitter,  TinyletterApoia.se e  Instagram. Compre o livro diretamente com a autora ou na editora Urutau.

Mulheres negras escrevem o mundo

No mesmo mês que “Poetas negras brasileiras: uma antologia” chegou em minha casa, o livro “A vulva é uma ferida aberta & outros ensaios” da Gloria Anzaldúa veio parar em minhas nãos. A antologia foi lida primeiro, a partir do acaso que, com ajuda dos Correios, impôs a esses dois livros diferentes datas de chegada, mas Gloria Anzaldúa já estava ali comigo, acompanhando minha incursão nos vários universos poéticos catalogados por esse livro de poemas que, do miolo até a capa, reafirma a existência e a heterogeneidade da escrita feminina e negra e brasileira, essa escrita feita fora do que chamam de Norte do planeta por quem precisa colocar sua voz no mundo.

De Gloria Anzaldúa conheço pouco até então, apenas o texto Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo”, lido antes e depois da chegada desse pequeno tijolinho roxo editado pela A Bolha e traduzido pela poeta Tatiana Nascimento, e algumas outras citações esparsas, mas isso foi mais do que o suficiente para eu costurar essas duas leituras que agora me parecem tão complementares.

“Poetas negras brasileiras” tem como organizadora Jarid Arraes, escritora que desde a sua origem independente atua evidenciando as desigualdades do mercado editorial e do mundo da escrita em seu sentido mais amplo. Com esse livro, que une estreantes e também nomes consolidados, a editora do selo Ferina desconstrói estereótipos sobre a escrita feminina e negra e indica novos caminhos para quem escreve e quem lê, enquanto apresenta o livro e a palavra como ferramentas de expressão cultural e individual e também de luta e denúncia. Semelhança e diferença coexistem na obra como uma bandeira literária que aponta o óbvio ao leitor, ao crítico e à sociedade: a literatura não é feita só por homens brancos e a ideia de condição humana e universalidade não vem somente dessa perspectiva, ela vem das múltiplas possibilidades de encontro da alteridade com a identidade.

Gloria, em seu ensaio mais famoso, diz:

“Por que sou levada a escrever? Porque a escrita me salva dessa complacência que temo. Porque não tenho escolha. Porque preciso manter vivos o espírito de minha revolta e a mim mesma. Porque o mundo que crio na escrita compensa aquilo que o mundo real não me dá. Ao escrever, eu organizo o mundo, ponho nele uma alça em que posso me segurar. Eu escrevo porque a vida não satisfaz meus apetites e minha fome. Escrevo para registrar o que outros apagam quando eu falo, pra reescrever as histórias mal-escritas que eles contaram de mim, de você. Para ficar mais íntima comigo mesma e contigo. Pra me descobrir, pra me preservar, pra me fazer, pra ter autonomia.”

E continua:

“O ato de escrever é um ato de fazer alma, uma alquimia. É uma jornada em busca do eu, do cerne do eu, aquele nós mulheres de cor pensamos ser “a outra” – a escura, a feminina.”

E depois, seguindo esse raciocínio, afirma:

“A escrita é uma ferramenta para adentrar esse mistério, mas também nos protege, nos dá uma margem de distância, nos ajuda a sobreviver”.

Por mais diversos em temática, estilo e até estrutura que sejam os poemas das autoras negras brasileiras catalogados nessa antologia, todos eles me parecem ter sido escritos por essa força-motriz exposta pela Gloria nesses destaques. A escrita para grupos oprimidos é marcada pelo desejo de subjetivação perante o mundo que prega o individualismo homogêneo, enquanto nega a subjetividade de certos corpos, e é por isso que a publicação de obras como essa antologia importam tanto e tem dimensões políticas que mesclam o individual e o coletivo.

Ancestralidade e filiação, afetos e sexualidade, identidade, racismo, trajetória, dúvidas, amor romântico e a falta dele e até mesmo as angústias contemporâneas que se relacionam com as redes sociais são alguns dos assuntos trabalhados por algumas das mais de 70 poetas negras que fazem parte desse trabalho. Vale destacar que a curadoria de Jarid reuniu autoras de 18 anos a 70 anos e tentou abarcar todo o Brasil, com nomes oriundos inclusive de cidades do interior, mas infelizmente falhando em não conter representantes das regiões Sul e Norte do país*.

Com poemas de nomes como Conceição Evaristo, Bianca Gonçalves, Cristiane Sobral, Mel Duarte, Lubi Prates, Mika Andrade, Nina Rizzi, Tatiana Nascimento, Cecília Floresta e o da própria organizadora, a obra surge já mostrando que o enorme talento dessas poetas negras não é exceção. Entre as poetas que eu ainda não conhecia, destaco o que vi de Thamires P., Silvia Barros, Pétala Souza, Nicole de Antunes, Mayara Ísis, Marina Farias, Mariana Madelinn, Maria Vitória, Luna Vitrolira, Juliana Berlim, Jhen Fontinelli, Gessica Borges, Eliza Araújo, Débora Gil Pantaleão, Kiusam de Oliveira, Jovina Souza e Andrezza Xavier no livro. Há um mar de mulheres negras fazendo literatura em terra firme mesmo quando o mundo, na prática, ainda insiste em dizer que esse não é um lugar para elas.

*O livro foi construído a partir de uma chamada nas redes sociais e, apesar do esforço da organizadora em mudar isso, a ausência de autoras dessas regiões provavelmente veio da limitação desse formato.

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três poemas belo-horizontinos

frango frito

ouço pombos e passarinhos
gatos caçadores na janela
cachorros ansiosos com o barulho
de calçados familiares subindo as escadas
duas obras ou mais na vizinhança
um despertador que se esgoela 

bicicletas carros ônibus 
dividem espaço
com pessoas e carroças
e sacolinhas de supermercado 
apinhadas de lixo

a música parece a de sempre
mas é diferente
alguém matou os galos e as galinhas
que piavam e cantavam
a alguns metros daqui
em plena capital mineira

***

somos animais que migram no verão

já tentei
meditação yoga 
corrida krav magá
caminhada ansiolítico
terapia chás
mas é só olhar para o mar
que faço as pazes comigo

o problema é
moro em BH

(me desculpem 
as capivaras 
o jacaré da pampulha
cada dia mais gordo e tranquilo 
a lagoa não é suficiente: 
serve melhor aos meio-maratonistas)

***

inventário cidade nova

cinco marcas de ração coleiras brinquedos pipicat caixas de areia casinhas de cachorro peixes realistas com catnip dentro sachês e patês para pets linhas para costura agulhas alguma lã post its canetas lápis de cor giz de cera canetinhas vários tipos de papel pincéis kit aquarela tinta guache cola tesoura sem ponta cartolina caderno pastinhas coloridas pastas sanfonadas ecobags agenda planner papel de presente porta retrato squeeze enfeites de biscuit plantas de plástico canecas variadas dominó baralho jogo das varetas uno pilhas serviço de xerox impressão e scanner. quantas histórias mais guarda uma lojinha de bairro?

***

esses poemas fazem parte do meu livro “eu investigo qualquer coisa sem registro”, obra que foi selecionada para publicação no concurso Poesia InCrível de 2021. se você gostou desses poemas, deixe um comentário, compartilhe com seus amigos e me acompanhe também pelo Medium,  Facebook,  Twitter,  Tinyletter  e  Instagram para não perder a data do lançamento que vem aí.

As tantas mulheres que passaram na cabeça de Maria Luiza Machado

Acervo pessoal – Foto publicada originalmente no meu Instagram

“Tantas que aqui passaram”, livro de poemas da Maria Luiza Machado é um catálogo poético de personagens femininas. Formado por 29 mulheres-poemas, essa é uma obra que nos coloca em contato com a condição humana das mulheres, enquanto também evidencia, de forma sutil, aspectos sociais e culturais que influenciam na construção dessas subjetividades muitas vezes marcadas por diversas angústias. Solidão, maternidade, trabalho, fé e relacionamentos amorosos e familiares são alguns dos temas abordados pela autora a partir de uma perspectiva íntima, que nos coloca em contato com os pensamentos secretos de cada uma dessas personagens.

Os poemas de Maria Luiza soam narrativos para os fãs de prosa e bons personagens e exploram repetições, pausas e alguns aspectos da oralidade, lembrando muitas vezes fluxos de consciência. A construção poética dos detalhes cotidianos expostos em alguns dos versos também chama atenção e ajuda a formar cenários e sensações, fornecendo uma espécie de lupa para quem lê. Lupa essa que nos ajuda a investigar um pouco mais de cada uma dessas personas que nos são apresentadas.

Como diz o posfácio de Monique Malcher, terminamos de ler esses poemas nos sentindo povoadas. Não sendo e sendo cada uma dessas mulheres que sempre nos lembram alguém, às vezes até a gente mesma.

“Tantas que aqui passaram” é sobre o universo que cabe em cada pessoa, uma obra que nos faz pensar no quanto semelhança e diferença constroem o universo da pluralidade e isso tem uma importância especial em um universo que insiste em impor padronizações.

O livro é uma publicação da Mormaço Editorial, editora independente fundada em 2020 e coordenada por Maria Luiza Machado e seu sócio Daniel Pasini. Ele foi diagramado e ilustrado por Isabela Sancho e viabilizado através de um financiamento coletivo. Esse é o terceiro livro da autora, que nasceu em 1995 em Feira de Santana na Bahia e mora em Salvador desde 2014. Os livros anteriores dessa jovem escritora foram: “Algumas histórias sobre a falta” (2018) e “Todos os nós” (2019).

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O poema em linhas porcas por Álvara de Campos Feios

Parodiando clássicos para falar de ontem, hoje e amanhã

nunca conheci uma mulher que tivesse pulado faxina
todas as minhas conhecidas têm sido campeãs em limpeza e organização
e eu, tantas vezes nojenta, tantas vezes porca, tantas vezes feia,
eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
indesculpavelmente suja

eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
eu, que tantas vezes tenho sido ridícula, absurda,
que tenho sujado com os pés publicamente meus tapetes sem etiqueta,
que tenho sido grotesca, mesquinha, nada submissa e arrogante
que já não tenho mais sofrido com cascalhos e retalhos pelo chão, nem me calado sobre
e quando tenho calado, tenho sido mais ridícula ainda, limpando sem querer

eu, que tenho sido cômica às mulheres ao redor
eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços vendedores de produtos de limpeza
eu, que tenho feito vergonhas domésticas, descansado antes de limpar
eu, que quando uma obrigação dessas surge, me tenho sempre em outro cômodo
pra fora da possibilidade da labuta
eu, que já não tenho mais sofrido a angústia dessas pequenas sujeiras ridículas
eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo

todas as mulheres que eu conheço e que falam comigo
nunca tiveram um ato porco, nunca sofreram de preguiça,
nunca foram senão princesas — todas elas princesas e servas — na vida…
quem me dera ouvir de alguém a voz feminina
que confessasse não um pecado sexual, mas algo que não foi limpado e organizado como deveria
que contasse, não sobre uma noite de sexo sujo, mas uma porcaria!
não, são todas ideias, se os oiço e me falam
quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi imunda?
ó princesas e servas, minhas irmãs

arre, estou farta de semideusas!
onde é que há outras mulheres sujas e feias nesse mundo?
então sou só eu que sou suja, feia e despudora nesta terra?

poderão os homens não as terem obrigado?
pode, ter sido traídas, socadas, machucadas — mas porcas nunca!
e eu, que tenho sido porca sem ter sido traída, socada e machucada,
como posso eu falar com as minhas superioras sem titubear?
eu, que venho sido suja, literalmente suja,
suja no sentido preguiçoso, indecoroso e repugnante da porqueza.

trapos somos, trapos limpamos, trapos engomamos —
que trapo sujo que é este mundo!

o horror sórdido do que, a sós consigo,
vergonhosa de si, no escuro, cada mulher pensa ter que limpar


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Aproveite para reler ou conhecer o Poema em Linha Reta do Fernando Pessoa, heterônimo Álvaro de Campos, nesse livro disponível de graça para os assinantes do Kindle Unlimited.

talvez ainda dê tempo de reiniciar

Mathew Schwartz

uma manchete sobre uma ameaça de golpe paira na tela lado a lado com segredos e dicas para:

a) comprar o melhor celular
b) investir o auxílio emergencial
c) economizar dinheiro
d) melhorar a nota no Serasa
e) se tornar um empreendedor
f) dormir bem
g) cortar carboidratos
h) emagrecer
i) se manter produtivo

não tem nada sobre ganhar dinheiro dormindo
ninguém acredita mais nisso
mas ainda tem quem creia em cloroquina cápsulas de vitamina D anitta
e em um certo Messias

no pé da página
as notícias dizem:
bilionários cada vez mais ricos
extrema pobreza em ascensão
violência doméstica também

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Esse poema foi selecionado para antologia antifascista da Hecatombe, selo da Urutau. Para saber mais sobre a publicação que vai vir, convido todos a acompanharem as redes sociais da editora.