Por que pregar abstinência sexual não é uma política pública eficiente?

Damares Alves, chefe do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

Promover a abstinência sexual não funciona como política pública para evitar gravidez na adolescência e nem o contágio de doenças sexualmente transmissíveis entre jovens. O estudo de casos como o dos Estados Unidos no período Bush mostram a ineficiência desse tipo de programa. Até mesmo Damares Alves, enquanto ministra, admitiu que não há pesquisas que embasam a proposta como ela foi feita, mas ainda assim essa é uma medida que costuma ser bem vista por muitos e a gente precisa parar para pensar no porquê disso.

Damares Alves, por meio de seu discurso, se coloca como a única e verdadeira defensora das crianças e adolescentes. Ela manipula as pessoas a partir disso e tenta convencer a população de que defender qualquer coisa diferente da promoção da abstinência total é estimular que crianças e adolescentes transem. Ela aproveita a preocupação comum de pais e cuidadores com o presente e o futuro de seus filhos para defender como política pública algo que não encontra amparo científico, enquanto ignora questões essenciais ao debate como machismo, lgbtfobia e, principalmente, os altos números de casamentos infantis ou precoces, casos de exploração sexual e de estupro de vulnerável.

Com a frase “Se provarem que vagina de menina de 12 anos está pronta para ser possuída, paro de falar”, a ministra defendeu o seu programa de maneira completamente desonesta. Ao dizer isso, ela, a partir do sensacionalismo, tentou colocar quem é contra a abstinência sexual total como política de governo como defensor da pedofilia, sendo que a educação sexual, sempre dada de acordo com a idade dos alunos, funciona justamente como uma forma de proteger crianças e adolescentes de estupros, especialmente nos casos em que eles acontecem dentro de casa, entre familiares e vizinhos, ou mesmo fora, em locais com ares de confiabilidade e presença de figuras de poder, como padres e pastores.

Além disso, sabendo que na legislação brasileira há o tipo penal do estupro de vulnerável, que presume como violência sexual qualquer ato sexual com menores de 14 anos, o discurso de Damares Alves se mostra ainda mais manipulador. Legalmente, antes dessa idade não há sexo com consentimento, há abuso sexual presumido, logo já se defende a abstinência sexual de pessoas que se encontram nessa fase da vida.

Quando o próprio governo, a partir da figura da Damares, sugere uma atividade educativa que envolve uma fita adesiva que passa colando entre os estudantes para afirmar que depois de um tempo a menina*, especialmente a menina, não “cola” com ninguém, fica evidente o machismo e o anticientificismo que envolve a defesa dessa política de governo. A partir dessa declaração, se percebe o quanto eles buscam cercear o exercício da sexualidade feminina não só enquanto adolescente. Eles querem promover o ideal de casamento mesmo, ignorando as estatísticas brasileiras sobre casamento precoce e suas consequências.

A popularidade de propostas como essa se sustenta na má-fé de seus defensores e na propagação de desinformações comuns ao tema. A sexualidade em si é um tabu inclusive para adultos e justamente por isso Damares Alves explora a temática a partir do senso comum moralista, machista e religioso e usa isso para promover seus interesses, ignorando estatísticas e o alcance do problema.

Com um discurso agressivo contra quem discorda da promoção da castidade como política pública, quem defende essa agenda oferece uma resposta superficial que não soluciona nada, apenas empurra para debaixo do tapete um problema que, ao não ser trabalhado como deve, tende a se agravar. Sem o cuidado necessário, o estímulo da abstinência misturada com o papo de alma gêmea presente no discurso da ministra pode acabar reverberando em um aumento de casamentos precoces, por exemplo.

A educação sexual é provavelmente o principal e melhor caminho para evitar a gravidez na adolescência e a transmissão de doenças sexualmente transmissíveis porque, além de informar sobre o funcionamento e cuidado do corpo, as transformações da adolescência, os métodos contraceptivos e as doenças sexualmente transmissíveis, ela também ensina sobre consentimento e estupro, o que dá ferramentas para as vítimas denunciarem seus algozes e contribui para construção de uma sexualidade saudável para jovens, independente do gênero.

Falar “não transe”, sem qualquer outro aprofundamento ou informação, não ajuda em nada, porque essa frase colocada assim só contribui para alimentar o tabu do valor da virgindade feminina, a culpa, o pecado, o desejo pelo proibido e, claro, a desinformação e a perpetuação do silêncio que envolve casos de estupro.

Informar, falar sobre e debater sexualidade e gênero levando em conta questões além da biologia em si, sem imposições ou terrorismos, é o que ajuda adolescentes a entenderem as responsabilidades com o outro e consigo mesmos necessárias para a construção e exercício de uma sexualidade saudável. Isso, na maioria das vezes, influencia na decisão dos jovens em adiar o início da vida sexual e permite que eles aprendam a se proteger de gravidezes, doenças e até mesmo violências quando ou caso decidirem transar — ensinamentos que podem ser úteis até mesmo antes desse momento chegar.

A castidade como foco de uma política pública falha porque isola o assunto de quem mais precisa falar sobre, deixando jovens sem acesso às informações essenciais para o início de uma vida sexual segura. Assim, a pornografia e os mitos sobre o sexo ganham espaço entre adolescentes e até mesmo adultos. O impacto de uma política pública como essa se perpetua além da menoridade porque reafirma lugares comuns sobre sexo, desinformação e silêncio. É a vitória do “não, porque sim” frente à construção de uma sexualidade responsável e respeitosa. É a escolha por criar mais uma barreira de acesso aos direitos sexuais e reprodutivos. Escolha essa que já está sendo feita em outros âmbitos, como no pedido de eliminação, por parte do Brasil, de qualquer tipo de referência sobre “educação sexual” e “direitos reprodutivos” nos documentos da ONU e OMS.

No mais, além de aulas e campanhas de educação sexual, é essencial que as políticas públicas sobre sexualidade levem em conta o efeito da falta de oportunidades no imaginário social que coloca filhos e casamento como um meio de atingir uma certa autonomia, especialmente para meninas e mulheres. Informação sem perspectiva não é o suficiente. É preciso que as políticas públicas interajam entre si e expandam a ideia de futuro que muitos jovens possuem. Combater a miséria, por exemplo, é essencial para isso. Somente ações coordenadas e abrangentes que envolvam aulas de educação sexual baseada em evidências e debate protegerão meninas e meninos da naturalização desse processo que envolve, muitas vezes, pessoas maiores de idade que se aproveitam justamente da falta de conhecimento, maturidade e horizonte de crianças e adolescentes para conseguir o que querem. Seja pelo casamento ou pela exploração e violência sexual.


*O uso do termo “menina” nessa fala vem de novo reiterar no imaginário social que a ideia de que ser contra a abstinência sexual como política pública é defender a pedofilia.


Perigosa

“I always want to be dangerous” disse a moça do Fleabag numa capa da Vogue. Ainda não vi Fleabag, preciso confessar, mas juro que está na minha lista desde que fui avisada que é uma série curta e que eu vou me apaixonar pela atriz que é também um tanto de coisa relacionada ao mundo da criação, da escrita e tudo mais. A revista não está aqui comigo, não, não. Nenhuma sala de espera tem revista super atual assim, imagina se uma repartição de prédio público que está sofrendo cortes e ataques do governo para cavar uma privatização vai ter?

Pois é. Tá foda, né? Vigora nesse país uma lógica tão nefasta que não há energia que dê conta de se manter tempo o suficiente em um corpo sem se dissipar em uma ação automática, como uma reclamação, um lanche ou um meme. A sensação é que estamos em processo de zumbificação. Eu, pelo menos, estou.

Fomos domados. Agimos de forma previsível e quase adestrada e é por isso que a frase da moça do Fleabag ecoa na minha mente sem parar desde que a li. Eu sempre quis ser perigosa. Muito mais do que uma femme fatale, já que todo o perigo que elas apresentam segue uma lógica que é cruel com as mulheres e serve, no fim das contas, para alimentar fantasias masculinas de controle, dominação e narcisismo. Eu queria ser perigosa mesmo. Inflamável, tempestiva, ousada, imprevisível, mercurial e, principalmente, forte o suficiente para garantir que nenhuma dessas características e comportamentos me prejudicasse. Queria poder ser desagradável, eu acho. Poder fazer coisas comuns sem pintar um sorriso no rosto, ainda que falso, e responder daquele jeito quem me tratasse de maneira paternalista ou me assediasse. É isso. Queria poder reagir ao que é sutil, mas ainda assim mexe com minhas estruturas e afeta como eu me vejo e vejo as mulheres ao meu redor. E não só elas. Queria também reagir ao que é óbvio, mas que é perigoso demais. Como quebrar um banco ou bater de frente com juízes que defendem somente seus próprios interesses. Eu queria tanta coisa e todas elas se relacionam com enfrentar um poder sem medo. Então, o que eu queria mesmo era ter menos medo. De desagradar, de me machucar, de destruir, de descobrir que algo pode ser diferente e construir qualquer coisa a partir desse impulso.

Eu queria ser perigosa, moça do Fleabag, porque eu queria conseguir me proteger desse mundo que nos engole mesmo sem a gente perceber. Eu queria ser perigosa, porque fantasio com o dia que eu não serei mais tão covarde. Eu queria ser perigosa para não ser presa, fácil ou não.

Talvez a zumbificação esteja em mim e em nós e em todos há muito mais tempo do que a gente imagina. Talvez a gente precise descobrir o perigo que mora nessas nossas feridas feias que nunca cicatrizam. Talvez eu esteja chorando no banheiro. Talvez eu esteja com receio de chamarem o meu número enquanto seco as lágrimas disfarçadamente numa cabine apertada com cheiro de xixi velho misturado com desinfetante de lavanda. Isso tudo porque chorar em público é visto como uma espécie de perda da dignidade e eu quero evitar que pensem que perdi a minha agora. Eu perdi faz tempo. Provavelmente quando não fiz muita coisa para tentar barrar a Reforma Trabalhista. Ou foi a da Previdência? A decadência humana, na verdade, é não chorar, sentir, agir quando a gente sente esse impulso vital, constantemente sufocado, mas que ainda assim continua a chamar, a chamar, a chamar…


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O que as reações ao casal Keanu e Alexandra dizem sobre o envelhecimento feminino?

Fofinhos ❤

Keanu Reeves, ator e queridinho das redes sociais, assumiu namoro com a artista plástica, pintora, escultora e cineasta Alexandra Grant e o Twitter, Facebook e Instagram foram inundados com comentários sobre eles. Entre as muitas comemorações e até brincadeiras, porque Keanu desencalhou e voltou a amar e que a escolhida não era uma modelo de 20 anos da Victoria’s Secret, havia também falas bem cruéis sobre a Alexandra.

Ainda que nem sempre com agressividade, a aparência dela se tornou pauta, como sempre se torna porque, afinal, ela é uma mulher e isso parece ser a coisa mais importante sobre uma mulher sempre. Só que o caso dela teve um plus. Keanu Reeves, 55 anos, não seguiu o padrão hollywoodiano de homens de meia idade e escolheu se relacionar com uma mulher apenas 9 anos mais nova que ele. Keanu e Alexandra estão na mesma faixa etária, são amigos de longa data e parecem estar felizes juntos, mas o que parece ter realmente chamado atenção dos fãs e curiosos é que a aparência da Alexandra em relação a sua idade. Com 46 anos e o cabelo todo branco, ela foi considerada acabada, com a aparência velha, descuidada e feia demais para ele.

Mais uma vez, uma mulher que parece ser bem interessante e talentosa, ao se tornar foco, foi julgada e desqualificada por não ter a aparência esperada ou mesmo adequada. Ainda que as pessoas adorem fazer piadas com as namoradas super jovens do Leonardo Di Caprio, no fim, ao ver um cara fazer diferente, muita gente tinha algo a dizer, ainda que discretamente, sobre a namorada do Keanu Reeves aparentar ser velha demais. E, no caso, por mais que as pessoas tenham tentado suprimir essa parte, a maioria queria dizer que ela aparentava ser velha demais para ele, que é quase uma década mais velho do que ela.

O envelhecimento feminino é tratado mesmo por quem é pra frentex como uma mácula, um defeito, algo que choca. O tom é de surpresa não só porque homens costumam buscar parceiras muito mais novas, mas porque a mulher mais velha em questão assume os brancos e parece estar tranquila sobre a sua própria aparência. Ela não parece estar lutando o tempo todo para aparentar ser mais jovem do que é.

A sensação que fica é que a mulher só pode envelhecer se for pintando o cabelo, fazendo todos os tratamentos estéticos existentes para manter o rostinho muito jovem e se apoiando no botox e na maquiagem o tempo todo. O que na prática significa que mulher não pode envelhecer, a não ser que faça de tudo para manter sua aparência como se fosse jovem, quase como se esse esforço fosse um pedido de desculpa para o mundo por ainda existir e querer viver, inclusive uma história de amor com um astro do cinema. Essas cobranças são, inclusive, um meio de controle do corpo e comportamento feminino.

O envelhecimento não segue necessariamente uma régua igual para todas as pessoas. Tem gente que aparentará ser bem mais jovem do que é e o contrário também existe. Isso depende de n coisas além de procedimentos estéticos. Pele seca, por exemplo, pode pesar bastante com o passar dos anos e a presença e persistência dos fios brancos é uma questão de fundo genético que varia bastante.

O ponto é que a gente, enquanto sociedade, se preocupa demais em julgar pessoas, especialmente mulheres, pelo seu envelhecimento. Em comentar sobre, em achar que aparentar mais nova é o melhor elogio que se pode fazer a alguém. O envelhecimento é mal visto, especialmente o feminino. E, o pior, é que a nossa noção de idade e aparência feminina adequada é bastante viciada pelos procedimentos e cuidados estéticos que nos cercam desde sempre e também pelo fato de que o peso da idade e, principalmente, da aparência dela é totalmente diferente para os homens.

Um homem grisalho não ouve que precisa se cuidar, pintar o cabelo, se valorizar. Um homem grisalho chega a ser visto como charmoso muitas vezes. Um homem grisalho é considerado sinônimo de sabedoria, amadurecimento e outros adjetivos positivos. O peso é outro e é por isso que é lugar comum para nós, enquanto sociedade, julgarmos com frequência se uma mulher parece ser mais nova ou mais velha do que é e esse julgamento carrega em si a ideia de que o envelhecimento feminino é ruim. O homem talvez até ganhe um certo valor quando envelhece, a mulher só perde. A régua do envelhecimento feminino importa tanto por isso e ela é bem mais cruel do que a régua masculina. E a gente sabe muito bem que isso tem relação com o fato de que mulheres são valorizadas quase que exclusivamente pela beleza e que a beleza em nossa cultura é considerada sinônimo de juventude. Ao menos para as mulheres.

Quando há algumas semanas comentei sobre skincare não ser sinônimo de autocuidado e nem algo tão necessário assim surgiram várias pessoas, principalmente mulheres, afirmando que ter uma rotina de skincare era essencial porque ajudava a a atrasar o envelhecimento. O argumento era esse, enquanto eu dizia que o meu incômodo com essa nova relação entre palavras que antes não andavam juntas era sobre o fato de que todo cuidado feminino parece precisar perpassar pela estética. Não há nada de novo nessa busca por preservar a beleza e a juventude. Não há nada de novo, principalmente, nisso ser visto como uma obrigação feminina. O envelhecimento, principalmente da aparência, não deve ser tratado como um pesadelo ou algo que precisa ser evitado a todo custo, principalmente para as mulheres. Tratar tentativas de atrasar o envelhecimento comum da pele como uma questão de saúde ou algo tão essencial quanto isso é um erro.

Envelhecer sendo uma mulher é ver o seu valor, perante uma sociedade objetificadora, diminuindo gradativamente. A cada ano, a cada ruga, a cada fio branco ou flacidez, se vai o que o patriarcado nos deu como moeda de troca. Nosso capital é a beleza e ela é considerada sinônimo de juventude e o seu significado perpassa pelos padrões de beleza que, por mais que tenham sofrido um pequeno abalo nos últimos anos, continuam racistas, gordofóbicos, capacitistas e etaristas.

Alexandra Grant é uma mulher que assume seus cabelos brancos aos 46 anos e que não parece estar preocupada demais com a própria aparência. O susto com o envelhecimento dela só diz o quanto nosso mundo, mesmo aquele considerado progressista, ainda está preso na ideia de que o valor de uma mulher está em sua juventude, como significado de beleza. A pira de que mulheres precisam se cuidar, como se essa busca por certa aparência significasse amor próprio, e o tempo que a gente perde com isso parece nos qualificar como mais valorosas para um homem ou mesmo para a sociedade. Só que envelhecer sendo uma mulher é algo ainda mais complicado do que aparenta. Se fizer muita plástica ou plásticas óbvias demais, a mulher é julgada por não aceitar que envelheceu e querer mudar o próprio rosto. Como se essa vontade de passar por um bisturi ou vários surgisse do nada, claro.

É sintomático que toda essa discussão tenha iniciado a partir do julgamento de uma namorada de um ator considerado bonito e, principalmente, interessante. Num mundo que vê a beleza feminina como um meio para conseguir ser a mulher de alguém e que liga relacionamento com status, todo esse bafafá em torno da figura da Alexandra mostra o quanto mulheres ainda são vistas como acessórios masculinos, não como boa companhia ou parceira. Ser interessante não vale tanto quanto ser bonita de acordo com o padrão quando falamos de mulheres, enquanto Keanu Reeves ser interessante, além de bonito, é o que o tornou queridinho nas redes sociais.

Aparentemente, muita gente considera que a Alexandra não é boa o suficiente para estar com o Keanu Reeves e isso só mostra o quanto toda nossa noção de relacionamentos, especialmente o de figuras públicas, é viciado por esses filmes em que um homem comum e de meia idade se relaciona com uma mulher deslumbrante que tem idade para ser filha, às vezes neta, dele.

Não vou falar que Alexandra é linda hoje, porque o que quero dizer é que isso não deveria ser considerado tão importante assim. Uma mulher é uma mulher, muito além de sua beleza, sua idade ou a idade que aparenta ter. Uma mulher é muito mais do que seu rosto, seu corpo e seu cabelo. Uma mulher não se resume assim. Nem um relacionamento. E eu espero que um dia a gente não precise mais afirmar isso de novo. De novo. De novo. De novo. De novo…


Esse texto surgiu a partir de tweets que postei em minha conta pessoal do Twitter. Se você gostou desse texto, deixe um comentário, compartilhe com seus amigos e me acompanhe pelo Medium, Facebook, Twitter, Sweek, Wattpad, Tinyletter e Instagram

O Diário de Nisha: a Partição pelos olhos de uma menina

Além das notícias, muitas vezes bem superficiais, pouco conhecemos sobre as relações conflituosas entre Índia, Paquistão e a região de Caxemira. Ainda que essa animosidade entre povos, territórios e países possa colocar a vida de muitas pessoas em risco até hoje, as informações que chegam até a maioria de nós são insuficientes até mesmo para desenvolver empatia por qualquer das partes envolvidas. Tudo que acontece nessa região parece longe demais da gente. Embora nossa sociedade consiga se sensibilizar por tragédias e histórias tão distantes quanto, mas protagonizadas por outros personagens, esses geralmente europeus ou seus descendentes.

A verdade é que para sentir essa proximidade é preciso saber mais sobre o que se passa, de verdade, no cenário dessas histórias que, narradas de maneira tão distante pela mídia tradicional, parecem ser ficcionais de um jeito ruim. Falta, na maioria das vezes, conhecer o contexto e um pouco mais sobre os personagens. E, para isso acontecer, se faz necessário voltar ao passado e analisar os acontecimentos que influenciaram nos problemas atuais. Nesse caso, saber um pouco mais sobre a Partição se torna essencial, porque esse momento afetou e muito a história e o presente do sul da Ásia e tem relação direta com as consequências de anos de colonização inglesa.

A região onde se localiza hoje a Índia, o Paquistão e Bangladesh era uma só e passou 200 anos sob o domínio britânico, apesar das revoltas da população. A Partição aconteceu em 1947, após o fim da colonização, quando a Índia, maioria hindu, e o Paquistão, maioria muçulmana, se separaram e deram origem a dois países, a uma onda de violência e a um dos principais episódios de migração em massa da história mundial.

Estudiosos consideram que a interferência dos ingleses nas comunidades durante o processo de colonização e de descolonização desequilibrou a convivência entre os grupos que compunham aquele território, o que afetou como a população se via e percebia uns aos outros. Esse processo, junto com outras questões como as reações de lideranças, catalisou a animosidade entre hindus e muçulmanos durante o processo de criação dos dois estados soberanos em questão e deu origem a esse marco histórico carregado de dor, trauma e sangue.

Essas novas fronteiras, que agora já possuem mais de 70 anos de existência, ainda latejam. A Partição e o que aconteceu para e a partir dela afetou histórias individuais, familiares e de comunidades inteiras e isso reverbera desde então.

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“O Diário de Nisha”, obra de Veera Hiranandan, traduzida para o português por Débora Isidoro, é tão importante, ainda que seja uma obra de ficção, por contar uma história de uma família nesse contexto e possibilitar que os leitores das mais diversas idades entendam melhor esse momento histórico e as consequências dele na vida das pessoas.

Veera, que cresceu nos EUA, mas possui raízes em outras culturas, se inspirou na história da família de seu pai para escrever. Ele, com apenas nove anos, saiu de Mirpur Khas e foi para Jodhpur junto com seus familiares durante a Partição, assim como a protagonista do livro. A infância tímida e observadora e o fato de Veera ser filha de pai hindu e mãe judia, enquanto Nisha tem como pai um homem hindu e uma mãe muçulmana, são outras semelhanças entre personagem e autora.

O livro é narrado de forma epistolar por uma menina de 12 anos. As cartas que ela escreve no diário que ganhou de um empregado de sua família, que é muçulmano como sua mãe, são destinadas a ela. A mãe de Nisha, entretanto, não está viva. Ela faleceu faz tempo e as cartas que contam tanto sobre a Índia e o Paquistão são, principalmente, um meio que a personagem encontrou para se expressar e lidar com essa ausência.

Durante a trama, vemos as consequências dessa divisão de territórios e povos se infiltrarem na realidade de uma família e, nós, como leitores, acompanhamos cada momento com o coração apertado e conhecemos, pelo diário da protagonista e imaginação da autora, algo que vai muito além do conteúdo jornalístico, histórico ou mesmo enciclopédico sobre esse episódio.

A narrativa, além de um diário de uma pré-adolescente e um relato de um conflito, é também sobre a condição humana. Nisha não só passa por uma viagem migratória forçada e perigosa, ela lida com quem ela é e descobre mais sobre si, suas relações e vive um embate entre passado, representado pela mãe e suas raízes muçulmanas, e futuro, que é totalmente incerto, especialmente diante da Partição.

Nesse sentido, a culinária se transforma para a menina, tão calada e tímida, em um meio de refúgio, comunicação, conexão e manifestação de afeto. Aquela comida tão colorida, temperada e com raízes, aparentemente diversas, se transforma na voz dela perante as pessoas que a cercam. Os vários pratos que ela come e prepara nos dá meios para que imaginemos melhor o mundo que cerca Nisha e o que ela quer manter junto dela. Assim vemos chapatis, parathas, biryanis, rasmalais, sai bhajis e muitas outras iguarias comuns da região se tornarem uma espécie de novo lar e algo que representa as ligações daquela família.

Vale ressaltar que Amil, irmão da protagonista, é quase um oposto dela e ainda assim um de seus maiores companheiros. Ele não é quieto, fala bastante, não presta atenção nas aulas e prefere desenhar, enquanto ela, por outro lado, é estudiosa e fala pouquíssimo. Nisha admira seu irmão por ser quem é, ao menos na maior parte do tempo, e defende seus talentos. Amil sofre com as expectativas do pai médico, que a gente imediatamente pensa que se dá daquela forma por questões de gênero. Nesse sentido, acaba impossível não imaginar como seria a vida de Nisha se ela fosse como Amil.

“O Diário de Nisha” conta uma história que se passa sete décadas atrás, mas que contém valiosas lições para o mundo contemporâneo. Nós precisamos olhar para as migrações forçadas, para os refugiados um a um, pensar em Direitos Humanos, promover a dignidade da pessoa humana e também investigar, para evitar que aconteçam ou remediar seus efeitos, as origens desses deslocamentos, que hoje se manifestam, inclusive, por questões relacionadas ao colapso climático.


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Pensamentos soltos sobre estética, novas obrigações e o tal do feminino

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Falar de cuidado de pele como um momento para si não cola para mim. De todas as coisas que alguém pode fazer para se curtir, por que quando se é mulher tudo acaba se relacionando com aparência?

Fora que o cuidado de pele nesses casos é a busca da pele perfeita, aquela que parece maquiada mesmo sem estar, e não um simples e necessário uso de protetor solar ou algum outro produto, como hidratante, recomendado por médicos para situações específicas. (Ainda que eu ache que as pessoas se sintam mais inclinadas e cobradas ao cuidado no sentido de saúde quando aquilo incomoda também a aparência.)

Toda vez que vejo alguém com esse discurso, eu lembro de gente dizendo “você precisa se cuidar” como sinônimo de fingir que é de plástico. Rotina de skincare agora anda junto com depilação, unha feita, cabelo tratado e pintado e outras práticas relacionadas à estética e que também passaram a ser consideradas uma forma de autocuidado.

Ou seja, o papo autocuidado se tornou uma versão mais palatável do controle e da preocupação com aparência. O que mudou é que atualmente tudo isso ganhou o rótulo de moderno, saudável e responsável. Parece que agora a gente precisa ser uma mulher linda que não parece se importar tanto em ser uma mulher linda, mas ainda assim é, porque se cuida de forma muito natural, saudável e, claro, com muito prazer. Afinal, agora é o tal do autocuidado que nos move. A gente tem que fazer as coisas chatas, caras e impostas como se aquilo nos completasse e nos fizesse sentir livres, leves e soltas. Se não fizermos, somos coitadas sem amor próprio.

O motivo da gente engolir tão facilmente que rotina de skincare ou qualquer outra coisa do tipo é autocuidado ou um momento para si é o medo que temos de sermos vistas como fúteis por nos preocuparmos com a aparência e com os efeitos do envelhecimento como nos é imposto. Só que isso acaba naturalizando a neura da beleza como parte do feminino, da autoestima e do cotidiano e isso afasta as mulheres, cada vez mais, de ter uma relação um pouco mais tranquila com tudo que se relaciona com aparência e inseguranças relacionadas.

Tudo bem fazer as coisas para se sentir mais bonita ou menos feia. Tudo bem chamar de vaidade ou algum outro termo correlato. O problema é pintar tudo isso como algo necessário e relacionado com o tal do autocuidado e do tempo de qualidade consigo e não pensar no que certas práticas inseridas no nosso cotidiano significam. Inclusive no sentido de imposição. É muito ruim se importar tanto com aparência, colocar esse tipo de questão como uma prioridade nas nossas vidas, mas a gente não precisa fingir que a questão é outra. Quanto mais a gente mascarar, mais dependentes ficaremos disso.

Questionar essas coisas não é dizer simplesmente que se importar com aparência está proibido ou é necessariamente errado. É somente uma tentativa de entender melhor o que nos afeta, o que afeta as mulheres enquanto grupo e o que interessa ao capitalismo, ao patriarcado e também ao racismo que promove, por exemplo, o uso de clareadores de pele e outros produtos como alisadores de cabelo.


Observação #1: Essa crítica que fiz, inclusive, não quer dizer que eu sou uma pessoa que vive livre de imposições estéticas ou que eu não neure com isso ou que eu nunca tenha passado um creme hidratante na vida. São só reflexões.

Observação #2: Esse texto é fruto da soma de vários tweets que postei há alguns dias em minha conta pessoal do Twitter + uma leve edição para que essa bagunça virasse um membro típico do gênero Textão de Facebook™, porque eu também quis postar sobre por lá.

Observação: #3: Aconselho ler a thread do Twitter inteira, porque rolou muitos comentários ótimos de outras pessoas e que, por não serem meus, estão de fora do texto. Inclusive, há até uma discussão bem interessante que envolve mulheres com deficiência e estética. Não deixem de ler!

Observação #4: Essa thread fez surgir conversas envolventes, mas, além delas, também rolou comentários agressivos. Por causa deles, serei obrigada a escrever no futuro próximo um texto de humor exagerando as reações bizarras que recebi ao compartilhar essas reflexões numa rede social em tempos como os nossos. Posso adiantar que a galera parece partir do pressuposto que eu falei que está terminantemente proibido fazer skincare e iniciei o recolhimento compulsório dos produtos com a finalidade de jogá-los no lixo, sendo que eu só acho que a gente precisa entender o porquê de fazermos certas coisas e acatarmos certos discursos. É preciso assumir o que nos move para isso, chamar as coisas pelo nome correto, entender as forças envolvidas, etc.

Duas chaves e um apartamento

Eu decidi me mudar. Depois de dez anos morando em repúblicas com gente de todo jeito, eu aluguei um apartamento para mim. Finalmente eu ia poder seguir minha vida sem pensar no que a mãe da Tati ia fazer quando descobrisse que a moça que estava sempre comigo era a minha namorada e parar de brigar todo dia antes mesmo de tomar café porque só tem um banheiro com chuveiro e quatro mulheres que saem na mesma hora para trabalhar.

Estava feliz. Cheguei a me sentir uma adulta de verdade. Apesar de ter precisado pedir meu pai para ser meu fiador. Depois deixei de me sentir assim. Quando decidi que era hora de me mudar, o maior motivo foi a minha vontade de ter um lugar em que pudesse ficar à vontade com a Juliana. Estávamos juntas há três anos e toda vez que eu visitava apartamentos para escolher minha futura moradia, eu pensava nela comigo naquele espaço. Avaliava se a cozinha era boa para a gente cozinhar em dupla, como gostamos, e julgava se naquele lugar daria para adotar um cão vira-lata caramelo que na minha cabeça se chamaria Megan por causa da Megan Rapinoe. Antes de analisar se o preço do aluguel valia a pena, eu olhava no Google a distância entre o apartamento e os nossos trabalhos e quais ônibus a gente teria que pegar para irmos onde sempre vamos. Tudo foi pensado em nós, mas eu me mudaria em três semanas e ainda não tinha falado para Juliana que eu queria que ela se mudasse comigo e a felicidade de dar esse passo tinha virado uma angústia sem fim.

Me sentia ridícula por não conseguir convidá-la para morar junto. Nunca me dei bem com palavras faladas. Elas sempre saíam da minha boca entrecortadas e artificiais. Eu tentei várias vezes. Desistia quando eu notava que ia parecer discurso de agradecimento do Oscar. Tudo soava forçado. Nos ensaios, eu parecia um robô programado a fazer um discurso amoroso. Por isso, pensei em escrever uma carta. Desisti. Achei coisa de covarde. Eu sou covarde, mas há níveis de covardia que até hoje eu me recuso a atingir.

Decidi comprar um cupom no Groupon e convidá-la para jantarmos num restaurante chique. No caminho, conferi se estava com minha chave do novo apartamento e uma cópia. Ambas já com chaveiro, porque eu sempre penso em tudo, mesmo antes de falar qualquer coisa. Queria entregar a dela já com o símbolo da casa Stark posto. Ela adora “As crônicas de Gelo e Fogo”. A minha, no entanto, já estava com o emblema da casa Lufa-Lufa, porque eu morro de preguiça do George Martin e sou lufa-lufana com orgulho.

Tudo estava pronto, perfeito até. Tinha que ser no jantar. Não dava mais pra fugir. Eu precisava falar. Não queria montar a casa sem ela saber que é algo nosso, sabe? Seria injusto com ela e até comigo.


Entrada, prato principal e sobremesa. O cupom nos permitia escolher várias opções. Peixe não. Salada de entrada não. Se bem que tem palmito. No fim das contas, fui no prato que levava um creme de batata baroa. Estava delicioso ou eu me lembro assim porque essa noite terminou muito bem.

“Será que a gente devia pedir um vinho?”, eu disse enquanto pensava que aquilo com certeza daria um ar mais romântico ao jantar, mesmo que a gente deixasse a taça praticamente intocada ao lado do prato. A verdade era que a vontade era de chamar o garçom e dizer: “Desce uma subzero aí, parça!”. Compartilhei esse pensamento com ela. Ela riu bastante. Pedimos chopp artesanal no lugar. “Acho que dá para falar que conseguimos achar um meio termo entre o vinho chique que deixa a gente com a língua estranha e a subzero de sempre”, ela disse.

Enquanto a gente comia, ela contava coisas engraçadas que aconteceram no trabalho dela. Tinha surgido um cara chamado Segunda-feira por lá. Todo mundo da repartição achou que ele ia requerer mudança de nome, mas ele só queria ver como ia o processo dele contra um banco. Também tinha uma outra história, mas eu não sei mais sobre o que era. Eu estava lá, sem prestar atenção, nervosa e pensando que tinha que ser naquela hora, que eu tinha tudo ao meu favor, mas, só para variar, eu não conseguia falar.

“Petit Gateau ou Crème Brûlée?”, Juliana disse totalmente formal quando acabamos de comer o prato principal. “O que diabos é Crème Brûlée? Como fala isso? Será que eu peço?”, reagi. Pedimos o creminho, mesmo sem saber o que era. Um pouco de coragem ao pedir o prato podia me ajudar a agir e fazer o convite oficial e, para falar a verdade, eu até acho que isso me ajudou no final das contas.

Eu tinha que abrir o jogo antes do jantar acabar, mas pensar na palavra oficial me deixou ainda mais desconfortável. Não queria soar como um ofício institucional. As sobremesas deviam chegar em minutos. O tempo estava acabando e eu estava ainda mais ansiosa com tudo aquilo. Decidi ir ao banheiro para enrolar, fazer um xixizinho e jogar uma água na cara.

“Que limpo! Nem parece que alguém mija aqui!”, pensei ao passar por aquela porta de madeira enorme e me deparar com azulejos claros, um vasinho de planta, uma pia bem decorada e cheirinho de lavanda. Tinha papel higiênico na cabine, infelizmente um luxo na maioria dos bares que frequentávamos na época, e ainda era um daqueles super macios e cheio de camadas! Sei que isso vai soar decadente, mas esse papel era uma novidade e tanto para minhas partes! Nessa hora, segurando a risada, decidi que tinha que voltar para mesa logo e fazer o convite nem que fosse do jeito mais tosco possível só para depois falar com a Juliana sobre ela precisar conhecer o banheiro antes de ir embora. Infelizmente toda a coragem me escapou quando me olhei no espelho ao lavar as mãos e me deparei com o meu olhar inseguro de sempre. Ali iniciei um breve monólogo encorajador e, para vergonha minha, em voz alta. Não lembro bem o que falei comigo, mas acho que foi algo assim: “Vai, Letícia, pense em outra coisa. Pense no papel higiênico macio. Pense na ousadia de pedir o creminho francês. Pense na Juliana e no cachorro que vocês vão adotar juntas. Pense em como vai ser bom acordar sempre ao lado dela. Pense que só falta suas palavras para fazer isso tudo acontecer. Respira fundo. Joga uma água na cara. Deixe vir espontaneamente. Pare de falar consigo mesma se olhando no espelho. Vai que alguém entra aqui e te vê falando sozinha desse jeito. Vão achar que você está metida com coach, Letícia! Vai para mesa agora! Vai logo!”

Lembro de ter voltado para a mesa morrendo de vergonha pensando que alguém podia ter tentado ir ao banheiro e se deparado comigo falando sozinha e decidido dar a meia volta porque era melhor ficar apertada do que lidar com uma possível doida, mas sei que logo me esqueci disso, porque assim que sentei de novo na cadeira, a Ju me perguntou sobre uma oficina literária que eu estava fazendo.

As aulas de escrita criativa foram divertidas, falei, e disparei a contar todos os detalhes: os exercícios feitos em aula, os deveres de casa, o medo do meu trabalho ser visto como ridículo, o incentivo que ouvi dos colegas e blablabla. No meio disso, me lembrei que a professora me aconselhou a criar cenas na hora de escrever e a parar de achar que preciso colocar todos os pingos nos is, deixar tudo explicadíssimo. Segundo ela, há formas mais fáceis de mostrar o que queremos. Criar cenas, por exemplo. Ao falar isso em voz alta, eu finalmente soube o que fazer e coloquei a minha chave na minha frente. Me levantei e posicionei a dela bem ao lado do pratinho de Crème Brûlée que ela saboreava. Parei ali, ao lado dela, olhei para aqueles olhos brilhantes e sorri. Ela me olhou de volta com uma expressão de alegria e surpresa. A risada dela é sempre deliciosa.

Só precisei falar “Vamos?”, logo depois de nos beijarmos, para ela dizer sim e o garçom que viu toda a cena começar a aplaudir e assim puxar as palmas das mesas ao nosso redor.


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Observação: Quando tentam censurar e intimidar quem publica, vende, lê e escreve literatura com presença de LGBTs, a gente vê o quanto é necessário escrever, publicar, ler e vender mais e mais livros com essa temática e/ou esses personagens.

Conservadores fanáticos surfam no medo das pessoas pelo que elas não conhecem para buscar votos ou apoio e é por isso que é tão importante espalhar essas histórias. Quanto mais elas forem lidas e conhecidas, menos terror vai dar para fazer com base nisso. É com o contato com histórias de amor, sexo e descoberta que envolvam casais de mulheres ou de homens que a sociedade vai, enfim, entender que não há o que temer.

A questão por trás dessas atitudes autoritárias não é “proteger as criancinhas” e nem uma mera questão de classificação indicativa ou qualquer outra desculpa. A intenção deles é cercear o direito das pessoas conhecerem narrativas que fujam da heteronormatividade e dos papéis tradicionais de homens e mulheres, ainda que elas sejam adequadas para crianças, e a gente não pode se esquecer disso. Para eles, mesmo as ingênuas mãos dadas podem ser vistas como um conteúdo perigoso, pornográfico, promíscuo, se forem um carinho entre pessoas do mesmo sexo. O problema deles não é só com o erótico e o sexual em si. Vai muito além. É homofobia, bifobia e lesbofobia.

Futebol, mulheres e esporte: o campo ainda é um espaço de batalha

Divulgação

O futebol feminino não precisa passar por mudanças de tamanho de campo e gol para se tornar atrativo, como insinuam vários homens toda vez que o Brasil perde em uma grande competição como Copa do Mundo e Olimpíadas. Ele já é atrativo como é e essa Copa do Mundo na França deixou isso evidente.

Para melhorar a modalidade, especialmente no Brasil, precisa-se de investimento desde a base para que as meninas comecem a treinar e competir bem novas, como é padrão para os meninos. O problema é que, além da falta de interesse dos clubes, da CBF e afins, nossa sociedade ainda tende a desencorajar meninas a praticarem futebol.

As meninas que gostavam de jogar bola, ainda que sem intenção de competir, sabem o quanto todos ao redor tentam empurrá-las para o balé, para o jazz ou mesmo para o vôlei. “Muito bruto”, eles dizem e tentam criar nelas medo da bola, dos chutes, dos encontrões. Se isso não funciona e elas continuam, eles esperam que as meninas se cansem de pedir para os meninos permissão para jogar. Eles querem que, com as negativas de participação nas aulinhas de futebol do clube, no futebol de rua e nos jogos do intervalo da escola, elas percebam que não são bem-vindas. Felizmente, nem todas desistem, apesar dos esforços coletivos para isso. A verdade é que nem quando havia lei impedindo elas de jogarem bola, muitas não se deixaram intimidar. Os esportes ensinam a persistência como um caminho e esse aprendizado guiou as mulheres do futebol desde sempre.

Por meio do decreto-lei 3199/41, o futebol feminino foi proibido no Brasil por quase 40 anos com a justificativa de que sua prática era incompatível com a natureza das mulheres. Além do futebol, o futsal, o futebol de areia, o polo, o polo aquático, lutas de qualquer natureza, o rugby, o beisebol e o halterofilismo também foram vedados para mulheres por esse documento legal. Isso impactou o desenvolvimento do esporte feminino no Brasil, apesar da resistência de grupos como o Araguari Atlético Clube e da primeira árbitra de futebol do mundo, Léa Campos.

A mentalidade de que o futebol e as demais modalidades citadas no decreto não são esportes adequados para mulheres ainda sobrevive culturalmente, apesar do documento em questão ter perdido sua validade em 1979. As meninas e mulheres que seguem jogando fazem isso por teimosia e paixão, sendo consideradas intrusas, sendo ofendidas com termos como “maria homem” e vivendo isso tudo sem apoio da família, dos professores ou dos colegas. A visibilidade dada aos últimos jogos da seleção feminina parece uma boa oportunidade para fazer esses caminhos de mudança se tornarem permanentes e mais efetivos, mas é necessário levar em conta que a questão das mulheres no futebol se entrelaça com a das mulheres nos esportes e, além de tudo que se relaciona com a modalidade em questão, é preciso entender que os esportes num todo não são incentivados para meninas, a não ser por motivos estéticos como emagrecimento ou crescimento, e traçar estratégias para transformar essa realidade.

As práticas esportivas nos ensinam muito sobre disciplina, determinação, fracasso, trabalho em equipe, consciência corporal e até ousadia e prazer, mas a falta de incentivo e muitas vezes de acesso afeta o desenvolvimento pessoal de meninas e mulheres, como escrevi no meu texto sobre o livro As Esportistas.

Nossa cultura machista cria obstáculos para mulheres praticarem esportes, especialmente esses colocados como “coisa de homem”. Mesmo meninas que, como eu, cresceram praticando acabam se afastando de esportes na adolescência porque entendem que esse espaço não é delas ou mesmo porque a divisão sexual do trabalho começou a atuar em seus cotidianos e agora há a obrigação de limpar, cozinhar e cuidar dos irmãos mais novos ou até filhos nas horas vagas.

As trajetórias amadoras das meninas e mulheres no esporte, especialmente no futebol e nas artes marciais, expõem o quanto essas restrições, sejam elas culturais ou mesmo legais, tem a intenção, ainda que inconsciente, de não permitir que mulheres descubram os limites, capacidades e características de seus corpos.

O corpo ativo, que ocupa espaços, testa limites e tudo mais não pode ser o que é considerado feminino. O corpo feminino é para parir, servir, enfeitar, ser passivo, segundo o machismo, e é por isso que o mundo dos esportes ainda é considerado deles, mesmo nas modalidades não consideradas masculinas.

Meninos e homens encaram o esporte como território próprio, inclusive de socialização, e assim as práticas esportivas se conectam facilmente com diversão. As praças, parques, clubes, quadras comunitárias e as ruas brasileiras são tomadas por meninos. Eles podem ocupar esse espaço. Podem e devem. Eles são os donos da bola. Não todos, claro. Meninos considerados afeminados ou gordos ou fãs das modalidades esportivas ‘erradas’, por exemplo, também se sentem fora do lugar, ficam deslocados e são excluídos, como as meninas que tentam participar desse espaço.

O controle dos nossos corpos, comportamentos e subjetividades se soma sempre para não permitir que meninas e mulheres descobram o que são capazes de fazer. Para que todos, inclusive meninos, possam descobrir suas potencialidades, a educação igualitária e o fim desses padrões de gênero tão castradores é necessária. Além de resolver as questões de acesso que envolvem desigualidade econômica, claro.

A discussão do futebol feminino, seu desenvolvimento e das mulheres no esporte perpassa pelo aprofundamento do debate sobre machismo e estereótipos do que é feminino e masculino. O esporte deve ser visto como um espaço para todos, independente do gênero, etnia, orientação sexual, tamanho, peso e corpo. Só assim para o acesso às quadras, campos e bolas deixaram de ser uma batalha.


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Longe de casa: narrativas de mulheres obrigadas a se deslocar

Acervo pessoal — Adquira seu exemplar aqui.

Guerras, conflitos internos, violência generalizada, perseguição política, étnica ou religiosa e variadas violações de direitos humanos obrigam pessoas a abandonarem suas casas e comunidades todos os dias. A ACNUR (Agência da ONU para Refugiados) afirma que nos últimos dez anos o número de deslocados cresceu em mais de 50% e que há mais de 70,8 milhões* de pessoas no mundo nessa situação, sendo quase 60% delas oriundas de somente três países: Sudão do Sul, Afeganistão e Síria, com um crescimento considerável de pedidos de asilo feitos por venezuelanos nos últimos anos.

Esses deslocamentos, que podem ser internos ou envolver outros países, são marcados pela necessidade de ir embora numa busca por um mínimo de segurança e dignidade. Não há muita escolha quando ficar envolve tanto risco e sair de casa, algumas vezes só com a roupa do corpo, é uma questão de sobrevivência.

Malala Yousafzai, a pessoa mais jovem a receber um Nobel da Paz, sabe muito bem disso. Em 2009, quando ainda era uma anônima, a ativista e sua família tiveram que abandonar temporariamente a casa onde viviam no Swat devido a uma ação do exército paquistanês para expulsar o Talibã daquelas áreas. Alguns anos mais tarde, no final de 2012, depois de Malala sofrer um atentado grave motivado pela sua luta pela educação feminina, a família passou a viver no Reino Unido para fugir das ameaças que não cessavam.

A vida dos Yousafzai, como a de muitos, foi marcada pelo deslocamento forçado e agora, com o livro “Longe de casa”, Malala compartilha com o mundo a saudade que sente de seu lar e nos apresenta oito histórias de jovens mulheres nessa situação.

A diversidade de nacionalidades e motivações das colaboradoras da obra enriquecem bastante o livro, porque ajudam o leitor a ter uma noção da dimensão do problema em si e a perceber o quanto certas partes do globo são muito mais vulneráveis do que outras.

A invisibilidade dos conflitos e realidades que motivam os deslocamentos com certeza colabora com a visão estereotipada de muitos sobre o que é ser refugiado ou mesmo imigrante e carrega em seu cerne uma negligência com o que aflige o Outro. Sabemos muito pouco sobre o que acontece no Sudão do Sul, Iêmen, Congo, Myanmar e outras localidades e países, por exemplo, e isso diz muito sobre como o mundo trata a vida de parcela da população mundial como irrelevantes.

A história de Ajida, uma myanmarense que junto com sua família abandonou sua comunidade com medo da violência que poderia atingi-la por ser rohingya e cruzou a fronteira para chegar em Bangladesh, não é só sobre refúgio, é, principalmente, sobre a fuga de uma população da ameaça de genocídio e isso não pode ser esquecido.

Esse depoimento pontua também a questão do deslocamento motivado por questões ambientais e climáticas quando Ajida conta que mesmo já em Bangladesh todos os assentados tiveram que ser transferidos para outro campo com a chegada das monções e o aumento do risco de inundações. Com o aquecimento global, deslocamentos com esse viés já são uma realidade e poderão se intensificar.

Além disso, os relatos nos fazem pensar também sobre os refugiados que não são vistos juridicamente como parte desse grupo apesar de terem se deslocado numa situação em que não se via muitas escolhas. Analisa, por exemplo, é uma jovem guatemalteca que chegou aos Estados Unidos de maneira ilegal. Ela cruzou a fronteira do México e correu todos os riscos que conhecemos como parte da jornada do imigrante. Sua trajetória, para muitos, pode ser encarada como algo que foge do refugiado comum e da abrangência legal do termo, mas seu depoimento faz parte do livro, o que torna tudo que é dito ali ainda mais político. Ainda mais em tempos de construção do Muro de Trump.

“Longe de casa” tem como trunfo abordar direitos humanos em primeira pessoa. Esse livro de Malala Yousafzai é um grito coletivo de muito significado político em um formato que facilmente cria pontes com quem não tem familiaridade com o tema. Seu único defeito talvez seja ter colocado o foco em mulheres deslocadas, mas não abordar com a atenção necessária a violência sexual que ameaça as que vivem essa experiência.

*Os dados apresentados no livro escrito por Malala apontam o número de 68,5 milhões de refugiados, mas as estatísticas mais recentes, que contam com a influência da crise humanitária na Venezuela e um aumento considerável de deslocados de Myanmar e Somália , dizem que já são 70,8 milhões de pessoas nessa situação de deslocamento forçado. A ONU alerta que esse número pode ser ainda maior na realidade.


Esse texto foi escrito e publicado no dia 20 de junho, Dia Mundial do Refugiado. Essa data foi criada com a finalidade de conscientizar o mundo sobre a situação desse grupo social. Saiba mais sobre esse tema e ações relacionadas a ele no site da ACNUR.


Tradutora da obra: Lígia Azevedo


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Cultura do estupro: o que a reação das pessoas ao Caso Neymar diz sobre nossa sociedade?

Neymar vestindo a camisa 10 da seleção brasileira em campo

Desde que a acusação de estupro contra Neymar saiu na mídia, muito se discute sobre o comportamento da possível vítima. Esse é o modus operandi da cultura do estupro. Especialmente quando o acusado usa o comportamento sexual da mulher como um meio de tentar provar sua inocência.

Mesmo que o jogador seja inocente na acusação de estupro, sua tentativa de defesa pública partiu de estereótipos de gênero, misoginia e de noções bem erradas do que é consentimento. Além de tudo, houve a propagação de imagens íntimas da mulher em questão, o que por si só configura crime e também pode ser visto como uma tentativa de intimidação bem característica do fenômeno chamado de pornografia de vingança. Toda a exposição do caso e da possível vítima feita pelo Neymar, seu pai, Datena e outros evidencia o poder e influência que o atleta tem e como a sociedade legitima que ele o use contra essa mulher como uma maneira de silenciá-la.

A partir desse caso e a reação da sociedade ao que é dito, exposto ou suposto, mesmo sem qualquer veredicto sobre Neymar, temos a chance de debater sobre o que é estupro e combater esses pensamentos que fazem tanta gente considerar que a manifestação prévia de uma certa disponibilidade sexual é necessariamente um impeditivo para que tenha havido abuso e como essa visão colabora com a ideia de que certas mulheres são consideradas estupráveis e outras não.

Para entender tudo isso é preciso se perguntar sobre o porquê das defesas de crime de estupro, profissionais ou feitas pelo próprio acusado, sempre apelarem para essa abordagem em que o foco recai na vítima que é cobrada a se provar idônea o tempo todo.

O estupro é abordado historicamente, inclusive pelo Direito, pela ótica masculina e patriarcal que vê as mulheres como manipuladoras e traiçoeiras quando se trata de sexo, sedução e afins. A ideia de que o valor feminino estava ligado à virgindade alimentava ainda mais essa visão, porque esse seria um motivo que faria mulheres que “cederam à tentação do sexo” mentirem e a possível vida sexual fora do casamento um sinal de que a mulher em questão já seria impura, logo pouco confiável e propensa a fraude. Isso, somado ao fato de que o corpo feminino é considerado propriedade e direito dos homens, sedimentou a prática de colocar a vítima como foco em caso de violência sexual. Isso é tão forte que há quem defenda, ainda hoje, que não existe estupro dentro de casamentos usando o argumento de que esse contrato social e jurídico envolve necessariamente obrigação de sexo.

Quando se coloca uma possível vítima de estupro no centro de um tribunal público em que se discute, principalmente, o comportamento sexual dessa mulher que acusa, a mensagem que se passa é a de que mulheres ativas sexualmente são corpos disponíveis, logo impossíveis de serem estupradas.

É preciso reiterar que o fato de dizer sim uma vez não é sinônimo de um sim eterno ou que esse sim atinge todas as práticas sexuais possíveis. Sexo é algo que parte de interesse, respeito e combinados mútuos. Sua palavra-chave é consentimento e ele pode ser retirado a qualquer momento e ainda assim precisa ser respeitado. Topar transar não é topar fazer tudo que o outro quer. Topar sexo agora não impede a pessoa de mudar de ideia 10 minutos depois.

A noção deturpada de consentimento faz com que mulheres se sintam confusas sobre terem ou não sofrido violência, principalmente em casos de date rape e estupro marital. O imaginário social do que é estupro ainda é o da vítima pega de surpresa e com extrema violência em um beco escuro de noite, o que torna difícil o reconhecimento do crime de primeira por quem vive situações que envolvem paquera, interesse e envolvimento ou por quem não se vê no papel de vítima ideal por já ter transado ou querido transar com o agressor.

Estamos todos acostumados demais com a desumanização das mulheres, o que dificulta que a gente olhe para possíveis vítimas femininas de homens, especialmente aqueles poderosos e públicos envolvidos em casos de date rape, com empatia. As estranhezas que podemos enxergar em um relato podem ser sintomas de estresse pós-tramático ou parte de um processo de distanciamento e negação, por exemplo. Quando se trata sobre estupro, podemos, mesmo sem querer, nos amparar em noções distorcidas pelo machismo e misoginia do que se é ou não violência sexual e de quem pode ou não ser vítima dela.

Esse texto não é sobre condenar ou absolver o Neymar socialmente, é, principalmente, sobre como nossa sociedade encara a violência sexual e o corpo das mulheres. Mesmo que esse caso acabe se tornando um exemplo raríssimo de falsa acusação, a reação da sociedade perante o tribunal sexual montado pelo Neymar diz muito sobre o mundo que vivemos e o que é e como se manifesta a cultura do estupro.


Obs: Esse texto surgiu a partir de dois tweets que fiz para o Ativismo de Sofá e foi publicado, originalmente, em minha página pessoal no Facebook. Se você gostou dessa leitura, deixe suas palmas, faça um comentário, compartilhe com seus amigos e me acompanhe pelo Facebook e Twitter.

O lugar da mulher para a ofensiva conservadora

No primeiro dia da legislatura dos deputados federais, Márcio Labre (PSL-RJ), um estreante, propôs um projeto de lei que dispõe sobre a proibição do comércio, propaganda, distribuição e implantação pela Rede Pública de Saúde de micropílulas, pílulas do dia seguinte, implantes anticoncepcionais e DIU com a justificativa de que tais produtos são abortivos*.

A atitude de Márcio Labre é parte de uma ofensiva conservadora que encontra no legislativo um terreno fértil para prosperar. Ele agora se soma a um grupo expressivo de deputados que usam a bandeira anti-aborto para promover seus ideais de mulher e religião com um projeto que consegue ser ainda mais agressivo que os famigerados Estatuto do Nascituro e a PEC 181/15, conhecida como “Cavalo de Troia das Mulheres”. O deputado, ao tentar proibir o acesso a contraceptivos, leva ao extremo a bandeira do controle do corpo das mulheres. A criminalização do aborto não é o suficiente, Márcio quer restringir ainda mais a autonomia das mulheres sobre seus corpos e sexualidade com uma limitação absurda relacionada a qual método contraceptivo elas poderão escolher usar. Com o PL 216/2019, o parlamentar busca dificultar que mulheres detenham o poder de tentar evitar uma gravidez de forma ativa.

A camisinha não é um dos itens listados por ele, mas seu uso costuma estar atrelado a uma cooperação masculina. Apesar da camisinha ser o contraceptivo mais indicado, já que também protege contra as doenças sexualmente transmissíveis, seu uso sofre resistência por parte de homens, principalmente dentro de relacionamentos, o que torna os contraceptivos como a pílula do dia seguinte e o DIU essenciais para que mulheres possam ter um controle maior sobre seus corpos e possíveis gravidezes. O anticoncepcional padrão também não foi listado pelo autor do projeto, porque ele não o considera “micro abortivo”, mas as restrições elencadas no PL já impactariam bastante os direitos sexuais e reprodutivos de quem possui útero e capacidade de engravidar. A escolha feminina de como se prevenir de uma gravidez seria muito afetada, principalmente das mulheres que não podem utilizar o anticoncepcional padrão por causa do risco de trombose e outras doenças.

A maioria dos projetos de lei e emendas constitucionais nesse viés buscam dificultar ou mesmo proibir o aborto nos casos legais (estupro, risco de morte e anencefalia). Com Labre não foi diferente. Além do projeto que tem vários contraceptivos como alvo, ele também propôs o PL 260/2019, que diz em seu primeiro artigo que:

“ É proibido o aborto de fetos humanos, pelas próprias gestantes ou por ação de terceiros, em qualquer hipótese, independentemente do estágio da gravidez ou do tempo de vida do nascituro, admitida somente, por única exceção, a possibilidade de abortar quando a continuação da gravidez trouxer comprovação e inequívoco risco de vida para a gestante.”

No primeiro dia de legislatura, o estreante do PSL deixou claro que a mulher, para ele, é um mero receptáculo ao se colocar contra o aborto em caso de gestação fruto de estupro e buscar a proibição da pílula do dia seguinte, medicamento não abortivo, que impacta diretamente na garantia legal de amparo médico e psicológico para vítimas de estupro. Entre outras coisas, a lei 12.845/13** prevê a pílula do dia seguinte como parte do atendimento de vítimas de violência sexual com o objetivo de evitar que haja gravidez e a pessoa tenha que passar pela decisão de abortar ou não.

Os projetos de lei do parlamentar, caso sejam aprovados, buscam impor a gravidez indesejada e fruto de estupro a todo custo. Nem mesmo a profilaxia de gravidez seria um direito. Com isso, o direito do estuprador de se reproduzir estará acima da integridade e vida da vítima. Márcio quer fazer de tudo para obrigar mulheres a gestarem, independente se foi estupro ou não.

O controle do corpo da mulher e a caça de seus direitos reprodutivos é parte essencial de qualquer projeto de governo que tenha como base a religião, os bons costumes, o conservadorismo e o autoritarismo. A ficção nos mostra isso: “O conto de Aia”, escrito por Margaret Atwood, por exemplo, é uma história sobre um regime autoritário que se baseia e se sustenta no controle dos corpos femininos.

Isso se dá não só porque alguns acreditam que fazem o bem com suas posturas “pró-nascimento” e misóginas, mas porque atacar as liberdades femininas é sempre um caminho mais fácil para quem quer manter e ampliar seu poder. O machismo do mundo de hoje ainda clama por qualquer coisa que busque controlar as mulheres. Políticos interessados em popularidade e polêmica usam essas pautas, principalmente as que tem mais apelo como o aborto, para se colocarem como paladinos da justiça e se afirmarem perante a sociedade. Com base nisso, podem, por exemplo, justificar inércias, omissões, corrupções e votos contra o povo com o argumento de que o foco precisa ser pautas como essas.

Restringir a autonomia das mulheres é bandeira vista como necessária por uma parcela de pessoas, especialmente homens cis, que se definem como capazes a partir dessa ideia de que a mulher existe para complementar os homens. Concepção que serve como base para toda a divisão sexual do trabalho.

Os apoiadores de homens como Márcio Labre encaram esse tipo de projeto político como a chance deles voltarem a terem empregos bacanas, conseguirem sustentar uma casa, serem detentores de um pátrio poder que atinge mulheres e filhos. Eles querem o controle estatal para garantir que eles a obediência e submissão de mulheres e crianças.

O controle da capacidade reprodutiva feminina, por mais que seja pintado apenas como uma pauta moral, está relacionado com economia, emprego, mão de obra e é uma bandeira que faz tanto sucesso porque promete manter certos privilégios. O desejo de domínio do capital reprodutivo se dá por causa da necessidade de haver reprodução e cuidado da prole para manter certas estruturas, inclusive econômicas. A reprodução é tratada como algo além do desejo individual da mulher, ela tem uma função numa sociedade como a nossa. A transmissão da propriedade, por exemplo, se relaciona com filhos e esposo.

Quem defende isso vê o passado como meta a ser buscada. A bancada da Bíblia — e também da Bala e do Boi — usam a frustração com o presente e definições culturais da função de homens, mulheres, brancos, negros, indígenas, terra e propriedade, para conquistar votos e poder. Eles contam com os ressentidos com o avanço de pautas feministas para encher os bolsos.

O projeto de lei do deputado conservador da vez é um elemento de uma ofensiva que busca determinar que cabe às mulheres a função primordial de parir, cuidar, satisfazer e aos homens todo o resto. Esse resto, como tarefa masculina, é melhor pago, tem status profissional, trabalho formal, enquanto o que a mulher faz é vocação, destino biológico, milagre, bondade, sacrifício ou mesmo redenção de uma vida de pecados próprios ou de Eva ou Lilith.

Com grande parte do Legislativo e do Executivo combinados em promover um projeto político de promoção de desigualdade entre homens e mulheres, pautas como a disparidades salarial, desemprego e dificuldade para retornar ao mercado de trabalho após ter filhos, falta de creches públicas, e, principalmente, a tripla jornada de trabalho seguirão sendo colocadas como pouco importantes, apesar de serem tão significativas. A maternidade precisa ser obrigatória e carregada de sacrifícios e perda de autonomia para esses que dizem defender tanto a família.

O Brasil caminha a passos largos para se tornar um país teocrático e essa trajetória conservadora é uma busca pela manutenção de um status quo e de um poder que tem sua expansão como algo naturalmente autoritário. A consequência do avanço de pautas como essa é ainda mais mortes de mulheres na clandestinidade. O projeto político que ganha cada vez mais voz no país negligencia a vida, a saúde, a autonomia e a subjetividade de mulheres. A maternidade não pode ser compulsória.

*Micropílulas, DIU, implantes anticoncepcionais e pílulas do dia seguinte não são abortivas. Sendo a última vítima de ataques anticiência rotineiros, apesar desse medicamento apenas adiar a ovulação e evitar que o útero se prepare para receber um óvulo fecundado.

**Há várias pessoas no Congresso Nacional e fora dele que defendem que a pílula do dia seguinte é abortiva e querem impedir o uso dela. Magno Malta, Eduardo Cunha, Pastor Eurico, Pastor Marco Feliciano, Bolsonaro e outros defendem a revogação da lei 12.845/13, a lei que garante atendimento médico e psicológico para vítimas de estupro, com base nesse argumento. Ou seja, caso o PL 6055/13 passe, não há chance de veto.

*** Esse controle tanto falado em todo o texto é motivado pela busca pelo domínio do capital reprodutivo.


Observação: no final da tarde do dia 06/02, o deputado apresentou requerimento para retirada do PL sobre a proibição de diversos contraceptivos, mas disse que no futuro apresentará outro projeto, dessa vez mais fundamentado, com finalidade de informar que a minipílula, a pílula do dia seguinte, o DIU e os implantes anticoncepcionais são “micro abortivos”. Ou seja, essa retirada é apenas estratégica. O outro PL, também absurdo, segue sem retirada.


No dia 12/02/2019, o Senado desengavetou o projeto de emenda constitucional 29/2015. A PEC em questão busca acrescentar ao artigo 5º da Constituição que a vida é inviolável desde a concepção, assim como a PEC 181/15 que ganhou destaque ano passado queria fazer. Essa mudança constitucional, se for feita, pode amparar a criminalização do aborto em qualquer situação. Esse é mais um exemplo recente de como esses ataques são parte de um projeto político de poder que tem ganhado cada vez mais força no país.


Em junho de 2019, Projeto de Lei do vereador de São Paulo Fernando Holiday (DEM) ganhou as manchetes brasileiras por propor a internação compulsória de mulheres com “propensão ao abortamento” e uma série de medidas, como obrigar a mulher a ouvir o coração do feto bater, para tentar impedir abortos nos casos legais. Esse PL é claramente inconstitucional, mas, ainda assim, merece ser criticado e exposto como a política de controle de corpos que é.


Em setembro de 2019, o Conselho Federal de Medicina, em uma nova resolução, definiu que gestantes não possuem o direito à recusa terapêutica: “A recusa terapêutica manifestada por gestante deve ser analisada na perspectiva do binômio mãe/feto, podendo o ato de vontade da mãe caracterizar abuso de direito dela em relação ao feto.”

A resolução apresenta perigo por colocar os corpos das mulheres grávidas como tuteláveis e justificar isso usando o feto, como se a mulher que gera fosse uma mera incubadora, e assim abre precedente para violência obstétrica “justificada”. Saiba mais aqui.

Em agosto e setembro de 2020 um caso de aborto legal de criança gestante por estupro se tornou emblemático e foi manipulado e atacado pelo governo, com direito a posterior edição de portaria para restringir o direito ao aborto legal na prática. Mais sobre aqui.

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